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3 – Compreensão e públicos no modelo interaccionista

Parte I – Estado da arte

VII. 3 – Compreensão e públicos no modelo interaccionista

A superação do modelo dominante dá-se com a aplicação da perspectiva construcionista da sociologia do conhecimento científico. Nesta, a análise centra-se no estudo que procura saber "how people experience and define 'science' in social life, and how particular scientific constructions incorporate tacit, closed models of social relationships that are or should be open to negotiation"426. Esta perspectiva, também denominada de interaccionista, supõe uma interacção do sujeito com a ciência, ou seja um movimento reflexivo na busca informativa, por um lado, e por outro, que essa busca se faça mediante escolhas do sujeito, tendo em consideração os usos a que se destina essa informação científica. Felt427 afirma "The relation between science and the public thus cannot be described according to a logic of interaction. One cannot think about the effectiveness of interaction or reflect more generally on the sense of science-related communication without making a number of presuppositions about the functions of the relation between science and the public and without taking context into account". É necessário reconhecer onde é que se dá, em que dimensões se concretiza, o encontro do público com a ciência. Lucas428 lembra que a aprendizagem da ciência se dá em contextos formais e informais, pelo que se propõem analisar o tipo de interacção que se estabelece entre ambos. Cada contexto requer o seu modo de actuação. Einsiedel429 propõe diversas junções possíveis: a política, a centrada no mercado, a ocupacional ou a orientada para actividades de lazer. Cada contexto propõe um modo de utilização e de desempenho próprio. Podemos ainda encontrar nestas, diferenças ao nível do interesse e da implicação dos sujeitos nessa interacção. O conceito de "pele social" de Noelle- Neumann430 pode ainda introduzir outras variáveis para justificar as opções pessoais em matéria de consumo de ciência e tecnologia, seguindo a lógica da espiral do silêncio.

Felt realça o carácter não desinteressado da retórica justificativa da interacção do público com a ciência. Daí que pergunte "Why should the public understand

426 Wynne, 1995, 362 427 2000, 8 428 Lucas, 1987 429 2000, 207 430 1984 cf. Einsiedel, 2000, 207

science?”431. A resposta é então complexa e convoca vários patamares para uma análise em profundidade. Felt coloca a questão da relação entre ciência e sociedade como relação política, sendo que o seu estudo aborda necessariamente aspectos discursivos que são condicionados pelo contexto político e por uma argumentação de justificação do investimento em ciência e numa racionalidade de cariz científico.

A superação do modelo linear abala profundamente, como vimos, todos os pilares de convicção sobre as necessidades dos públicos em matéria de ciência. O abalo que claramente condicionou todos os outros está no lugar que ocupa o saber científico. O modelo dominante, ao definir uma relação desigual e unilateral entre peritos e leigos, estava também a hierarquizar tipos de saber, colocando a supremacia no saber proveniente da comunidade científica. Ora, essa supremacia revela-se problemática já que a fronteira que demarca o conhecimento genuíno do popular432 é questionável e logo, não é fixa. A perspectiva construcionista só podia contribuir para questionar essa demarcação artificial que durante muito tempo alimentou o imaginário em torno da racionalidade científica. Neste entendimento, todo o discurso para aproximar o público da ciência é forçosamente uma negociação de significados já que os mundos sociais onde habitam os públicos da ciência condicionam os modos como estes se disponibilizam para assimilar a informação científica. "… the public uptake of science has to be understood in the framework of people's living conditions and aspirations”433. Falar de negociação de significados quer dizer que a recepção e a aquisição do saber científico não se faz acriticamente, passivamente mas antes que este processo é fortemente questionado pelo sujeito, com os seus critérios de utilidade, de pertinência, com os seus juízos de confiança, nas instituições (não só científicas mas também administrativas uma vez que a ciência está cada vez mais entrecruzada com a política), na ciência (na sua perspectiva maniqueísta) e nos cientistas (na sua perícia).

Falar de negociação é também problematizar a definição de públicos enquanto consumidores do saber434 e chamar à atenção para o seu desempenho activo nesse processo. É importante colocar a ênfase na noção de público enquanto espaço e na evolução que se faz sentir ao nível do processo de construção da opinião, nesse espaço habitado por diversos agentes com estratégias próprias de inscrição.

431 Felt, 2000, 8 432 Felt, 2000 433 Felt, 2000, 13 434 Felt, 2000, 12

Daqui surge a constatação da dificuldade em identificar concretamente quem são os indivíduos que constituem a entidade "público". Até porque a noção de público se caracteriza pela sua heterogeneidade e o mesmo indivíduo pode fazer parte de vários públicos (pela ocupação que tem, pelos circuitos que frequenta, pelos gostos que tem, entre outras categorias possíveis). Felt435 constata essa dificuldade, reconhecendo que na maioria dos casos não se consegue definir claramente aqueles que são alvo de programas de divulgação científica. Estes últimos também assumem diferentes papéis face à ciência, sendo essa postura que permite diferenciar segmentos de público na indeterminação dos destinatários da divulgação científica. A superação do modelo do défice cognitivo e a passagem para uma concepção interactiva da relação com a ciência supõe, como já foi visto, a passagem da um público passivo e acrítico para um público utilizador da ciência e que, por consequência, age em conformidade com as suas necessidades em matéria de conhecimento científico-tecnológico. Para estudar estes públicos, o primeiro modelo muniu-se de grandes estudos quantitativos que mediam os conhecimentos factuais e procuravam identificar as respectivas atitudes face à ciência, o segundo contrapôs com a necessidade de proceder a estudos qualitativos, em profundidade e contrariando a ideia plural de público, focalizando o indivíduo. No entanto, estas duas perspectivas podem não ser opostas mas antes complementares. Einsiedel436 propõe que ambas as perspectivas sejam contempladas já que trazem aspectos complementares, sendo que os respectivos enquadramentos analíticos não se excluem. O cruzamento dos dois permite contemplar uma perspectiva mais alargada com uma mais específica, que só os estudos em profundidade trazem. Os estudos quantitativos em escala alargada permitem delinear indicadores pertinentes para uma análise seguinte, em profundidade. Acrescenta-se ainda que “ao mesmo tempo, porém, a constatação, em certo sentido quase trivial, de que há vários públicos não deve fazer esquecer a sua condição comum de público”437.

À semelhança do conceito de público, também o de compreensão se revelou polissémico ao longo da história da divulgação, revelando os sentidos que o empreendimento vulgarizador foi conhecendo ao longo dos tempos. Os sentidos são aqueles que preenchem as funções que estão destinadas para a divulgação da ciência. A compreensão começou por ser um trabalho em torno da transmissão de conteúdos

435 2000 436 2000

científicos, na convicção que toda a ciência é compreensível para depois ser entendida como empreendimento cultural, como acto de confiança numa elite e de admiração pelo seu trabalho. Neste segundo sentido, o centro do significado foi desviado para o cientista e já não para o corpo de conhecimentos. A compreensão é, ainda, sinónimo de aquisição de competências para acompanhar o progresso da sociedade, aquele que resulta da evolução científica e da sua aplicação tecnológica. Pode-se dizer que estes três sentidos não questionam a ciência, são essencialmente contemplativos dos seus feitos e dos seus actores. Felt438 indica ainda um quarto significado e que evidencia uma mudança ao nível da relação do público com a ciência: compreender para confiar. Mais uma vez não é em torno de um corpo de conhecimentos mas da instituição-ciência, enquanto contexto de produção do saber e local de entre-cruzamento de diferentes agentes que se pretende granjear a confiança. A equação "mais conhecimento científico é igual a mais confiança na ciência" viria a ser posta em causa nos anos 70, como já foi referido anteriormente. Sobre a polissemia de "compreensão", Felt439 acaba por concluir "… the omnipresent ambiguity in the use of the word understanding partly reflects scientists' ambivalence toward the act of popularizing their research".

O que estes sentidos de compreensão não evidenciam é o processo em que ocorre a interacção entre a ciência e o seu público, no processo onde se pode discernir uma negociação em torno do sentido e do valor do conhecimento científico440. "Science has to be seen as attracting social interest and as having an impact upon existing relations, identities, and value system"441.

VII.4 – Modelos de comunicação – referenciais teóricos para a