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AGENTES DE CURA: TRAJETÓRIAS E HISTÓRIAS DE VIDA DE CURADORES E BENZEDORES

4.7 Os Curadores Consagrados ou Almas Santas: Padre Ibiapina, Frei Damião e o Padre Cícero

4.7.2 O Padre Cícero

O Padre Cícero é uma referência importante entre os informantes desta pesquisa. Ao lado dos demais ícones religiosos citados, o Pe. Cicero é uma força importante no tripé que elaboro para explicar a fé dos católicos em relação à cura. Entretanto, quero apenas resgatar alguns aspectos considerados relevantes de sua história. Padre Cícero representa um quadro importante também no contexto da época e do papel que ele representa entre os camponeses pobres e os romeiros devotos.

105 As informações que tratam dos “milagres” pertencem ao acervo particular do padre José Floren, o atual

Mesmo em vida, o padre se destaca na esteira dos supostos milagres realizados. Os romeiros, movidos não apenas pela motivação religiosa, vinham “ao Juazeiro” para ver o padre milagroso e dele receber bênçãos e seus conselhos.

O menino Cícero Romão Batista nasceu no Crato, Ceará, em 24 de março de 1844.106

Cícero nasce numa família modesta, seu pai um pequeno comerciante com traços do corpo, olhos azuis e cabelos aloirados herdados de antepassados portugueses, tanto pelo lado da mãe como do pai. O pai de Cícero era o primogênito de um oficial da cavalaria que lutara ao lado das tropas brasileiras nos tempos da independência. Sua mãe trazia marcas de uma batalha familiar em que seis irmãs foram defloradas pelo mesmo homem, o coronel José Francisco Pereira Maia, o Mainha, Juiz de Paz, delegado de polícia e deputado de província pelo Crato. Apenas ela, a mãe de Cícero teria resistido aos assédios sistemáticos do coronel, polígamo assumido desde que fora traído por sua esposa, e que se gabava de ter colocado 82 rebentos no mundo. Os pais de Cícero não se destacavam enquanto comerciantes, mas com o pouco que conseguia proporcionou uma boa educação ao filho, o segundo entre duas irmãs. Há muitas histórias que compõem uma rica tradição oral a respeito de Cícero e dos seus casos, desde criança. Há referências em que ele é idealizado enquanto devoção prematura. “Ele tinha cinco anos, era bem pequeninho, À noite a mãe procurou, não achou no bercinho achou-o nos pés de uma imagem dormindo ajoelhadinho” (NETO, 2009:25).

Ainda criança, aos 12 anos Cícero entra num círculo de contatos que o coloca sob influência de líderes religiosos. Já contava com a influência das rezas em que participava com sua mãe. Destaca-se a influência do Padre Ibiapina que teve uma relevância grande e serviu de modelo para a futura prática de Cícero. Segundo Neto, (2009) Cícero conheceu pessoalmente Ibiapina em 1865, na inauguração da casa de caridade de Missão Velha, vila próxima ao Crato, e ficou fascinado pelo verbo eloqüente e pelo carisma daquele reformador de costumes. Registra-se também que a vocação de Cícero teria surgido antes, mediante leitura do livro a respeito da vida de São Francisco de Sales. É marcante na formação de Cícero a presença de líderes religiosos.

Com a morte do pai, sua mãe não tinha condições para mantê-lo no estudo. Nesse momento, num colégio distante do Crato, em Cajazeiras, ele recebe apoio do seu padrinho de crisma e coronel Antônio Luiz Alves Pequeno, que estava também atendendo ao pedido de

106 Data que consta nos livros da Cúria do Crato, mas, de acordo com Neto (2009) há controvérsias apontadas

por narrações míticas de que Cícero teria nascido no dia anterior 23, e posteriormente alterado o próprio batistério para vincular sua origem à data Litúrgica da Anunciação. Porém, de acordo com a literatura analisada, não há provas comprobatórias deste ato.

seu compadre morto que aparecera ao filho Cícero pedindo que ele não desistisse do caminho das letras e que Deus haveria de dar um jeito.

Após concluir o estudo em Cajazeiras, com 21 anos, Cícero foi matriculado no Seminário da Prainha, primeira escola de nível superior do Ceará. Cícero se insere num novo contexto e sente um choque diante a rigidez dos seus novos professores. O menino Cícero vinha de origem marcada por um convívio entre práticas religiosas específicas, caracterizadas por crenças indígenas, mescladas à tradição lusitana do culto aos santos protetores. Isto gerava uma devoção permeada de livres reinterpretações da fé católica, baseada em elementos mágicos e sobrenaturais.

Cícero enfrenta uma convivência marcada pela disciplina e vigilância onde a privacidade e os minutos de solidão eram vetados. O isolamento do prédio favorecia total imersão nas obrigações religiosas. Após três anos de curso teológico, Cícero tornou-se monitor de seminaristas mais jovens. Mas o reitor afirmava que Cícero possuía idéias confusas que lhe chegaram como advertências. O reitor, com formação européia, não temia fidelidade irrestrita às diretrizes romanas e entendia as manifestações de fé sertaneja que Cícero manifestava como expressão de superstição. Muitos colegas de Cícero não chegaram a concluir o estudo e foram desligados, mas Cícero resistia, apesar da palmatória.

Finalmente, aos 26 anos, Cícero é ordenado em 30 de novembro de 1870, por decisão direta do Bispo Dom Luiz. Cícero reza sua primeira missa no Crato. Cícero chega ao Crato na primeira hora, do primeiro dia, do primeiro mês de 1871. Para ele que acreditava em forças misteriosas e mensagens do outro mundo, nada estaria mais cabalístico de seu futuro que estava começando ali, do que esse acontecimento.

O jovem padre inicia sua missão marcada por fortes acontecimentos. Os sonhos ocupam um lugar de destaque na vida de Cícero. Um se tornou conhecido: ele tem uma visão de Jesus com os apóstolos em que Jesus se dirigia a Cícero e dizia: “Você Cícero tome conta dessa gente”. Neto, (2009:44). Cícero toma essa mensagem como um recado de Deus, mas ainda aguardava “ordens” do bispo para assumir uma paróquia.

Na época, destaca-se o trabalho social que Ibiapina desenvolvia nas Casas de Caridades e em que era perseguido desde 1869 pelo bispo do Ceará. Seu amigo José Marrocos, que havia sido expulso do seminário, incentivava a mística popular em relação à figura de Ibiapina. Marrocos dirigia o Jornal “A Voz da Religião no Cariri” em que propagava as maravilhas ocorridas em um distrito da Vila de Barbalha, vizinha ao Crato. Anunciava que nas terras do Araripe estariam ocorrendo admiráveis curas advindas da fonte de águas medicinais com a benção de Ibiapina. “Remédio de pobre deixa de ser caminho da sepultura”.

É anunciada uma série de “milagres” que eram destacados nas páginas do jornal do ex- seminarista. Após um ano Cícero ainda não tinha uma paróquia de referência e ele foi procurado para rezar a missa do ano novo numa capelinha, erguida em homenagem a Nossa Senhora das Dores. Cícero chega a esse ambiente, marcado pelas romarias e ao mesmo tempo pela ofensiva do bispo às casas de caridade de Ibiapina. Cícero aceitou e celebraria naquele lugarejo sempre que retornasse ao Crato. Embora tivesse planos de voltar a Fortaleza e talvez passar a lecionar no seminário, sentia que estava dando inicio ao sonho em que Jesus lhe aparecera pedindo para tomar conta daquela gente. O lugar era aquele onde estava erguida a capelinha a Nossa Senhora das Dores. Cícero passa a residir junto de sua mãe e suas irmãs, no lugarejo denominado Juazeiro.

Cícero entrava também em um campo escorregadio. Por um lado abraçava a causa e iniciava sua batalha de combater o pecado e propagar os bons costumes. Inspirado na ação de Ibiapina, Cícero Romão não demorou em recrutar um grupo de beatas, que passou a auxiliá-lo na tarefa de propagar a palavra de Deus. Entretanto, de Fortaleza, o bispo permanecia atento àquele catolicismo popular que ele considerava um semeadouro de fanatismo religioso. Havia perseguição e ordens para fechar Igrejas. Ele não conseguia fechar as casas de caridade construídas à custa da fé e do suor coletivo de milhares de devotos, então estrategicamente ele passou a controlá-las diretamente. No final daquele ano, Ibiapina se despede do povo em carta escrita aos irmãos e entrega as casas às mãos do senhor Bispo.

Com o afastamento de Ibiapina, dom Luiz pareceu sentir a situação sob controle, inclusive, em relação ao Cícero Romão. De qualquer forma, Cícero sempre procurava conciliar à sua maneira às normas da Igreja com as demandas da “gente” do Juazeiro.

Padre Cícero procede com sua missão de padre. Ele tornou-se padrinho, profeta, conselheiro, romeiro, o Moisés cujos ensinamentos são transmitidos em linguagem conhecida e “conservada” pelos romeiros de geração a geração. Para os romeiros um santo que não chegou a ser canonizado.

Seu papel de conselheiro não pertence ao passado e os conselhos desse padrinho vivem. Sua função de conselheiro se reproduz nos atos diários dos fiéis e se exteriorizanas romarias. Mesmo não estando no Juazeiro, as pessoas cumprem suas devoções em outros altares aos quais eles o associam, como o fazem nos altares dos Santuários onde se veneram Frei Damião, Ibiapina e a Sagrada Família, na região do Brejo.

O padre Cícero se destaca por ter apresentado características importantes em sua vida. Os acontecimentos marcaram sua vida religiosa como também sua trajetória política. Trata-se de um padre que reunia papéis diferenciados: de profeta, de sacerdote-ministro dos

sacramentos de pastor. Fenômenos como o “céu”; a “terra”, a “luta” marcam sua vida entre a população romeira. Em Salatiel (2007: 132) consta uma análise interessante a esse respeito. Esse autor associa o profeta às qualidades de “vidente –conselheiro”, conforme se destaca nos anos de 1872, quando o padre tem o sonho com Jesus e os apóstolos; a visão celestina, sob a qual ele decide permanecer no Juazeiro; o sacerdote em 1889, quando sua atuação de ministro do culto envolve o “milagre”, o caso que envolve a beata Maria de Araújo e a hóstia consagrada que se transforma em sangue. Produz-se uma conexão simbólica entre a humanidade, o Cristo sofredor, morto na cruz e o pastor, o líder político de 1914, quando ele decide lutar no mundo contra “Satanás”. Essa luta se expressa quando o padrinho se envolve na atividade política para a emancipação do Juazeiro do município do Crato, com a participação de Dr. Floro Bartolomeu, seu opositor, o “Satanás”. Portanto, a partir do pacto com os coronéis do Cariri, em 04 de outubro de 1911, o Padre Cícero conseguiu reunir, em torno de si, os chefes políticos que antes viviam de mútuas agressões. Ele assume o papel de pastor e condutor do povo. Neste sentido, o padre tem uma atuação extremamente destacada em sua época e não escapou às perseguições da hierarquia da Igreja católica. Na véspera da revolução de 30, o padre teve sua função sacerdotal anulada, com a suspensão da ordem desde agosto de 1892. Entretanto, sua função profética, de conselheiro vidente, milagreiro, homem divino, expressão viva dos “mistérios” de Juazeiro permanecia em destaque. O padre Cícero tornou-se, na verdade, um padrinho dos deserdados.

Ele nunca desmentiu ou relativizou a fama de milagroso que o povo lhe atribuía. Adaptou-se à situação. Dava conselhos de ordem moral aos visitantes, mas falava-lhes também de questões de saúde e de higiene. Conselhos caseiros e elementares, sem nenhum caráter direto de curandeirismo. (...) o que já era suficiente, para reforçar nos romeiros, sua fama de pai dos pobres, enviado por Deus para minorar o sofrimento dos sertanejos.

(FERES 1990: 257)

Para esse autor, o Juazeiro era de fato uma cidade santa, presidida por um santo Patriarca, que era padrinho dos doentes, dos desabrigados, dos oprimidos, dos que tinham fome, dos criminosos e dos pecadores, em geral. Esses romeiros, taxados de fanáticos pela sociedade culta do litoral, se consideravam apenas afilhados do padre Cícero. Atuando desta forma, o Padre Cícero atraia pessoas de diferentes localidades e estados. Alguns escreviam ao Padre pedindo permissão para virem a Juazeiro e ele sempre os recebia de forma acolhedora.

Para os devotos que mantêm suas crenças nos ícones religiosos, dentro do possível resgatado do imaginário a respeito do padre Cícero, ao lado dos depoimentos de graças,

declarações de sonhos e visões, “esse imaginário” vai além da interpretação reducionista que coloca o catolicismo popular preocupado apenas com a salvação da alma. Para os devotos, há uma materialização da fé em forma de auxílios diversos em distintos momentos e fatos de suas vidas. Constatamos que na história de Cícero e na história de Ibiapina há sinais de “Uma Nova Teologia”, uma antecipação de valores, práticas que demonstram daquilo que posteriormente se veria na Teologia da Libertação, divulgada pelo Concílio Vaticano II. Muitas características desses líderes religiosos, vividas ou apreendidas, são lembradas e trazidas para o contexto atual, como se o tempo não significasse obstáculo para fazer dessas lideranças almas vivas no presente.

Há uma associação entre essas “almas Santas” e os curadores, que verificamos nas práticas cotidianas dos devotos. O curador falecido também se faz presente, de forma similar, embora em vida não tenha sido um religioso consagrado ao ministério sacerdotal. Dialogamos entre vidas e entre séculos. No entanto, traços identidários são reveladores de valores religiosos - como dedicação à oração, fé, fidelidade aos ancestrais, saberes específicos, mediunidades – dentre outros, tornam comuns e marcam suas vidas, quando agem unificando almas, funções e formas de atuação - falas, parábolas, pregações e posturas positivas diante da vida e da morte trazem os líderes religiosos para a contemporaneidade. No caminho, vinculam-se os sinalizadores da glória aos obstáculos da perseguição e dos sofrimentos. São vidas individuais, realizando-se em volta do coletivo. Um coletivo que não se fecha à sociedade dos humanos, mas que se estende à natureza; que anuncia possibilidades de uma “ecologia religiosa”, modelando paisagens em que o homem surge como extensão da natureza, sem sobre posicionamento. Os líderes religiosos fazem do local de vida um local “sagrado” e realizam a sacralização do ambiente em sua totalidade. “As trajetórias individuais são também trajetórias coletivas” (BOURDIEU 1984). A isso queremos acrescentar um sentido de coletivo ampliado em que as crenças são mantidas em comum, para alguns pelo carisma, para outros por sua inserção em meio à população religiosa. Cícero, Ibiapina e Frei Damião, bem como José Avelino, mantêm-se referências no contexto atual da cura religiosa.107

Outras histórias também têm demonstrado relevância para a análise. Algumas serão citadas na descrição do processo de cura e das “graças alcançadas”. As interrelações quebram

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Em Bourdieu (1986) o fato de que a vida se constitui um todo, um conjunto coerente e orientado, que pode e deve ser apreendido como expressão unitária de uma “intenção subjetiva e objetiva, de um projeto. Um projeto que reflete um explícito daquilo que é implícito nas formas como as pessoas se apresentam em seus contextos. O “desde então”, “desde pequeno”, “ desde sempre”, fatores que segundo Bourdieu (1986) se fazem presentes nas diferentes biografias. A ordem cronologia é também uma ordem lógica, desde um começo, uma origem, num duplo sentido de ponto de partida, de início, mas também de princípio, de razão de ser, de causa primeira.

um paradoxo e propõem uma união de “diferentes” que confirma algo mais amplo no plano da religião, tal qual tratou Durkheim (1989: 79), quando afirmou que ”uma religião é um sistema solidário de crenças seguintes e de práticas relativas a coisas sagradas, ou seja, separadas, proibidas; crenças e práticas que unem na mesma comunidade moral, chamada Igreja, todos os que a ela aderem”.

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