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Parte I – Estado da arte

II. 5 – Perícia científica

A ciência moderna, como vimos anteriormente, caracteriza-se pela sua possibilidade de transformar a natureza, de provocar a transformação, no âmago do objecto/sujeito intervencionado. Dispõe para isso não só de um método experimental rigoroso como de um aparato laboratorial onde manipula, e por isso controla, os seus objectos de estudo. Assim, o cientista é aquele que conhece aquilo, e apenas aquilo, que produz. O facto de ser laboratorial marca toda a diferença face a outras formas de conhecimento. A passagem pelo dispositivo laboratorial explana a total sujeição do conhecimento às condições de possibilidade do cientista. O conhecimento na era da ciência moderna provém não da experiência mas da experimentação, “a ciência moderna desconfia sistematicamente das evidências da nossa experiência imediata. Tais evidências, que estão na base do conhecimento vulgar, são ilusórias”165, pois faz-se a partir do aparato laboratorial e segundo um método científico que orienta o trabalho empírico. Neste caso, conhecer significa quantificar e medir, “as qualidades do objecto são (…) desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir. O que não é quantificável é cientificamente irrelevante”166, de onde se extrai o carácter objectivo da experimentação científica, argumento que reforça a primazia desta forma de conhecimento. “… a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o

164 Star e Griesmer, 1989 165 Santos, 1987, 12 166 Santos, 1987, 15

carácter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas”167.

O lugar e o destaque da perícia científica numa sociedade são reveladores do modo de relacionamento do poder com a ciência. Apesar do ethos mertoniano assentar numa separação clara entre ciência e política168, hoje em dia esta separação já não é sustentada. A não-separação vem pôr em causa a imagem pública da ciência e dos seus cientistas, considerada que está a hipótese destes se encontrarem ao serviço de políticas que podem não ter uma atitude desinteressada na sua origem. A ideia de verdade, estado a atingir pela actividade científica, é revista e situada no âmago de um processo contingencial por excelência, um processo onde o saber é negociado, "formed not only via interaction among scientists but also by research patrons and regulatory adversaries"169. Ao colocar o saber como negociado estamos a sugerir a importância das relações de autoridade que se estabelecem entre os agentes envolvidos na definição das políticas de ciência.

A relação entre a política e o conhecimento é reequacionada em benefício dos agentes financiadores e reguladores. "Because science itself reflects the assumptions and world views of those who participate in its creation, the worldviews of officials, industry, and a segment of the public are carried into scientific knowledge and then carried along with it into many areas of practice. What begins as someone's choice ends up perceived as fact by someone else"170. Assim a investigação suportada pelo governo é política não só por depender de fundos ou subsídios por ele distribuídos, mas também "of exerting symbolic authority by directly or indirectly shaping the ways people think about who they are and what is real and important"171.

"Seen in a broad context, then, science-government relations mediate a number of better understood power relationships between state and society. They allow the translation of various organized social interests into scientific knowledge, with further reification into technologies, and they form the arenas of struggle over authoritative professional knowledge. STS perspectives reveal how deeply these dynamics reach into the content of scientific knowledge and how broadly they spread into the everyday lives

167 Santos, 1987, 10-11

168 Ezrahi, 1971, cf. Cozzens e Woodhouse, 1995 169 Cozzens e Woodhouse, 1995, 534

170 Cozzens e Woodhouse, 1995, 539

of citizens. A major accomplishment of STS is to show that scientific practice is inherently political, because scientists help define a large part of wharis taken for granted by billions of people – a type of influence that in some respects is the ultimate form of authority"172.

Em virtude de terem um conhecimento especializado, os cientistas têm reclamado a legitimidade de exercer uma influência substancial nas decisões do Governo. Defendendo a ideia da neutralidade do conhecimento científico, os cientistas reivindicaram uma posição enquanto agentes reguladores, contribuindo desta forma para que fossem tomadas as "boas" decisões. A regulação seria, neste sentido, reduzida a aspectos tecnocráticos, perdendo de vista a prossecução de objectivos de interesse colectivo. Coloca-se então a questão da necessidade de uma perícia responsável, com a participação dos cidadãos exercendo pressão para que essa responsabilidade fosse assumida.

O recurso à perícia científica revela o grau de importância da ciência na sociedade. As sociedades actuais tendem a fazer uso desta perícia de um modo sistemático, aí sustentando as suas políticas, com especial destaque para as políticas ambientais. A área da protecção ambiental cedo se revelou exemplar neste recurso sistemático à perícia científica. Com efeito, trata-se de uma área com um forte impacto social e societal e que é frequentemente palco de controvérsias científico-tecnológicas. Por esse motivo convoca tomadas de posição peritas, na maioria dos casos em ambos os lados da polémica. Além disso, uma parte substancial da argumentação dos movimentos ambientalistas faz-se em torno de uma crítica e denúncia da sociedade industrial moderna. Por todos estes motivos, as questões ambientais colocam um desafio aos estudos da ciência173. Aliás, o ambiente deveria ser considerado um elemento chave para os estudos de ciência, e para isso concorrem quatro razões: por um lado, a perícia científica é cada vez mais utilizada na formulação das políticas ambientais e também na contestação a essas mesmas políticas, por outro lado a ciência oferece ao ambiente importantes modelos cognitivos, o que leva a que os estudos de carácter científico sobre ambiente são cada vez mais numerosos e determinantes. Por último, refira-se que muitos ambientalistas desenvolveram a sua argumentação numa crítica sistemática à

172 Cozzens e Woodhouse, 1995, 550-551 173 Yearley, 1995

sociedade industrial moderna174. Note-se que as principais controvérsias de cariz científico-tecnológico que têm surgido nos últimos vinte anos se prenderam com impactos ambientais dessas mesmas decisões da ciência e da tecnologia. Para essa tomada de consciência, a caracterização de Beck175 sobre as sociedades actuais como sociedades do risco, é fundamental. A proposta de Martin e Richards176 apresenta quatro abordagens da controvérsia de conteúdo científico-tecnológico: positivista, centrada nos grupos que se confrontam na controvérsia, construtivista (ou da sociologia do conhecimento científico) e estrutural social, para concluir que há várias formas de abordar uma controvérsia e que estas não são estanques e podem fornecer elementos para, de forma integrada, estudar uma mesma controvérsia.

O facto de ambos os lados da polémica se munirem de uma forte argumentação de cariz científica espelha a perspectiva construtivista do conhecimento científico e o seu carácter negocial, uma vez que dentro da mesma comunidade científica encontramos posições opostas, consoante se trate de cientistas envolvidos, ou não, em movimentos de defesa da causa ambiental. Revela também que a mesma ciência pode originar uma argumentação favorável e contrária sobre uma mesma temática. Ou seja, espelha o carácter precário dos saberes científicos. O facto destes movimentos sustentarem grande parte da sua argumentação na perícia científica provém da forte cultura científica que os seus membros detêm (muitas vezes são também cientistas e lutam pela defesa de um meio ambiente o mais imaculado possível para poderem aí desenvolver a sua investigação científica) e que os faz despertar para a causa ambiental. Por outro lado, a sustentação numa argumentação científica177 traz força e impacto social aos movimentos a favor do ambiente. Mas transfere também para a causa ambiental as vulnerabilidades inerentes ao processo de construção do saber científico: a necessidade de uma base empírica, a precariedade do saber científico, a excessiva partilha do saber em torno de disciplinas estanques, sendo por defeito o ambiente uma questão multidisciplinar, e finalmente, o facto de nem sempre o saber trazer respostas imediatas e aplicadas aos problemas ambientais, contrariando as necessidades destes movimentos. "… scientific claims are likely to lose their credibility not only because of the contingent character of scientific knowledge but also because environmental

174 Yearley, 1995, 457-459 175 2000

176 1995

controversies have moral and political components that cannot be resolved by scientific inquiry"178.

De outro lado da controvérsia assistimos também ao recurso à perícia científica. No entanto, aqui coloca-se antes a questão da delimitação entre ciência e política. A dificuldade deste trabalho de fronteira tem levado a que as considerações políticas tenham influenciado a forma como se chega à evidência científica, em situação de controvérsia179. "The study of environmental disputes highlights in this way not only negotiations over the validity of scientific findings but also the social construction, indeed the 'structuration' of the boundaries of science itself"180. Refira-se que nestas questões estão envolvidos outros sujeitos que não os cientistas, o que reforça o carácter negocial em torno da descrição da realidade natural181 e evidencia a(s) forma(s) como é usado o conhecimento científico.

O facto de ambas as partes recorrerem ao argumento científico teve ainda outro efeito. "…as technical expertise becomes a resource, exploited by all parties to justify competing moral and political claims, it becomes difficult to distinguish scientific facts from political values"182. De facto, “controversies over science and technology have often focused on the question of political control over the development and applications of science”183. O deslocamento para uma atitude crítica em relação ao estado de desenvolvimento da ciência e da tecnologia é característico, como vimos anteriormente, das sociedades de risco. Ilustra igualmente o facto de uma perspectiva moral e de valor estar associada a toda a atitude sobre a ciência e a tecnologia, imergindo a área da investigação científica num contexto social e cultural, pois “in the last decade protests against science have assumed an increasingly moralistic spin”184.

Sendo a decisão sobre as questões da ciência e da tecnologia atravessada por dimensões valorativas, tal explana o modo com estas temáticas são, na realidade, apropriadas pela linguagem do quotidiano. O recurso à noção de "domesticação"185 permite explicar a forma de apropriação do conhecimento científico e o consequente modo de acção com esse conhecimento. "… most people do not appropriate scientific 178 Yearley, 1995, 464 179 Yearley, 1995 180 Yearley, 1995, 467 181 Yearley, 1995 182 Nelkin, 1995a, 453 183 Nelkin, 1995a, 445 184 Nelkin, 1995a, 445 185 Sorenson et al., 2000

concepts in order to emulate the scientist or medical professional but to make sense of their own lives and relevant natural phenomena from within their own cultural framework"186. Este processo diz respeito a um modo de apropriação cultural, implicando um processo de negociação onde quer a tecnologia quer as relações sociais saem transformadas. A domesticação vai para além da apropriação do artefacto, o sujeito e o artefacto entrecruzam-se de tal modo que se transformam mutuamente. Daí ser uma apropriação cultural. É, igualmente, um processo contingente, dependente dos recursos locais e de estratégias mais globais. É também um processo que pode encontrar múltiplas resistências localmente e está sujeito a diferentes condicionantes, tais como, género, classe ou idade dos utilizadores, "…domestication is not a process free of friction and resistance"187.

Por isso mesmo, toda a estratégia de domesticação se desdobra em três dimensões: prática (referente ao uso do artefacto apropriado), simbólica (produção de significado e a relação entre artefacto e o sujeito que apropria) e cognitiva (que se dá com a apropriação intelectual do conhecimento). "What is constructed through domestication may be understood as micronetworks of humans, artefacts, knowledge, and institutions. (…) To function within this network, the driver draws upon symbolic, practical, and cognitive effects that result in a observable style of driving, a pattern of use, an identity…”188. A domesticação é um processo de produção de micro-redes, processo esse que é contingencial e que pode originar diferentes conflitos ou resistências. “When scientific knowledge is taken not as a set of disembodied truths but as locally embedded discourse, one discovers the need to analyze its practical and symbolic aspects as well”189. Esta noção traz um novo olhar sobre a ideia de literacia, imbuindo-a de práticas simbólicas, envolvendo o processo cognitivo, processo esse que contextualiza a compreensão, ou a falta desta.

A noção de risco implicou uma mudança de perspectiva na forma de relação de cada um com a ciência, que entra numa fase mais complexa de problematização. A introdução das variáveis socioculturais e psicológicas levou a estudar a ciência pelos usos que dela fazem os sujeitos, o que remete para dimensões não cognitivas. “How one perceives science and technology reflects special interests and personal values. The

186 Sorenson et al., 2000, 239 187 Sorenson et al., 2000, 241 188 Sorenson et al., 2000, 241 189 Sorenson et al., 2000, 254

social and moral implications of a particular practice may assume far greater important than any details of scientific verification”190. A procura activa do saber passa então a ser motivada pelos usos que os sujeitos esperam retirar desse conhecimento e da forma como vão utilizar esse conhecimento. O conteúdo do conhecimento científico deixa de valer por si e passa a ser relativizado em função dos usos que dele se podem fazer. Por outro lado, o conhecimento científico deixa também de ter, por defeito, um valor positivo, logo de estar inequivocamente ligado ao progresso.

A noção de negociação aplica-se aqui ao sujeito consumidor de ciência: a procura da ciência faz-se em contextos específicos, relevantes para o sujeito, e este último escolhe o que quer saber e como quer adquirir esse conhecimento e quem lho pode fornecer de forma credível. A ciência deixa de valer por si, passa a valer também pelas instituições que a dão a conhecer. Cruza-se aqui a questão da credibilidade, dos cientistas, das instituições científicas e da própria ciência. São aspectos que passam a condicionar a relação dos públicos com a ciência. Estando num processo negocial, o sujeito avalia a ciência que utiliza e que adquire. Wynne191 diz que as pessoas fazem a experiência da ciência sempre numa forma, num contexto social, "as soon as knowledge is required in an information process or a context of use (which is usually how it tends to enter the public sphere), it is not a cognitive process of appropriately understanding scientific statements that is involved but rather social processes in which the relevant knowledge is negotiated or adapted to a specific situation”192. É a avaliação que o sujeito faz sobre esses conteúdos que vai determinar a sua atitude de procura, de interesse ou de adesão. Não se pode dissociar a dimensão cognitiva da social. "A most important, unrecognised factor is the role of different tacit models of social agency underlying encounters between science and public groups. (…) Thus an indigenous social parameter – the tacitly perceived usefulness or relevance of scientific knowledge in the lay person's own social context – directly shapes public uptake of science, and hence the public's observed 'understanding' of science"193. Observa-se aqui o contexto em que se dá a experiência científica explorando as formas como os sujeitos, em contextos sociais diferentes, constroem significados194, afirmando a artificialidade da separação das dimensões cognitiva e social no estudo da compreensão pública da

190 Nelkin, 1995a, 454 191 1995

192 von Grote e Dierkes, 2000, 353 193 Wynne, 1995, 363

ciência195. O conhecimento é forçosamente do tipo contextual ou situacional, considerando "the uncertainty of scientific knowledge, the inseparability of science from its social and institutional contexts, the lack of demarcation between scientific knowledge and other kinds of knowledge that are needed by decision-makers who are not scientific experts, and the functionality and defensibility of public 'ignorance'”196. “What is the relevant expertise? Is responsibility for decisions to rest with those with technical know-how or with those who bear the impact of technological choices?”197.

195 Wynne, 1995 196 Einsiedel, 2000, 205 197 Nelkin, 1995a, 456

III – Sociedade de risco

Uma definição completa da ciência moderna, ou tecnociência, implica a definição da sociedade que a acolhe e que lhe dá forma, sendo que a sociedade é, ela própria, transformada pela ciência moderna. A sociedade a que fazemos referência caracteriza-se por coabitar com o risco que o desenvolvimento da tecnociência trouxe, sendo esse facto um elemento perturbador da mesma sociedade, pondo em questão a sua (sobre)vivência. Por essa razão, Sousa Santos refere que “a natureza da revolução científica que atravessamos é estruturalmente diferente da que ocorreu no século XVI: sendo uma revolução científica que ocorre numa sociedade ela própria revolucionada pela ciência, o paradigma a emergir dela não pode ser apenas um paradigma científico (o paradigma de um conhecimento prudente), tem de ser também um paradigma social (o paradigma de uma vida decente)”198.