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Parte I – Estado da arte

V. 3 A ética profissional

Como vimos, definimos a ética como padrão de conduta, norma social, indicador de comportamento adequado. A ética é uma disciplina normativa cujos objectivos são prescritivos e avaliativos, consistindo a sua intervenção na crítica dos padrões de conduta que se consideram adequados. A ética é a análise crítica do valores morais que permitem distinguir os campos do bem e do mal. Quando limitamos a esfera da ética a um determinado grupo socio-profissional, definimos a ética profissional como dizendo respeito à análise dos comportamentos no âmbito de uma determinada profissão, e analisando a rede específica de interrelacionamentos que nela se tecem.

A questão da responsabilidade do cientista e do bom desempenho da sua profissão não tem deixado de interessar diversos autores da actualidade. A permanência desta temática e o crescente interesse pela mesma prende-se com o questionamento de que tem sido alvo a ciência e a sua importância nas sociedades ditas de risco. O aumento de interesse deriva também do número crescente de casos polémicos em torno dos desenvolvimentos cada vez mais poderosos de que a ciência e técnica moderna são capazes, e que os mass media descreveram vigorosamente. Por outro lado, os caminhos da ciência e da tecnologia cruzaram os do ser humano no seu âmago, com a emergência da questão genética sobretudo, e das ciências da vida de forma mais generalizada. A questão ecológica foi também uma fonte de pressão para colocar o questionamento dos efeitos da ciência e da tecnologia na agenda política e mediática. As ligações por vezes perigosas que se estabeleceram com a indústria e o sector empresarial, permitiram a prossecução de muitos projectos científicos mas também orientaram o curso da investigação para temáticas com impacto comercial, mais do que trabalharam para o progresso científico num sentido weberiano329. Também se reconheceu que a ciência é uma actividade que se desenvolve num contexto social, não só porque depende de

fundos públicos e (cada vez mais) privados mas também porque necessita do apoio e da confiança do público para desenvolver a sua actividade. "... these applications and implications of science entail duties of public responsibility and accountability"330. De forma global, podemos dizer que o questionamento da ciência abalou a confiança dos cidadãos nas intenções daqueles que fazem a ciência e nas entidades que os acolhem ou que os financiam.

Os anos oitenta foram palco da emergência da questão ética nas mais diversas profissões, a ciência não constituindo excepção. A Research ethics ou Conduta Responsável na Investigação Científica exemplifica claramente o modo como a questão ética se aplicou à profissão de cientista. Pareceu, aliás, ter sido encontrado o consenso em torno desta abordagem, a da ciência enquanto profissão, já que esta é uma carreira, uma vocação, tem responsabilidades públicas e por isso presta contas da sua actividade, gozando ao mesmo tempo de autonomia e auto-regulação dentro do respeito pelas suas responsabilidades331. Muitas profissões e instituições muniram-se de códigos de conduta, como instrumento de (auto)-controlo. Estes são "a public expression of their commitment to ethical behaviour"332. Os cientistas, no entanto, nem sempre seguiram este movimento, insistindo em ver os casos de desrespeito como excepções anómalas. Logo, podemos afirmar que a questão ética não colheu um apoio generalizado: corresponde a preocupações societais, mais do que a um questionamento do agente principal da investigação científica, o cientista. Este último insiste em afirmar a objectividade da ciência e ao não cruzamento desta com questões de valor, que o debate ético suscitaria. Deste modo, as relações que se tecem no interior da comunidade científica não são analisadas no prisma ético, apenas se permitindo a inclusão deste questionamento na relação da ciência com a sociedade. No entanto, o reconhecimento de padrões éticos aplicados ao desempenho profissional tem um duplo papel, já que promovem a auto-regulação e também o exercício da responsabilidade pública333.

“Aquilo que diferencia um investigador de um outro cidadão é o acesso privilegiado que tem a um conjunto especializado e socializado de saberes. (...) Os conhecimentos ligados àquilo que se chamam em geral as ciências fundamentais podem ser considerados como conhecimentos a respeito dos limites (ao menos os actuais) das

330 Shamoo e Resnik, 2003, 6 331 Shamoo e Resnik, 2003 332 Shamoo e Resnik, 2003, 8 333 Shamoo e Resnik, 2003

acções possíveis dos homens. E os conhecimentos científicos podem ser vistos como representações daquilo que é possível fazer. Segue-se daqui que estes saberes representam um poder, em diferentes níveis: o poder prático de realizar certas experiências no laboratório ou certas tecnologias na sociedade, o poder hierárquico daqueles que sabem (ligado à distinção entre trabalho manual e trabalho intelectual), o poder também de partilhar mais ou menos este saber, e o poder enfim de utilizar este saber para entrar nos debates ou nas acções socio-políticas”334.

Dos autores que optámos por destacar evidencia-se um ponto de vista: entender a ciência enquanto profissão, logo destacam-se as relações que o cientista desenvolve no cumprimento da sua função. A abordagem ética centra-se no universo profissional do cientista, apesar de não serem totalmente descurados os aspectos de âmbito social e societal. São diversas as causas apontadas para que surjam condutas incorrectas, do ponto de vista ético, no exercício da profissão de cientista. O facto da carreira científica privilegiar critérios de avaliação quantitativos (o maior número de publicações) pode funcionar como incentivo a práticas nem sempre muito correctas mas que resultam em publicação. O lema de "publish or perish" traduz esta situação real. Em segundo lugar, os mecanismos de auto-correcção e controlo (tais como o sistema de peer-reviewing ou as regras de publicação em periódicos científicos) que a comunidade científica criou não têm sido eficazes no controlo de eventuais fraudes. Igualmente, o sistema de financiamento da ciência pode originar condutas menos correctas com vista à obtenção dos (escassos) fundos disponíveis. A indústria, em particular, e o meio empresarial em geral compreenderam este elo de fragilidade e constituem-se como fontes de financiamento alternativo, pressionando igualmente os rumos da investigação científica. Igualmente, assistimos a um crescente mercantilismo na produção científica, sobretudo aquela que pode ser patenteada e desse modo transformar-se em fonte de rendimento para quem detenha a patente. Por fim, a ausência de formação ética nas carreiras científicas acresceu a propensão para o não questionamento ético dentro da comunidade de pares, reforçando o seu fechamento em relação à sociedade e a questões societais.

No entanto, a ciência é um empreendimento colectivo e como tal desenvolve-se em contexto social e político. Nesta óptica, é impossível manter esta atitude de fechamento em torno do mito da objectividade que tornaria o seu saber intocável. Para

Shamoo e Resnik335, a separação entre factos e valores, separação que instala o primado da objectividade científica sobre outros conhecimentos, separação ainda que é herdeira do texto sobre as duas culturas de Snow336, essa separação tem inúmeras consequências no modo como a ciência se relaciona com a sociedade. O facto de perpetuar o mito da neutralidade valorativa da ciência tem levado a uma desresponsabilização da ciência e dos cientistas em relação às consequências que o seu trabalho pode trazer para a sociedade. Nesta óptica, é natural que as problemáticas do foro ético não conheçam um grande desenvolvimento. Todo o saber tem implicações na sociedade logo toda a investigação científica tem importantes consequências sociais, morais e políticas337. "Science is a society that operates within society"338. O questionamento ético torna-se necessário. A confiança na ciência a isso obriga.

A necessidade de um questionamento ético compreende-se melhor se apresentarmos os grandes objectivos da ciência. Segundo Resnik339, encontramos duas ordens e objectivos, epistémicos e práticos. Os primeiros desdobram-se nas seguintes categorias:

• dar uma descrição precisa da natureza • desenvolver teorias e hipóteses explicativas • fazer previsões confiáveis

• eliminar erros e perspectivas erróneas

• ensinar ciência à próxima geração de cientistas

• e informar o público sobre os factos e as ideias científicas.

No que diz respeito aos objectivos práticos, estes são essencialmente a resolução de problemas específicos a cada disciplina. É com base nos primeiros, os objectivos epistémicos, que Resnik irá propor doze posturas (ou padrões) de conduta ética na ciência. Antes de os apresentar são necessárias algumas precisões.

Estes doze indicadores de boa conduta inspiram-se no ethos mertoniano, alargando o seu âmbito. Resnik desdobra a conduta do cientista em três grandes 335 2003 336 Snow, 1996 337 Resnik, 1998, 5 338 Resnik, 1998, 35 339 1998, 39

situações, a saber: nas relações laborais dentro do laboratório, na publicação dos resultados e na relação com a sociedade. Comum às três, o padrão da honestidade merece um tratamento de destaque. Por outro lado, é conveniente não confundir os objectivos da ciência com os do cientista enquanto indivíduo. A este nível podemos encontrar outro tipo de motivações mais centradas na pessoa do que na actividade ou no progresso da humanidade. Por fim, de referir que todo o empreendimento científico concretiza-se num determinado ambiente científico que por sua vez tem os seus objectivos próprios e que podem colocar várias questões, ou entraves, ao processo de investigação.

Quadro 1: Padrões de conduta ética na ciência340

Padrão Descrição Observações

Honestidade Dever de não fabricar, falsificar ou deturpar dados ou resultados, sendo objectivo, imparcial e verdadeiro em todos os aspectos do processo de investigação

É a mais importante das regras éticas da ciência, sem a qual a ciência não atinge os seus objectivos. É o pilar para a confiança.

Cuidado Dever de evitar erros, sobretudo na apresentação dos resultados, evitando preconceito e conflitos de interesse.

Em princípio o sistema de peer-reviewing minimiza a ocorrência desta situação.

Abertura Dever de partilhar os dados, resultados, métodos, ideias ou técnicas,

permitindo a revisão do trabalho pelos pares e consequentemente estar aberto às suas críticas

Não se aplica em todos os ambientes de investigação, tal como a Indústria ou a investigação militar.

Liberdade Possibilidade de

desenvolver qualquer tema de investigação, e de rever as ideias anteriores.

Colisão com regimes políticos ou com a religião, por exemplo.

Crédito Deve ser dado quando é merecido e o contrário também é válido. Mecanismos de reconhecimento próprios da ciência.

Educação 1.dever de educar a próxima geração de cientistas para que façam boa ciência. 2.dever de educar e informar o público sobre a ciência.

Pode não se aplicar à totalidade dos cientistas. Constitui uma opção.

Responsabilidade social Devem evitar causar danos à sociedade e procurar produzir benefícios sociais. Devem ser responsáveis pelas consequências da sua investigação e informar o público das mesmas.

Pode não se aplicar à totalidade dos cientistas. Constitui uma opção. O cientista pode intervir na sociedade em duas qualidades: como tal, e nesse caso é um perito, ou como mero cidadão

implicado, situação em que não se espera

reconhecimento de uma perícia. É uma opinião subjectiva.

Legalidade Dever de obediência às leis

que regulam o seu trabalho. Apesar do campo do legal não estar contido no moral. Oportunidade Não deve ser negada

injustamente a

oportunidade para utilizar os recursos disponíveis ou para progredir na carreira.

Discriminação sexual, racial, de nacionalidade, entre outras.

Respeito mútuo Dever de tratar colegas com respeito.

Ciência é um

empreendimento colectivo. Eficiência Recursos devem ser usados

eficientemente.

Os recursos tendem a ser escassos e cada vez mais dispendiosos.

Respeito pelos sujeitos investigados

Não devem violar os direitos e a dignidade dos sujeitos humanos alvo de experiência nem maltratar os animais-cobaia.

Colocam-se aqui inúmeras questões na definição dos limites de intervenção aceitáveis.

Das três situações onde se podem colocar problemas de conduta ética, interessa- nos especialmente a do cientista na sociedade, considerando o tema desta investigação. A responsabilidade social reconhece que os cientistas têm o dever, moral, de servir a sociedade em que se inserem. Mais concretamente, têm o dever de equacionar e responsabilizar-se pelas consequências do saber que produziram341. Encontramos ainda o dever de educar e informar o público sobre questões e consequências da ciência. Por outro lado, é ainda uma manifestação de responsabilidade social o contributo que possam dar para a definição de políticas científicas. No entanto, frisa o autor342, o exercício da responsabilidade social é optativo, depende da vontade e da convicção do cientista. Pode prender-se ainda com uma questão de vocação. Deste modo, os padrões da Educação e da Responsabilidade social encontram-se, à partida, fragilizados. A dificuldade surge automaticamente, na medida em que as situações enunciadas promovem com alguma frequência conflitos de interesse no próprio cientista, que não deixa de ser um cidadão, por vezes até interventivo. Do papel de cientista espera-se apenas a emissão de factos devidamente sustentados e a apresentação das diferentes correntes de pensamento sobre um determinado assunto. Essa é a expectativa do público e a razão da sua confiança nele e nas perícias proferidas.

A questão do financiamento público da ciência também contribui para uma análise da relação entre o cientista e a política, logo com a sociedade. Do ponto de vista ético, e além da questão do eventual conflito de interesses que já referimos, o contributo dos cientistas na definição das políticas para o seu sector levanta a questão da sua capacidade para justificar o trabalho feito e a respectiva aplicação das verbas investidas. Por outro lado, refira-se que, actualmente, as políticas para a ciência privilegiam as temáticas com fortes aplicações comerciais, ao nível de tecnologias, engenharia ou medicina. Os argumentos de um investimento no aumento do conhecimento que será legado às gerações vindouras ou o do contributo para o desenvolvimento intelectual e educativo já não colhem grande impacto nem criam uma adesão mobilizadora343. Este aspecto pode ser relevante se confrontado com o princípio de responsabilidade tal como exposto por Jonas344. O facto do argumento económico ter aceitação generalizada pelos

341 Resnik, 1998, 147 342 Resnik, 1998 343 Resnik, 1998, 168 344 1984

decisores políticos pode dificultar a emergência de raciocínios assentes na precaução e na garantia de qualidade de existência às gerações que seguem.

A estes valores, Shamoo e Resnik345 acrescentam, numa obra posterior, sete itens. Nem sempre correspondem a um aumento da cobertura de situações éticas mas apenas um desdobrar ou uma precisão em relação aos já apresentados.

Quadro 2: Padrões de conduta ética na ciência (alargamento)346

Padrão Descrição Observações

Objectividade Integrá-la a todos os níveis do processo de

investigação, evitando sentidos erróneos

Constitui um dos principais padrões que definem a superioridade e a

especificidade da ciência em relação a outros tipos de conhecimento.

Integridade Dever de actuar desse modo em todos os actos de investigação.

A relacionar com o Cuidado, tal como foi descrito no quadro anterior, apesar destes autores também considerarem esse padrão.

Confidencialidade Respeito pelo segredo contido em alguns produtos da ciência.

Padrão que resulta da crescente intersecção com a indústria.

Respeito pela propriedade intelectual

Honrar patentes, direitos de autor e outras formas de propriedade intelectual. Requerer autorização prévia para utilização de dados não publicados.

A relacionar com o padrão do Crédito, anunciado no anterior quadro. Resulta também da crescente comercialização dos produtos da ciência. Liberdade De pensamento e de

questionamento.

Valor a promover por instituições, governo e investigadores.

345 2003

Competência A dois níveis: para o investigador, o dever de se actualizar

permanentemente, para o conhecimento o aumento constante das suas potencialidades.

Saber como acumulação de competências.

Cuidado com os animais Mostrar o respeito apropriado pelos animais usados em experimentação científica. Limitar a sua utilização à estrita necessidade. Protecção dos sujeitos

humanos

Minimizar os riscos neste tipo de experimentação, respeitando sempre a dignidade, privacidade e autonomia os sujeitos. Precaução especial com as populações vulneráveis Empenhar-se numa distribuição justa dos benefícios e encargos da investigação.

Desdobramento e

alargamento da definição do padrão do Respeito pelos sujeitos envolvidos. O alargamento observado parece ser justificado pela consciencialização da nem sempre justa distribuição dos avanços da ciência.

Ao centrarmos a abordagem da ética na investigação científica na perspectiva de que a ciência é uma actividade profissional como qualquer outra, deparamo-nos com benefícios e perdas. Como aspectos positivos, a abordagem da ética da ciência pela via da profissão traz uma moldura de questionamento e de avaliação bastante extensa e garante-nos a abordagem de todos os aspectos éticos com que o investigador se pode deparar. Esta abordagem centra-se no comportamento do investigador e individualiza a análise. Cada cientista é um caso de observação face a uma listagem de critérios morais. Ao contrário, esta abordagem traz também algumas desvantagens se considerarmos a perspectiva identificada neste trabalho: a de cruzar o exercício da responsabilidade social com a promoção de comportamentos contra o risco. Com efeito, para se conseguir tal enfoque é necessário avaliar o comportamento do cientista na indução, noutros sujeitos, de comportamentos adequados face aos riscos existentes. É uma perspectiva centrada na relação de comunicação e no conteúdo comunicado, na inter- relação com os públicos implicados. Esta dimensão não está devidamente contemplada

na perspectiva da Research ethics que se focaliza nos parâmetros de desempenho exclusivamente profissional. Parece então delinear-se aqui a ideia de que a comunicação do risco se situaria fora do âmbito estritamente profissional, não sendo abarcada por critérios de avaliação da mesma nem constituindo, forçosamente, uma mais valia reconhecida.

A consequência mais imediata que advém da não inclusão da comunicação do risco na definição do âmbito profissional do cientista é a que nos evidencia a pouca valorização da mesma pelos cientistas, como se estes, que são alegadamente os produtores da ciência, não se sentissem implicados na difusão dos riscos que podem acontecer numa determinada sociedade. Alerta-nos para a necessidade de abordar esse exercício de comunicação através do prisma da responsabilidade social e da ética e perceber de que forma a reflexão sobre a sociedade actual se concretiza em práticas comunicativas específicas. Entendemos que a comunicação da ciência pode ser uma manifestação do entendimento do que é a ciência, de como é que afecta aqueles que com ela lidam e de como é que pode ser o motor de uma cidadania que passa, reconhecidamente, pela ciência. De onde se depreende a necessidade de articular com a reflexão sobre o modo de governância da ciência que procura afirmar-se como cada vez mais dominante, o da participação dos cidadãos.

VI – Governância da ciência