• Nenhum resultado encontrado

Parte I – Estado da arte

II. 3 Especialização em disciplinas

A ciência moderna caracteriza-se por operar sobre o real. Este modo de intervenção é possibilitado pela tecnologia que, como dissemos, manipula o objecto intervencionado, segundo um método científico e num ambiente artificial que é o laboratório, que visa reproduzir a natureza de forma a dominá-la. Esta operação permite sustentar o edifício racional que se considera a única forma de conhecimento segura. O conhecimento científico procede pela redução da complexidade do fenómeno intervencionado, simplificando as ocorrências reais pois “a natureza é […] mecanismo cujos elementos se podem desmontar e depois relacionar sob a forma de leis”132. Este é o mecanismo que lhe permite agir sobre o fenómeno e controlá-lo integralmente, já que “a descoberta das leis da natureza assenta no princípio de que a posição absoluta e o

129 Latour, 2001 130 1995

131 Elzinga e Jamison, 1995, 576 132 Santos, 1987, 12

tempo absoluto nunca são condições iniciais relevantes”133 e também, “a determinação da causa formal obtém-se com a expulsão da intenção”134. A ciência moderna encontra na capacidade de prever as ocorrências, porque estas se reproduzem e porque a intervenção operada nos fenómenos os reduziu aos seus aspectos mais controláveis, a sua forma de controlo sobre a natureza e também sobre o social. A ciência moderna como “modelo de racionalidade hegemónica (…) transbordou do estudo da natureza para o estudo da sociedade. Tal como foi possível descobrir as leis da natureza, seria igualmente possível descobrir as leis da sociedade”135.

A organização do conhecimento científico que, recordamos, procurou reduzir toda a complexidade dos fenómenos observados para traduzi-los na artificialidade da linguagem matemática, organiza-se em torno de disciplinas estanques, onde em cada uma se esgota todo o conhecimento sobre determinado acontecimento. Cada disciplina apresenta-se como auto-suficiente cognitivamente e formando um todo coerente. Cada uma delas representa um universo fechado em relação às outras disciplinas, pondo em cena um dispositivo que é próprio a cada disciplina. No entanto, “a simplicidade das leis constitui uma simplificação arbitrária da realidade, que nos confina a um horizonte mínimo para além do qual outros conhecimentos da natureza, provavelmente mais ricos e com mais interesse humano, ficam por conhecer”136. Daí o mesmo autor137 afirmar, ainda a propósito do declínio do paradigma dominante e sobre o conteúdo do conhecimento então produzido segundo os objectivos racionais da ciência moderna que este último é “um conhecimento mínimo que fecha as portas a muitos outros saberes sobre o mundo, o conhecimento científico moderno é um conhecimento desencantado e triste que transforma a natureza num autómato”138. Diz ainda que “sendo um conhecimento disciplinar, tende a ser um conhecimento disciplinado, isto é, segrega uma organização do saber orientada para policiar as fronteiras entre as disciplinas e reprimir os que as quiserem transpor”139. Se, por um lado, a organização do conhecimento em disciplinas cada vez mais parcelares e especializadas, já que “o conhecimento é tanto mais rigoroso quanto mais restrito é o objecto sobre o que

133 Santos, 1987, 16 134 Santos, 1987, 16 135 Santos, 1987, 18 136 Santos, 1987, 31 137 Santos, 1987 138 Santos, 1987, 32 139 Santos, 1987, 46

incide”140, por outro, “a excessiva parcelização e disciplinarização faz do cientista um ignorante especializado”141. O conhecimento, tal como é concebido no paradigma emergente, é total e interpela todos os saberes necessários em torno de um tema para fazer surgir uma particularidade local, pelo que é total e local ao mesmo tempo. É um conhecimento reticular, de proveniências diversas e que tem como ponto de confluência uma “forma de conhecimento que concebe através da imaginação e generaliza através da qualidade e da exemplaridade”142, caracterizando-se por uma “composição transdisciplinar e individualizada”143 que só se obtém porque na transição entre paradigma dominante e paradigma emergente se permite uma “transgressão metodológica”144. Por fim, a compreensão do fenómeno do risco exige uma nova ciência, dita também de pós-normal145 que não se traduz apenas pela multiplicação dos campos disciplinares mas "a new conception of the objects, methods, and social functions of knowledge about the material world, and its interactions with structures of power and authority"146.

Por último, destaque-se a importância do pensamento de Max Weber para a compreensão da especialização operada pela ciência moderna. Numa curta palestra proferida em 1919 intitulada "A ciência como vocação" está condensado o seu entendimento sobre esta profissão, os desafios que se lhe colocam e os limites que esta se deve impor. Weber entende o progresso científico enquanto processo de acumulação de conhecimentos, sendo que cada cientista se inscreve uma corrente de saberes, que deverá superar (ou aumentar o conhecimento) através de um trabalho árduo e especializado. "... o trabalho científico está mergulhado na corrente do progresso"147. Este é aliás o elemento distintivo da ciência em relação a outros elementos de cultura, nenhum outro está permanentemente em movimento. Esta corrente de progresso vê-se justificada por uma outra, que se opera a nível da sociedade: Weber refere então o projecto de "intelectualização" que a Humanidade abraçou desde há milénios e que, basicamente, foi operado pela ciência e pela técnica cientificamente orientada148. Quem diz intelectualização diz também racionalização, a crença de que "tudo pode ser 140 Santos, 1987, 46 141 Idem, ibidem 142 Santos, 1987, 48 143 Idem, 49 144 Idem, ibidem 145 Kasperson, 1992, 157

146 Funtowicz e Ravetz, 1990 cf Kasperson, 1992, 157 147 Weber, 1979, 118 (o sublinhado é do autor) 148 Weber, 1979, 121

dominado através do cálculo e da previsão"149. Weber identifica o progresso com a máquina da ciência e tecnologia e tem uma visão eufórica do mesmo, como se se tratasse de um crescendo para "um progresso que, em princípio, não tem fim"150.

No entanto, Weber não coloca o saber ao alcance de todos. Parte da concepção que o cientista é aquele que se dedica exclusivamente à causa da ciência, que tem uma intensa vivência da mesma, a "segurança firme do método de trabalho"151 e a humildade de se dedicar à dita sem daí esperar retirar dividendos. Esta concepção tem algumas consequências, em vários domínios para nós pertinentes.

No que concerne a distribuição do saber, este não acompanha o processo de intelectualização no sentido em que não traz um conhecimento de forma generalizada, a todas as pessoas. Weber defende a existência de um fosso natural entre leigos e cientistas, já que os primeiros não se entregaram à paixão da ciência. Introduz a este propósito a ideia de um saber na óptica do utilizador, o saber dos leigos que sabem que funciona mas não porque e como funciona, saber que lhes é, aliás, desnecessário. Apesar do conhecimento crescente sobre o mundo que nos rodeia não estar ao alcance de todos não é sinal de menor importância deste. Na realidade, é sinal de uma rotura com um saber místico, com poderes ocultos, proveniente de uma confusão das esferas da crença com a da razão. Weber inscreve-se claramente num tempo que operou uma distinção entre saber transcendente e saber imanente, que preconiza a validade exclusiva do segundo para a compreensão do mundo.

Outra consequência pode ser retirada do entendimento da dedicação exclusiva do cientista à causa da ciência. Para Weber, o papel de cientista não se confunde com o exercício de outros cargos, nomeadamente de índole política. Há uma separação nítida destes dois campos quando o cientista se encontra no exercício da sua profissão. Esta separação encontra-se justificada pelo facto da ciência estar ao serviço do conhecimento dos factos, de um saber rigoroso, lógico, racional e metodológico. Coloca-se por isso num patamar acima da opinião e do juízo de valor, e é contemplativo nesse sentido. Ao invés, no saber necessário para o exercício da política há lugar a tomada de posição, a discussão entre perspectivas e à opção por determinado modelo do mundo em detrimento de outros. O cientista, que em Weber é sinónimo de professor universitário,

149 Weber, 1979, 121-2 (o sublinhado é do autor) 150 Weber, 1979, 119

não se coloca numa relação, com os seus interlocutores, onde a discussão sequer seja possível daí que o cientista se deva abster de toda a espécie de confusão de papéis. As qualidades do cientista não são as mesmas que se pretendem para um dirigente político, razão que se aponta para justificar o risco para o cientista do exercício deste duplo papel.

Refira-se por fim, a concepção de saber científico presente em Weber. Nesta definição encontramos descrita a vocação da ciência e o que ela traz à vida prática e pessoal. O saber científico tem ao seu serviço determinados instrumentos que originam a sua unicidade e lhe dão primazia, em relação a outras fontes de saber. A construção lógica é o seu primeiro instrumento de trabalho, sendo o segundo a experimentação racional. Aliado a estes dois, e consequência dos mesmos, a ciência traz uma clareza, permitindo ao indivíduo ter uma visão do mundo, colocar-se nele e extrair as consequências da sua acção. A este nível, Weber cruza a ciência com a dimensão ética. Esta expressa-se numa "obrigação de criar clareza e sentido de responsabilidade"152. Mais uma vez se encontra aqui a perspectiva eufórica dos benefícios da ciência. Neste sentido, encontra-se ao serviço do progresso e é necessariamente fonte de benefício e riqueza para a sociedade. Assiste-se a uma valorização do saber técnico para dominar situações de vida, saber esse proveniente de um trabalho especializado e disciplinado, ao qual o cientista se deve entregar na sua totalidade, só assim conseguindo estar ao serviço da ciência, cumprir a sua vocação enquanto cientista. E estar ao serviço da ciência é aqui sinónimo de cumprir um desígnio ético, o da tomada de consciência esclarecida sobre "nós próprios e do conhecimento de determinadas conexões factuais"153. Esta é também a responsabilidade do homem de ciência.

Weber celebra o contributo da ciência, insistindo na sua "'vocação' objectivamente valiosa"154. A afirmação desta objectividade tem sido alvo de questionamento e é tudo menos inequívoca. A sua manutenção, enquanto critério de primazia da racionalidade científica, requer um árduo trabalho por parte dos cientistas, um trabalho de afirmação e manutenção das fronteiras do domínio científico.

152 Weber, 1979, 144 153 Weber, 1979, 145 154 Weber, 1979, 145