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5 – O campo científico como local de confluência das temáticas dos Estudos de

Parte I – Estado da arte

I. 5 – O campo científico como local de confluência das temáticas dos Estudos de

52 Irwin, 1995

53 De acordo com Jacobi, 1999, 11, a expressão de vulgarização impôs-se para designar “les tentatives de

diffusion de la science auprès du commun des hommes”.

Identificados os temas que compõem o que habitualmente se denomina de Estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade, há que acrescentar que todos eles se entrecruzam, se encontram interligados e que aliás, esse será um quinto tipo de estudos, aquele que cruza uma reflexão sobre o risco à da ética e responsabilidade social, à governância e à compreensão pública da ciência. E isto porque o mundo da ciência, o que Bourdieu denominou de “campo científico”55, é “l’univers dans lequel sont insérés les agents et les institutions qui produisent, reproduisent ou diffusent (…) la science”. Bourdieu perspectiva uma visão estruturalista do campo científico, preocupando-se com os aspectos macrosociológicos que condicionam o funcionamento de qualquer campo de práticas sociais, e também do científico. “Cet univers est un monde social (…) qui obéit à des lois sociales plus ou moins spécifiques. La notion de champ est là pour designer cet espace relativement autonome, ce microcosme doté de ses lois propres”56. Este espaço de autonomia é o que permite não cair numa alternativa redutora entre “la ‘science pure’, totalement affranchie de toute nécessité sociale”57 e “la ‘science serve’ asservie à toutes les demandes politico-économiques”58.

Este espaço de autonomia é atravessado por diferentes questionamentos: "A tematização pública da ciência e da tecnologia enquanto ingredientes decisivos da sociedade de risco em que vivemos, os discursos de questionamento da legitimidade cognitiva da ciência por parte de diversas correntes do pensamento actual, a dessacralização institucional da esfera científica decorrente de um conjunto de importantes dinâmicas sociais contemporâneas: eis três processos que têm contribuído para colocar, na agenda pública, a ciência como problema social"59. Como denominador comum encontramos o facto destas traduzirem a interligação profunda entre a actividade científica e a forma como esta é recebida e entendida pelo social, enquanto problemática e alvo de discussão.

Acrescentamos a ideia que a produção de objectos científicos e do conhecimento científico convoca três tipos de tecnologias: materiais, sociais e literárias60. O arsenal instrumental que encontramos no dispositivo laboratorial (tecnologias materiais) e que garante o reconhecimento da superioridade cognitiva deste modo de conhecimento 55 2001 ; 1997, 14 56 Bourdieu, 1997, 14 57 Bourdieu, 1997, 15 58 Bourdieu, 1997, 15 59 Costa, 1996, 202

precisa de uma estrutura simbólica que se organiza de modo a cristalizar as formas de credibilidade social do objecto e do conhecimento científico (tecnologias sociais) recorrendo a um trabalho de demarcação ou de fronteira61 que visa preservar o seu terreno próprio mas que está permanentemente em renegociação dos seus limites com outras formas de racionalidade que tendem a impor-se cada vez mais. Por outro lado, as tecnologias literárias são as que permitem situar o conhecimento e objecto científico na memória colectiva da comunidade científica, para que passe a constituir-se como parte integrante de um conhecimento reconhecido universalmente pelos canais formais da comunicação entre pares. São também estas tecnologias literárias que tornam o saber produzido apátrida e impessoal. Pois todo o conhecimento científico se quer global e transnacional, meio de troca entre elementos de uma comunidade científica alargada e dispersa por redes suportadas virtualmente. A organização proposta em termos de “tecnologias” coloca a ênfase na forma como estes processos constrangem o funcionamento da actividade científica em si, moldando-a num formato que se pretende que seja reconhecido universalmente.

Por outro lado, é absolutamente necessário introduzir aqui a distinção que Latour62 faz de ciência e investigação científica, entre a ciência feita e a ciência a fazer- se. Um aspecto é o facto científico como conhecimento finito e circunscrito, outro totalmente diferente é o de uma actividade científica, atravessada pela incerteza, pela sua inscrição num meio social, económico e político e resultante de um processo negocial, sempre em aberto, em reconfiguração. A sociologia da ciência interessa-se pela ciência a fazer-se, pelo acto produtivo da mesma e não pelo conhecimento em si no seu aspecto meramente factual. “A incerteza do conhecimento, que a ciência moderna sempre viu como limitação técnica destinada a sucessivas superações, transforma-se na chave do entendimento de um mundo que mais do que controlado tem de ser contemplado”63. No entanto, ao questionar a primeira é inevitável rever o lugar que o facto científico (a ciência feita) se atribui.

No nosso entender, parte do desconforto dos cientistas em relação à sociologia da ciência parte de uma incorrecta associação, como sinónimos, dos conteúdos de ciência e de actividade científica. “Em essência, a retórica dos resultados consiste em: a) representar a actividade científica pelos seus produtos; b) reduzir os processos

61 Gieryn, 1995 62 2001

científicos à obtenção finalista e cumulativa de resultados; e c) isolar exclusivamente como resultados aqueles que são avaliados a posteriori como êxitos de aplicação”64. Ora, a actividade científica é estruturada pela procura social65 e por isso mesmo sujeita a um processo negocial entre as várias partes envolvidas e interessadas. Entende-se por procura social aquela que é proveniente da sociedade, que se debruça sobre matérias ligadas à investigação científica e que é apresentada ao mundo da ciência com vista a obter uma solução. A ideia de procura social, na actividade científica, contrasta com a perspectiva segundo a qual a ciência seria neutra do ponto de vista valorativo, criada apenas para fins cognitivos. Este ideia veio originar uma distinção ainda hoje fortemente em voga, aquela que distingue a ciência fundamental da aplicada, a primeira isenta de qualquer valor social, a segunda profundamente implicada no seu meio social, procurando responder a uma procura social. Até porque se reconhece que “… a técnica constitui uma mediação essencial da relação da ciência com o real (…). A pesquisa fundamental é tributária do apoio – não marginal – de uma tecnologia cada vez mais requintada”66. De referir, ainda a propósito da separação entre a investigação fundamental e a investigação aplicada que insiste em se manter, que Hottois já caracterizara a dinâmica tecnocientífica como dependente “de uma trama de factores económicos, sociais, políticos e inclusive psicológicos que não estão mais ausentes da investigação fundamental do que o estariam da investigação aplicada”67.

Para Latour68, a ciência pura e objectiva, tal como é sugerida classicamente, corresponde a um modelo de “fazer ciência” estruturado pela oposição entre núcleo duro da ciência e o contexto69, modelo esse que não traduz a actividade de investigação científica. Para esta há que apresentar a actividade científica enquanto parte de uma rede heterogénea com cinco horizontes70: na busca de instrumentos de trabalho específicos a cada disciplina, na constituição de equipas de congéneres ou iniciados, na capacidade de traduzir socialmente a importância da sua actividade bem como na construção de alianças estratégicas com outros sectores económicos que subsidiam a investigação científica. A ligar estas quatro dimensões, encontramos o que permite sustentar a solidez do objecto científico e torná-lo pólo mobilizador dos outros: os conceitos, as ideias 64 Cascais, 2004, 136-137 65 Latour, 2001 66 Hottois, 1992, 21 67 Cascais, 1994, 16 68 2001 69 Latour, 2001, 23 70 Latour, 2001, 25 e seguintes

científicas. Estas não perdem a centralidade que o anterior modelo lhes dava mas tomam uma outra dimensão aqui, pelo papel aglutinador que desempenham no decorrer da actividade científica. “Une idée, c’est précisément ce qui va permettre de tenir ensemble tous les ‘acteurs’ mobilisés (…) et parfois de résoudre les contradictions qui surgissent entre eux. (…) il est impossible de rendre correctement compte des idées scientifiques si on les détache du réseau de relations dans lequel elles prennent sens”71. O modelo de “fazer ciência” coloca a ciência numa estrutura reticular, onde se observa claramente a intersecção entre a Sociedade e a actividade científica, de forma transversal. Esta temática é mais detalhadamente explicada no capítulo dedicado aos modelos de ciência.

II – Concepção da ciência moderna