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2 – A perspectiva cultural dos estudos de laboratório

Parte I – Estado da arte

IV. 2 – A perspectiva cultural dos estudos de laboratório

A noção de laboratório282 provém da teoria sobre os tipos de locais produtivos, sendo o laboratório o local da ciência. Os chamados estudos de laboratório seguiram metodologias etnográficas, entendendo o processo de produção do conhecimento como construtivo, ao invés de descritivo, "for viewing it as constitutive of the reality knowledge was said to 'represent'"283. Os estudos de laboratório permitem centrar a análise no âmago do trabalho científico onde o saber é produzido, recorrendo a metodologias como a observação directa e a análise de discurso. Permite questionar o saber enquanto este se faz, abandonando a convicção da ciência enquanto paradigma da racionalidade e passando a incluir na análise o conteúdo técnico da ciência. Foi possível estudar o conhecimento em formação, enquanto não terminado. Finalmente, os estudos de laboratório vieram integrar duas perspectivas mais parcelares, a dos estudos em torno da experiência científica e a da sociologia da organização científica, acrescentando uma moldura cultural. Ao integrar estes dois elementos, os estudos de laboratório permitiram estudar o processo de produção do conhecimento científico (dos estudos das experiências) no seu local de produção (dos estudos da organização científica). A noção de laboratório focaliza o estudo da actividade cultural da ciência, convocando para o efeito todos os actantes284 e analisando as práticas simbólicas envolvidas. Entende-se 280 Callon, 1995, 54 281 2001 282 Knorr Cetina, 1995 283 Knorr Cetina, 1995, 141 284 Latour, 1989

por actante toda a entidade habilitada para agir, substituindo a noção de actor. Essa atribuição pode ser dada por uma afirmação, por um artefacto técnico ou por um ser humano. O conceito de actante é suficientemente flexível para contemplar a proliferação de entidades que contribuem para a produção científica285. Esta perspectiva demonstrou "that scientific objects are not only 'technically' manufactured in laboratories, but also inextricably symbolically and politically construed"286. As consequências desta mudança de perspectiva são essencialmente duas. Por um lado, a ciência não só intervém no mundo natural mas também, e profundamente, no mundo social. Por outro, os produtos da ciência passaram a ser vistos como entidades culturais, mais do que dados naturais descobertos pela ciência. “If the practices observed in laboratories were ‘cultural’ in the sense that they could not be reduced to the application of methodological rules, the ‘facts’ that were the consequence of these practices also had to be seen as shaped by culture”287. Ao reconhecer que os produtos científicos, resultado do trabalho no laboratório, são entidades culturais, investidas de práticas simbólicas e não meras descobertas que a natureza sugere e que o cientista desvenda, os estudos de laboratórios vêm inscrever a ciência, de forma profunda, no mundo social, acabando com a tradicional dicotomia entre natureza e sociedade. O processo de construção do saber científico resulta então da interacção entre os diferentes protagonistas (actantes) intervenientes na metodologia e na organização do campo científico. Este modelo permite estudar a ciência enquanto um laboratório onde assistimos a elos sociais no próprio processo de elaboração288.

A noção de laboratório, entendida na perspectiva enunciada, permite compreender a ciência imbuída de uma dinâmica fortemente inscrita no social. Knorr Cetina289 sugere que o laboratório seja um importante agente do desenvolvimento científico, como local onde se produz o "sucesso" da ciência. O sucesso a que se refere a autora não é causado pelos argumentos habituais em torno da racionalidade científica mas, tendo a ciência uma profunda intervenção no mundo social, os mecanismos e processos que usa implicam "a reconfiguration of the system of 'self-others-things', of the 'phenomenal field' in which experience is made science"290. A ciência vem provocar 285 Callon, 1995, 53-54 286 Knorr Cetina, 1995, 143 287 Knorr Cetina, 1995, 143 288 Callon, 1995, 54 289 1995

alterações, mesmo que temporárias e confinadas às paredes do laboratório, na relação entre actantes e na relação com a natureza. Merleau-Ponty sugere, através da noção de sistema de "self-others-things", a ideia do mundo tal como é experimentado pelos agentes, do mundo relacionado com os agentes, mundo esse que o dispositivo do laboratório vem afectar, reconfigurando-o. O local de produção que é o laboratório vem modificar o referido sistema de todo o elemento que entre nele, ou seja, o laboratório transforma as entidades que nele interagem. Essa transformação é uma operação para criar produtos do laboratório. O laboratório procede a esta modificação para poder agir sobre estas entidades. Daí que as mesmas recebam configurações próprias quando inseridas no contexto do laboratório. Cada entidade recebe como que uma identidade nova para poder ser inserida no trabalho de laboratório, que a transformará. Os cientistas raramente trabalham com os objectos tal como ocorrem na natureza mas sempre transformados em entidades para laboratório (são imagens de objectos, os seus traços visuais, auditivos ou eléctricos, ou os seus componentes) que podem ser integralmente apreendidas através dos meios laboratoriais. "What laboratory studies suggest is that the laboratory is a means of changing the world-related-to-agents in ways that allow scientists to capitalize on their human constraints and sociocultural restrictions"291. O campo fenomenológico de Merleau-Ponty caracteriza-se pela sua indeterminação e ambiguidade. Ora, a ciência procura conter ambas as características, fixando e objectivando os fenómenos que estuda, contrariando a noção que o objecto- em-si é sempre o objecto-em-si para um sujeito. No laboratório, a ordem social (a experiência é uma metodologia construída socialmente, numa determinada organização social) subjuga a ordem natural, por isso se dá uma reconfiguração do sistema "self- others-things". Nesta óptica, compreende-se que o laboratório enquanto local de produção da ciência não se cinja às suas fronteiras físicas e abarque todos os locais possíveis onde se produz saber científico. O laboratório refere-se às condições de produção do saber. "The power of the laboratory (but of course also its restrictions) resides precisely in its exclusion of nature as it is independent of laboratories and in its 'enculturation' of natural objects. The laboratory subjects natural conditions to a social 'overhaul' and derives epistemic effects from the new situation"292. Este processo de reconfiguração operado pelo laboratório não vai afectar apenas a ordem natural mas também a ordem social no laboratório. Knorr Cetina sugere que, também os cientistas

291 Knorr Cetina, 1995, 145 292 Knorr Cetina, 1995, 146

são reconfigurados, de modo a que possam trabalhar sobre os objectos subjugados. Tal como os objectos, os cientistas são maleáveis, no que respeita a um conjunto de comportamentos possíveis que são esperados. "In the laboratory, scientists are, on the one hand, 'methods' of going about inquiry; they are part of a field's research strategy and a technical device in the production of knowledge"293.

A lógica dos estudos de laboratório vem sustentar a perspectiva construcionista dos estudos da ciência. A metodologia etnográfica utilizada promove a desconstrução dos factos observados e sustenta a atitude construcionista. “Constructionist studies have revealed the ordinary working of things that are black-boxed as ‘objective’ facts and ‘given’ entities, and they have uncovered the mundane processes behind systems that appear monolithic, awe inspiring, inevitable. (…) toward the method of observing the real-time mechanisms at work in knowledge production. (…) Constructionism studies have recognised that the material world offers resistances; that facts are not made by pronouncing them to be facts but by being intricately constructed against the resistances of the natural (and social) order”294. Foca o facto de toda a construção do conhecimento ser local, sujeita a contingências, inserida em redes de tradução, logo sujeita a indeterminação e ambiguidade, como palco que são das formas de acção dos seus actantes, da negociação presente em todo o acto de construção do saber científico. Neste processo negocial, há também agentes externos que intervêm, os resultados científicos estando ancorados em arenas transepistémicas ou campos 'trans'científicos295. A noção de arena transepistémica sugere a abordagem da ciência pela interacção entre agentes internos e externos à ciência, regulada pela ideia de relação de recursos (de vários tipos), onde interagem vários interesses em causa. Esta perspectiva sugere que a actividade científica sai, inevitavelmente, do seu local característico de produção para o tecido social, onde acaba também por se (re)construir.