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2 – Estratégias de comunicação na divulgação científica

Parte I – Estado da arte

VIII. 2 – Estratégias de comunicação na divulgação científica

É através das trocas comunicativas que as representações sociais adquirem a sua existência e cumprem a sua funcionalidade social507. As estratégias de comunicação da divulgação científica podem ser inseridas numa tipologia e revestem portanto de formas, e objectivos, diferentes. A matriz de Mary Douglas da Análise Cultural (que apresentámos no capítulo IV), organizada em torno de duas dimensões, Grade e Grupo, que orientam a análise das quatro culturas que podem habitar as organizações científicas. Douglas utiliza dois critérios: o grau de estruturação dos papeis individuais (Grade) e o grau de coesão das unidades em causa (Grupo). Um estudo português508 partiu deste mesmo modelo para analisar as modalidades de organização das diferentes estratégias de divulgação da ciência, propondo quatro estratégias: Difusão, Propaganda, Propagação e Contra-propaganda (os três primeiros são processos descritos por Moscovici para analisar as estratégias de comunicação onde “circulam” as representações sociais). A cada uma destas estratégias corresponde um conjunto de expectativas, por parte de quem as promove, e que não são dissociáveis dos modelos de ciência que têm subjacente. Dada a pertinência destes resultados, estes são aqui explanados com algum detalhe509.

Ao modelo da Difusão faz-se corresponder uma lógica individualista (dita de mercado em Douglas), onde a comunicação se processa quase essencialmente entre pares e de forma fluente. Encontramos aqui a defesa dos mecanismos tradicionais de acreditação da comunidade científica, como o peer-reviewing, e a emergência doutros, mais informais e que a Internet facilitou, onde a competição entre membros da mesma comunidade é fomentada através do cumprimento de regras claramente definidas e cuja infracção é moral e fortemente sacionada (como vimos no capítulo sobre a ética profissional). Estes mecanismos tradicionais confluem para uma tendência da investigação para se isolar sobre si, já que esta estabelece as suas regras, auto-justifica- se, auto-censura-se e auto-gratifica-se510. A comunicação para o exterior das redes de investigação não é isenta de polémica. Quando se dá, destina-se quer a ignorantes

507 Moscovici, 1976, cf. Jesuíno e Diego, 2002, 248 508 Diego, 1996, cf., Jesuíno e Diego, 2002, 249

509 Jesuíno e Diego, 2002, 250 e seguintes. Para evitar a repetição sistemática desta mesma referência, e

salvo indicação em contrário, indicaremos apenas o número da página correspondente enquanto apresentarmos os quatro modelos em causa.

especializados quer a ignorantes generalizados511. No entanto, como vimos com Roqueplo, nem sempre a difusão do conhecimento leva o conhecimento aos destinatários, antes encena a distância que separa, e separará, os especialistas dos profanos. Em termos de objectivo, difundir o conhecimento é uma tarefa meramente informativa com vista à construção de uma opinião pública que, como vimos, se espera que apoie a actividade dos cientistas. Aliás, a atitude dos cientistas em relação à difusão científica pode ser ilustrada pelo conceito de double-bind, de Bateson, onde não há nem aceitação nem rejeição inequívoca da dita divulgação. Igualmente, o modelo da difusão, que os autores colocam enquanto característico de um paradigma “ortodoxo”512 da divulgação da ciência, e que se materializa através de uma ideia de défice cognitivo, está associado à ideia de literacia, sendo esta o desafio a alcançar através da mobilização em torno da divulgação científica.

Ainda neste modelo, chama-se a atenção para os resultados de um inquérito a cientistas513 onde a divulgação científica é entendida como uma actividade complementar às de investigação e de ensino, extensão natural na medida em que só assim os cientistas confiam nos conteúdos difundidos, o que deve ser interpretado como um sinal do fraco desenvolvimento do jornalismo científico, em Portugal, persistindo uma relação polémica entre cientistas e jornalistas (de desconfiança mútua, acrescentamos). Mas, apesar de actividade complementar, vimos que a lógica de funcionamento da actividade científica, dita de mercado, não valoriza esta prestação em termos de carreira, um aspecto fortemente valorizado num funcionamento segundo regras mercantis. Este facto não só coloca a divulgação científica como exterior à profissão de cientista (vimo-lo no capítulo sobre a ética profissional) como prejudica a institucionalização desta prática514. Concluindo, “as pessoas que vivem numa sociedade de base científica e tecnológica devem possuir um certo grau de informação científica, que lhes permita ter opinião sobre os avanços e possibilidades da ciência, constituindo condição indispensável de cidadania, que merece ser garantida como direito social, que

511 “A ciência moderna produz conhecimentos e desconhecimentos. Se faz do cientista um ignorante

especializado faz do cidadão comum um ignorante generalizado”. Santos, 1987, 55

512 253

513 Diego, 1994, cf. 255 514 256

também é cultural”515. Reencontramos aqui, explicitamente, o esprírito da Royal Society of London516 sobre a compreensão pública da ciência.

O segundo modelo, da Propagação, cuja estratégia “visa o alargamento das redes interdisciplinares através do qual o cientista-autor logra comunicar não apenas com os seus pares, atingindo também franjas dum público culto não necessariamente especializado”517, ocupa o extremo oposto da diagonal positiva de Douglas, num modelo institucional da ciência, assente na imagem da hierarquia. A comunicação para o exterior situa-se ainda num perímetro dos especialistas e através da mesma, é possível “alargar as suas audiências e reforçar alianças, tanto públicas como institucionais”518. Este modelo também é chamado de interdisciplinar, procura contrariar a ultra especialização do conhecimento científico, construindo a comunicabilidade entre cientistas de zonas de conhecimento diferentes. Este modelo integra ainda um tipo de comunicação destinada aos poderes político e económico e que, se inscreve na lógica actual de financiamento da actividade científica, recorrendo por vezes a “estratégias de marketing por parte do corpo disciplinar”519. Há aqui uma referência explícita à noção de “arena transepistémica”520, que define a comunidade científica, o que inclui “cientistas e não cientistas, abrangendo argumentos e objectivos tanto de natureza ‘técnica’ como de natureza ‘não técnica’ e organizadas em torno de ‘relações de recursos’. As interacções entre cientistas não são, com efeito, apenas ‘cognitivas’, tal como as relações com não cientistas não se limitam a transferências monetárias ou de outra natureza e regra geral categorizadas como ‘sociais’. Em ambos os casos as interacções processam-se em torno dos recursos, ou seja, como sublinha a autora, ‘são relações a que se recorre ou de que se depende para efeitos supletivos ou para apoio’”521. A lógica da propagação está, como se depreende, centrada nos cientistas e no benefício destes e da ciência, e não corresponde ao cumprimento de missão pública. E alguns aspectos, e sendo um modelo de comunicação aberto (mas cioso de controlar o que se diz sobre a ciência), pode encontrar-se uma divulgação intervencionista, e que promove um conhecimento mais generalizado sobre as possibilidades do conhecimento científico, no intuito de harmonizar uma visão da ciência na sociedade. Concluindo, “a 515 257 516 Bodmer et al, 1985 517 257-258 518 258 519 260 520 Knorr-Cetina, 1999 521 Knorr-Cetina, 1982, 119, cf Jesuíno, 1995, 6

importância atribuída à comunicação da ciência que esta estratégia pressupõe assenta no pressuposto de a ciência tem de ser partilhada, beneficiando de uma reduzida distância entre conhecimento especializado e outros conhecimentos e actores sociais que reconhecendo a sua importância o legitimariam, enquanto common good necessário”522.

Na diagonal negativa da matriz de Douglas encontramos duas lógicas minoritárias que se situam ora no núcleo radical de uma instituição ou, no outro extremo da diagonal, voluntariamente excluídos e marginalizados. Pelo que, em termos de estratégia de divulgação encontramos dois opostos, a propaganda e a contra- propaganda.

O modelo comunicacional da Propaganda corresponde a uma lógica de funcionamento da comunidade científica enquanto “enclave”, e a legitimação social da instituição científica é o seu principal objectivo, adquirindo a comunicação um carácter dogmático. A divulgação científica, que é praticamente inexistente aqui, tem a preocupação de estabelecer fronteiras claras em relação ao mundo científico, contrariando as tentativas de abertura a outras “cidades”. A comunicação é então essencialmente canalizada para o interior da comunidade científica, para o processo de socialização dos novos admitidos e, quando aberta ao exterior, adquire os contornos de uma comunicação eufórica sobre as virtudes do progresso da ciência. Muitos dos mitos que contribuem para manter ciência e cientistas afastados do senso comum são aqui devidamente trabalhados. Neste modelo permanece a convicção de que a uma maior literacia científica se faz corresponder uma atitude positiva em relação à ciência, apesar dos estudos que demonstram que esta linearidade não ocorre na realidade523. Assim, este sistema de comunicação tende a”autopromover uma imagem da ciência e dos cientistas, inevitavelmente infalível, essencial e inacessível”524.

O último modelo de comunicação pública da ciência, e que Moscovici não contemplava é chamado de Contra-propaganda e, como dissemos, situa-se no extremo oposto da diagonal negativa. Corresponde a um modelo marginal de organização da instituição científica, composta por uma minoria dissidente de uma ciência normalizada. É, por isso mesmo, um espaço que pode albergar alguma inovação. Acrescentam, a contra-propaganda é ainda mais um local de contestação e de denúncia, visando abalar a

522 262

523 Peters, 2000 524 268

credibilidade e a confiança na ciência”525. Esta contestação faz-se, tradicionalmente, a partir das ciências sociais, a partir do seu “estatuto periférico”526. Não de toda a ciência social mas daquela que se situa no paradigma emergente, pós-moderno, da sociologia do conhecimento, que questiona os pilares da racionalidade subjectiva. Este modelo de divulgação, residual, e reconhecidamente relevante numa sociedade cada vez mais desperta para o incomensurável alcance da tecnociência. Este modelo de comunicação também é identificado por sociopolítico ou de divulgação intervencionista. Aqui, o cientista tem uma intervenção social, propondo uma meta-reflexão sobre a ciência. Por isso, este modelo supõe a existência de feed-back por parte do público leigo, numa abertura ampla a outros conhecimentos, que, entrecruzados com o conhecimento científico, propõem “reconstruções criativas”527. A contra-propaganda é o modelo de comunicação da ciência que corresponde a uma concepção interaccionista da ciência. Assenta no debate público e na participação do cidadão enquanto “actor”, onde “ciência e vida quotidiana são duas esferas de produção do conhecimento onde os processos de reificação e consenso têm lugar, na lógica de negociação dos significados, contrária aos modelos decisionistas”528. 525 270 526 Idem, ibidem 527 Irwin e Wynne, 1996, cf. 273 528 Wynne, 1992; Renn, 1992, cf. 275