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Tabus, permissões, regras, lugares o Sítio Olho d’Água como um terreno do sagrado

AGENTES DE CURA: TRAJETÓRIAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE CURADORES E BENZEDORES

4.2 Tabus, permissões, regras, lugares o Sítio Olho d’Água como um terreno do sagrado

Quando a experiência sagrada torna-se mais concreta, quer dizer mais intimamente misturada à vida. (ELIADE, 2001)

Há consenso entre os informantes que José Avelino possuía um rítmo muito especial e até certo ponto atípico de vida. José comia pouco e, poucas vezes, ao dia. Os informantes atribuem esse comportamento ao excesso de trabalho ou aprendizado do longo período de sofrimento que ele viveu, comendo insuficientemente. Tentamos identificar possíveis vínculos entre a “devoção” e a purificação do corpo, mas não chegamos a nenhuma conclusão a respeito. Para seu neto e sucessor, há muitas histórias contadas pelos romeiros, segundo as quais José costumava dizer que feijão não alimentava ninguém, o conforto do corpo estaria

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Os informantes relatam que em certo dia houve uma ventania muito forte que poderia derrubar as árvores e as pessoas ficaram aflitas. José saiu para o meio do terreiro, e abriu os braços, fez algum pedido a Deus em oração, ficou um pouco de braços abertos e todos afirmam que o vento parou.

Obtivemos um registro semelhante com uma rezadeira que se referiu a uma ação divina. Ela acredita ter sido uma “lição” que os “seus espíritos” demonstraram para umas pessoas que naquele momento estavam reunidas e a acusavam de catimbozeira. Estas pessoas estavam perto da sua casa, às margens de um açude, onde há um grande lajedo. Com certo tempo, dizem que esse grupo presenciou algo estranho: as pessoas viram ser jogado algo sob o açude como um grande lençol branco que cobriu a água, de forma que chamou a atenção do grupo. E, assim como esta rezadeira, todos associaram a uma “lição” para não se falar mal, nem maltratar as pessoas que não merecem.

na reza, na fé.82 Fala-se que José foi um homem “sustentado nas graças de Deus”; sua alimentação foi sempre um mistério.

Ele tinha um método de se alimentar e o método dele era esse de 20 a 24 horas quando dava um palpite nele pra ele ia comer aquela coisinha. A mulher se levantava era só eles dois, se outro bulisse dentro de casa. Pronto! Bastava ter um susto que deixava aquele comer. De doze horas da noite era que ele comia aquele bocadinho, vinha comer com 24 horas outra vez. (Josefa, 90 anos)

Dessa forma, as informações retratam que José viveu muitos anos “sem comer” normalmente. Uma vez por semana, ele pedia aos seus auxiliares que comprassem uma “mão de boi” e sua esposa se responsabilizava do preparo. Quando esta estava pronta, em forma de cozido, ele ia até a panela e pegava uma concha específica, conhecida na casa como a concha de Zé Avelino; e retirava essa quantidade para tomar. Nisto reduzia-se seu almoço e jantar. Seu café era “sagrado” e atípico; acontecia às três horas da madrugada. No inverno, sua esposa assava um milho no entardecer do dia, o envolvia sob um pano, para não esfriar; às três horas ela preparava o seu café. Um café forte e adoçado com rapadura; na época da seca, um pão doce com café era a sua refeição.

Ter a vida “sustentada pelas graças de Deus” envolve um sistema marcado por renúncias e muitas reservas.83 A identificação de “reservas” na vida de José se estende à sua relação com a esfera pública. Por “reserva ou por nervoso” ele deixou de freqüentar parte de sua propriedade; demarcou as áreas do terreno onde ele poderia ou não poderia circular. Essa renúncia vigorou por vinte anos. Entretanto, no dia em que faleceu ele retornou ao local - não circulante - e caminhou por toda a área seguindo trechos por onde não passara nos vinte anos. Embora não saibamos os reais motivos desta demarcação, ou eles não acharam conveniente informar, eles dizem que a volta à área era uma forma de despedida, pois ele já pressentia que sua vida terrestre estava no fim. Ele tentou se comunicar, mas como falava em forma de

82 Há relatos em que ele desafiou um senhor que comia em grandes quantidades que um dizendo-lhe que “um pão

alimentava um homem” e ele poderia tentar comer o pão que iria sentir-se alimentado. Fala-se que este homem não conseguiu comer esse pão por completo e estaria disposto a comer dez pães. Esse curador utilizou o exemplo para refletir que “o verdadeiro conforto do ser humano residiria na reza” e, ao mesmo tempo, queria mostrar que para quem está com fome: um pão é muita coisa.

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Para Durkheim (1989) é necessário determinar o lugar do homem nos sistemas das coisas religiosas. Somos levados, por todo um conjunto de hábitos adquiridos e pela própria força da linguagem, a conceber o homem comum como ser essencialmente “profano”. Segundo Durkheim, pode ser que essa concepção não tenha lugar em nenhuma religião. Ele entende que para o cristão, a alma que cada um de nós traz em si, e que constitui a própria essência de nossa personalidade, tem algo de sagrado. Essa concepção de alma é tão antiga quanto o pensamento religioso. Mas o lugar do homem na hierarquia das coisas sagradas é mais ou menos elevado. (DURKHEIM, 1989:176)

metáforas, as pessoas não entenderam a mensagem. As associações foram feitas após o seu passamento.

Existiam outras áreas, fora de sua propriedade, na região, onde José não passaria, nem a pé, nem a cavalo. Na verdade, José costumava ir apenas ao trecho que liga sua residência a uma das cidades circunvizinhas, e outro à cidade que ele frequentava por ocasião da feira semanal; afora isso, ele deslocava-se apenas para a missa, aos domingos.84

Para os agricultores, ter um dia reservado à feira semanal constitui um ritual simbólico importante na vida no campo. Para o curador, ter o seu “ponto comercial” na feira possibilitava o contato com os romeiros da Capela. Ali ele não só cuidava de seu pequeno “negócio”, mas “atendia” às pessoas que o procuravam para uma orientação, uma conversa, ensinar um remédio, se fosse o caso.

4.3 Ações de reciprocidade para além da cura religiosa: a “bodega” nos rumos de

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