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Parte I – Estado da arte

VI. 1 – Democracia dialógica

A questão da governância coloca-se com especial acuidade e relevância a partir do momento em que aceitamos que a sociedade do risco, que já descrevemos, veio aproximar os domínios da ciência e da política, já que todo o avanço da ciência vem afectar a sociedade e os que nela se encontram, repercutindo-se no modo como os cidadãos querem ser governados, no que à ciência e tecnologia diz respeito. A governância da ciência na sociedade do risco é atravessada pela capacidade de percepção do risco e pela possibilidade de concretização desse mesmo risco. Jonas elegeu o princípio da precaução como primeira regra ética a obedecer, numa actividade científica que se rege pela incerteza e pelos avanços e recuos sistemáticos. Mas a precaução não é sinónimo de inacção, entendendo-se antes que uma acção rege-se pela precaução se é comedida, ponderada, prudente e reflectida. Entende-se por este tipo de acção toda a que cumpre uma decisão, que foi tomada numa óptica de precaução, face à incerteza dos reais efeitos de um determinado avanço (ou recuo?) científico. O conceito de “action mesurée”347 descreve o processo de tomada de decisão em ambiente de incerteza e surge em contexto de democracia dialógica, que se concretiza nos fora híbridos, ou mistos. Aqui a noção de decisão foi revista para introduzir o princípio de precaução. "La précaution désigne une démarche active et ouverte, contingente et révisable"348 e é negociada. "Repose sur un approfondissement de la connaissance"349, sendo que esse conhecimento não provém apenas das disciplinas científicas. É, portanto, "une démarche positive d'appréciation et de gestion des situations de forte incertitude"350. É a gestão da incerteza que incita a pôr em prática procedimentos de investigação apropriados. "La précaution ne fixe pas d'objectifs substantiels à atteindre. Elle cadre des procédures d'évaluation et de gestion des débordements qui pourraient

347 Callon et al, 2001 348 Callon et al, 2001, 264 349 Callon et al, 2001, 264 350 Callon et al, 2001, 264

résulter de la mise en œuvre de certains projets. (…) ces procédures (…) visent à favoriser la double exploration qui caractérise les forums hybrides"351.

"La précaution suscite une dynamique décisionnelle qui modifie les rapports entre science et politique, aussi bien dans leur enchaînement que dans leur autorité respective. Elle éloigne du schéma classique qui sépare drastiquement le temps de la connaissance et le temps de la décision. Elle les articule dans un mouvement d'aller et retour qui est appelé à se poursuivre tant que l'incertitude perdure"352.

O princípio da precaução, enunciado por Jonas, tornou-se absolutamente incontornável em todas as ocasiões em que os políticos se debatiam com o problema da decisão em presença de resultados desconhecidos. No entanto, a precaução nem sempre foi entendida como “action mesurée” até porque a banalização deste termo não se fez acompanhar de uma real compreensão dos objectivos de Jonas. Um texto de 1998 da Comissão Europeia353 formula precisamente o largo espectro significativo que este princípio pode assumir, “entre un plancher defini par la conception classique de la prévention (de ne pas interdire un produit ou un procédé tant que l’existence d’un danger n’est pas démontrée) et un plafond defini par une conception absolutiste de la précaution (interdire tout procédé ou produit tant que leur inocuité n’est pas démontrée)”354. Assim, o espaço da precaução é enquadrado (pois toda a precaução pressupõe que haja acção e que a mesma se encontre enquadrada) pela incerteza, pelo dano potencial, pelas medidas efectivas e pelo custo suportável. Convenhamos que cada elemento do enquadramento se caracteriza pelo seu aspecto vago, o que dificulta substancialmente a aplicação deste princípio e expõe a dificuldade em concertar a acção científica e a acção política.

A precaução induz um tipo de acção em três planos, que exige: 1. um sistema de alerta

2. um aprofundamento dos conhecimentos 3. uma tomada de medidas temporárias

351 Callon et al, 2001, 280 352 Callon et al, 2001, 281-282

353 DV XXIV, Lignes Directrices pour l’application du príncipe de précaution, 17 de Outubro de 1998 cf.

Callon et at, 2001, 283

e isto graças a "cet enchaînement temporel et cet emboîtement de légitimités que la démarche de précaution transforme, en permettant la double exploration des problèmes et des identités, caractéristique de la démocratie dialogique"355. Estes três planos explanam o entrecruzamento da decisão científica com a decisão política, sendo o plano um partilhado pelos dois domínios, o segundo diz sobretudo respeito à actividade científica, se bem que a decisão política possa ser ora um fomento ora um entrave a que os cientistas atinjam os objectivos do segundo plano, e o terceiro decorre essencialmente da decisão política, se bem que podendo ser aconselhada pelos cientistas.

Lembramos que um dos obstáculos que se coloca à comunicação sobre o risco se prende com o desfasamento entre a avaliação dos cientistas e a percepção dos leigos356. No entanto, numa democracia técnica357, que é dialógica e que supõe a capacidade de delegação, o modelo característico da avaliação pelos peritos é posto em causa, dando lugar a “une démarche progressive dans laquelle les acteurs et les savoirs profanes doivent être intégrés le plus tôt possible dans les activités de vigilance, d’exploration et de choix de mesures à prendre”358, e com esta integração criar a possibilidade de colaboração entre leigos e cientistas ou peritos. À “experientia” dos leigos, senso comum proveniente de uma vivência também em comum, alia-se a “experimenta” dos peritos, um saber detido pelo colectivo de investigadores e que se desenvolve porque foi despoletado pelo senso comum359. A dinâmica gerada por esta complementaridade ilustra-se com dois círculos: “d’un côté le cercle d’experts pratiquant une évaluation scientifique et technique des risques, d’autre, un cercle pluraliste (quelques experts du premier cercle, des économistes, des acteurs sociaux et des représentants du public) qui a pour mission d’interroger la démarche et les conclusions du premier en demandant des éclaircissements ou des compléments. Les décideurs reçoivent les conclusions des deux cercles d’experts avant de prendre position”360. Afinal, as temáticas científicas não interessam apenas, nem por vezes em prioridade, aos cientistas mas àqueles agentes sociais que são directamente afectados pelas ditas. A noção de “utilizador” (implicado) de informação científico-tecnológica parece enquadrar-se muito melhor no espírito da 355 Callon et al, 2001, 282 356 Slovic, 2000a 357 Callon et al, 2001 358 Callon et al, 2001, 290 359 Callon et al, 2001, 120 360 Callon et al, 2001, 297

democracia dialógica do que a noção habitual que encontramos na comunicação da ciência: “público”, nuns casos, e “leigo” noutros.

Por fim, repare-se que a democracia dialógica, e a sua concretização através de fora híbridos, veio alterar a concepção de “decisão”361: se a decisão tradicionalmente se caracterizou por uma escolha inequívoca, tomada num momento singular, por um actor devidamente legitimado e enclausurado pela autoridade científica ou política, a decisão tomada em situação de incerteza é antes um “encadeamento de encontros”. Compromete uma rede de actores diversos, cada qual com a sua responsabilidade, sendo uma actividade iterativa, onde as decisões são encadeadas e são sempre reversíveis, sujeitas a serem transformadas em função da informação que se vai tornando disponível. Esta definição encerra também toda a dificuldade que existe em pôr em marcha os fora híbridos, já que todas as etapas de diálogo e de discussão podem não se coadunar à urgência que uma intervenção de precaução exige. Não sendo este um argumento para retroceder e voltar a apoiar-se em processos tradicionais de decisão, é sem dúvida, uma limitação a burilar.