• Nenhum resultado encontrado

a – Perspectiva comunicacional da divulgação científica

Parte I – Estado da arte

VIII. 1 – O discurso da divulgação

VIII.1. a – Perspectiva comunicacional da divulgação científica

Para coadjuvar a esta tarefa, surgiu a figura do terceiro homem, naquela que Roqueplo chama de concepção oficial da divulgação científica, sendo este último, ao mesmo tempo, mediador e missionário471. Este mediador corresponde a um lugar intermédio no processo de divulgação, que traduz a linguagem hermética do cientista para a linguagem do quotidiano, que o leigo compreende. O jornalista científico é tradicionalmente o terceiro homem que opera esta mediação. Nesta óptica, adquirem um papel primordial na sociedade. No entanto, a importância real destes tem vindo a ser

469 Bodmer et al, 1985 470 Idem, 6

questionada472, à medida que as próprias teorias da comunicação de massas vão-se afastando do determinismo behaviourista. Revela-se uma figura fundamental na medida em que faz a ponte entre dois mundos distintos. Segundo Bauer473, é no jornalismo científico que se formam as imagens que condicionam as atitudes em direcção à ciência. Mas, é ainda Roqueplo que questiona se este mediador não será necessário porque a divulgação da ciência não ocorre nos “itinerários naturais da transmissão do conhecimento”474 (ou contextos de utilização da ciência, tais como o trabalho ou o lazer). Esta é, resumidamente e transversalmente, a ideologia que exalta o empreendimento divulgador.

Vista sobre este prisma, a divulgação científica é abordada segundo uma via comunicacional475, cujo objectivo primordial é restabelecer o elo que a ciência moderna quebrou, ao criar o seu próprio mistério476, ao fechar-se num discurso matemático e rigorosamente estanque a toda a incursão do senso comum. A “torre de marfim” ergueu ameias suficientemente altas para criar e alimentar a opacidade do discurso científico- tecnológico e para fomentar a imagem extra-ordinária do homem da ciência. O paradigma comunicacional da divulgação científica procura restabelecer esse elo quebrado, desmistificando e humanizando a ciência477, “une 'idée' de la science [onde] les vulgarisateurs ajouteront encore non seulement 'de la chair', mais des vêtements de la vie quotidienne?”478, e ainda, onde “... le discours du vulgarisateur remplira son office de médiation en se référant ostensiblement à deux pratiques: l'une qu'il montrera en spectacle, celle des scientifiques; l'autre qu'il invoquera pour être effectivement reçu et accepté pour réel, celle de la vie quotidienne”479. Assiste-se a um processo de destruturação do saber objectivo e posterior reestruturação desse mesmo saber, para que se dê a sua integração na realidade quotidiana, bem como, e sobretudo, a aceitação da legitimidade daquele discurso e daqueles que o proferem. É através desse processo que a ciência é disponibilizada culturalmente e é assim que é “consumida” pelos leigos.

Logan propõe um novo modelo para a ciência nos media a que chama de secularização. “For public communication of science to be sucessfull, Logan argued, it 472 Nelkin, 1995b, 64 473 Bauer, 2000 474 Roqueplo, 1974, 53 475 Schiele e Jacobi., 1988 476 Schiele e Jacobi., 1988, 15 477 Schiele e Jacobi., 1988 478 Roqueplo, 1974, 104

must reject scientific authority and acknowledge the value of opinions, beliefs, and values held by the audience. In that sense it is secular; it rejects the almost-religious primacy of science”480. A divulgação científica transforma o saber num sistema de representações sociais, de que o conjunto é constituinte da realidade de cada um. A representação social é a “appropriation du monde extérieur, recherche d'un sens dans lequel pourra s'inscrire son action”481. O que faz então a divulgação? “… elle contribue à donner à la science la seule modalité culturelle qui lui soit possible hors du monde scientifique proprement dit, à savoir: le statut de représentation sociale”482. Esta perspectiva recupera a teoria das representações sociais de Moscovici483, que permite abordar a problemática dos “discursos circulantes”. A teoria estuda os processos através dos quais as representações se constroem e reconstroem através das múltiplas formas de comunicação, da interpessoal à mediática, que constantemente se multiplicam e adensam”484.

Roqueplo485 exprime uma perspectiva marcante e que coloca a temática da divulgação num patamar muito crítico. "Le discours n'est pas la pratique: tant que la science sera transmise (ou non transmise) sous la seule forme du discours, nous aurions tort de nous étonner que … le sens commun, après trois siècles, confonde encore la masse avec le poids!"486. A tese deste autor é a de que a divulgação científica não corresponde a uma partilha de saber, e isto essencialmente porque "... c'est précisément l'irréductible altérité entre le 'récit' et la 'pratique' qui me semble mettre radicalement en question le propos médiateur du vulgarisateur dans la mesure où celui-ci ne dispose finalement, pour franchir le fossé qu'il prétend franchir, que de lettres de l'alphabet, de sons et d'images qui le condamnent à ne jamais faire que 'raconter' (…) il y a équivoque entre ce qu'un discours scientifique, fût-il vulgarisé, évoque dans un esprit formé à la pratique expérimentale – au sens scientifique du terme – et ce que ce même discours évoque dans un esprit qui, de l'expérience, n'a jamais connu que des récits"487. Esta perspectiva coloca o empreendimento divulgador não como um processo cognitivo mas antes como um processo discursivo. E isto porque a narrativa que é a divulgação da 480 Logan, 1991, cf Lewenstein, 1995, 349-350 481 Roqueplo, 1974, 130 482 Roqueplo, 1974, 136 483 1976, cf Jesuíno e Diego, 2002, 238 484 Idem, ibidem 485 1974 486 Roqueplo, 1974, 105 487 Roqueplo, 1974, 90-91

ciência tem um efeito-espelho, funciona antes como um espelho e não como veículo de uma autêntica transferência de saber. Também não é tradução, sendo uma descontextualização, em relação ao local da sua produção que é o espaço do cientista. "il fait de la science la réalité du public"488. Por isso, são mais criadores do que tradutores. Umberto Eco489 refere que “un message 'est une forme vide à laquelle on peut attribuer divers sens': il est une 'source de messages-sens possibles'. C'est le récepteur qui, en intégrant les informations, lui attribue un sens”. Por isso, a possibilidade de traduzir a ciência depara-se com uma impossibilidade estrutural que é a da desigualdade na distribuição do capital cultural490, logo na competência do interlocutor.

Para Jeanneret491, toda a comunicação da ciência é transgressão obrigatória pois a ciência tem que comunicar fora do seu quadro habitual, doutra forma não existiria socialmente. No entanto, o acto de divulgar (ou de vulgarizar, para utilizarmos uma terminologia mais próxima da francófona) é um fénomeno muito mais abrangente, a saber, “la référence la plus explicite, l'activité cognitive-épistémique, ne se dit jamais sans entraîner avec elle, d'abord, le mécanique-spatial (la 'diffusion'), puis l'économique-social (la 'popularisation'), vite mêlé de culturel-distinctif (la 'vulgarité') et parfois associé au linguistique-discursif (l''interprétation')”492.

Se a divulgação científica não é um discurso da ciência, ela é no entanto um discurso sobre a ciência, que procura colocá-la acessível ao senso comum (não o seu conteúdo mas antes o seu papel na sociedade). Daí o seu alcance ideológico, já que, sob a capa de promover a partilha de saberes, estará a perpetuar o não acesso de leigos ao saber. Partilhar um saber é partilhar um poder. "Le problème n'est pas d'abord un problème de communication mais un problème de conflit et de transgression. Un problème de structure sociale. Un problème politique"493. Está a comunidade científica realmente disposta e preparada para partilhar esse poder? Este poder é o que permite agir sob outrem, de forma legitimada pelas práticas sociais. Reencontramos aqui a problemática do trabalho de fronteira494 (boundary work) já que a disputa pela definição de uma fronteira entre ciência e não ciência é, na realidade, uma disputa pela

488 Roqueplo, 1974, 149

489 Eco, 1972, cf. Schiele e Jacobi. 1988, 21 490 Schiele e Jacobi, 1988, 22

491 1994

492 Jeanneret, 1994, 15 493 Roqueplo, 1974, 223 494 Gieryn, 1995

autoridade. Disputa essa que só se coloca a partir do momento em que a linearidade sobre a qual devia assentar a comunicação da ciência, na perspectiva do cientista, (que espera aliás que o leigo não a questione) é problematizada.