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1 – A organização política da ciência e tecnologia

Parte II – Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia

II. 1 – A organização política da ciência e tecnologia

A política científica e tecnológica de uma nação define o envolvimento político para incentivar a actividade científica, para garantir as necessárias condições de funcionamento e, indirectamente, indicar qual o lugar ocupado pela ciência e pela perícia científico-tecnológica na sociedade. Salomon550 sintetizou este coceito, que compreende “as medidas tomadas por um governo para, por um lado, encorajar o desenvolvimento da investigação científica e tecnológica e, por outro, explorar os resultados da investigação tendo em vista objectivos de política gerais”, o que cruza a política para a ciência (primeiro aspecto) e a política através da ciência (segundo aspecto). Traçar o seu retrato num dado momento histórico é também a ocasião para lembrar os princípios norteadores subjacentes a uma definição de política científica e do sistema que a suporta. Para um retrato do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia, sobre o qual não se encontra uma extensa literatura de reflexão, apoiar-nos-emos essencialmente em dois trabalhos académicos de autoras portuguesas551.

A organização da actividade científica em Portugal deve ser enquadrada por uma perspectiva mais abrangente que a situe num movimento globalizante que caracteriza as relações sociais da ciência. Vimos que, tanto a concepção de ciência como a da sua relação com outros sectores da sociedade é fortemente influenciada pelo modelo de organização do sistema de investigação, modelo global e apátrida, preconizado pela OCDE. Por outro lado, também este modelo é fortemente influenciado pelo paradigma dominante do sistema de investigação, paradigma que define a organização “normal” num determinado tempo e espaço, “como modo de organização da produção do conhecimento, ao mais alto nível, que permanece com as suas características mais

549 A investigação de terreno realizada para este trabalho teve início em Julho de 2003 e estendeu-se até

Abril de 2007. A estrutura organizativa e o respectivo aparelho legal foram sofrendo diversas alterações, algumas delas profundas. Face a essa perturbação, e por sugestão dos próprios laboratórios, foi sempre tida por referência a listagem dos treze laboratórios de Estado, que consta da RCM 36/2002 de 21 de Fevereiro.

550 Salomon, 1977 cf. Ruivo, 1998, 66 551 Ruivo, 1998; Henriques, 2006

importantes por um período determinado na história da ciência”552. O paradigma não só contextualiza o modo como se produz o conhecimento científico, que vimos que de uma actividade meramente racional se vem afirmando como processo sócio-relacional, como situa as dinâmicas dos seus protagonistas.

Antes porém, há que referir que diversos autores organizaram a história da actividade científica em etapas553, e que Blume554 apresentou uma síntese referente aos três paradigmas da política científica nos países ocidentais, o paradigma da ciência como motor de progresso, da ciência para a resolução de problemas e da ciência como fonte de oportunidade estratégica. O terceiro paradigma já contempla a existência de um modelo complexo, onde coabita uma diversidade de actores, instituições e processos, em interacção e movidos pela conquista das oportunidades estratégicas que se deparam.

Estaremos hoje a assistir à emergência de um novo paradigma555, denominado de “estado estacionário” e descrito como uma “situação altamente dinâmica onde a tensão contínua entre os desenvolvimentos científicos internos e as exigências sociais externas (…) pode causar uma mudança muito mais rápida dentro do sistema do que era normal no passado”556. Este estado corresponde ao terceiro modelo de paradigma da política científica557. Esta dinâmica coloca a ciência “amarrada”558 a um conjunto de influências, internas e externas, atravessadas por atitudes sociais e que provocam a imersão desta actividade na sociedade, ligando-a aos seus desafios e às respostas ensaiadas, numa escala doravante global. A ciência está interdisciplinar porque os problemas que é chamada a resolver estão mais complexos e encerram uma carga forte de incerteza (e isto porque os problemas se colocam mais rapidamente do que as respostas que a ciência consegue dar) o que requer uma maior precaução na gestão das consequências imponderáveis do desenvolvimento científico-tecnológico. A ciência que enunciamos passa a fazer-se em dois contextos, o da investigação propriamente dita e o da sua legitimação, sendo que o primeiro é envolvido pelo segundo. O contexto de legitimação caracteriza-se pela sua instabilidade, já que este processo é questionado de forma sistemática, provocando a ciência a (auto)-justificar-se. A perspectiva do

552 Ruivo, 1998, 25

553 Referidas em Ruivo, 1998, 63-85 554 1985, cf. Ruivo, 1989, 84-85

555 Price, 1956, 1961, 1963, 1965a e 1986; Ziman, 1978, 1987b cf. Ruivo, 1998, 15 556 Ziman, 1987b, 17 cf. Ruivo, 1998, 21

557 Ruivo, 1998, 84

construcionismo social aplicada à ciência dá visibilidade ao processo de legitimação e à forma como este condiciona o rumo da investigação científica propriamente dita.

A actividade científica tem vindo a sofrer alterações profundas para poder responder às exigências sociais que se lhe colocam559. Também o Estado procura adaptar-se a este novo estado de coisas, o que se traduz na ideia de contrato social do Estado com a actividade científica. Propomos que “contrato social” seja entendido como um conjunto de intervenções do Estado no fomento da actividade científica e na utilização dos seus resultados na sociedade, intervenções essas que vão indicar o grau de implicação e a direcção tomada pelo Estado na orientação da ciência e tecnologia nacional. Este aspecto tem especial relevo para o nosso estudo já que optámos por concentrar a abordagem nos laboratórios públicos.

A intervenção do Estado na ciência através de estruturas públicas de investigação fez-se sentir em diversos países do Ocidente em especial a partir da década de cinquenta, que, como vimos, se caracterizou por ser um momento de crença no desenvolvimento económico a partir da ciência e da tecnologia. A maioria dos laboratórios públicos foi criada em áreas das ciências aplicadas, tais como a agricultura, a geologia, a meteorologia ou as pescas. Em alguns casos, foram criados laboratórios de investigação básica ou fundamental. Os laboratórios públicos foram criados com o objectivo de concretizar as políticas de desenvolvimento nacional em determinados sectores económicos. “Le secteur publique de recherche ne peut être vraiment compris que par référence aux autres composantes du système de recherche (établissements d’enseignement supérieur et industrie), et, dans ce système, il joue essentiellement un rôle d’articulation, d’intermédiaire entre d’un côté, le domaine de la science et de la connaissance, et de l’autre, le domaine économique et social ou le domaine politique et réglementaire”560.

O Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia vem, em grande parte, descrito no Regime jurídico das instituições de investigação561. Este diploma orienta juridicamente as instituições públicas de investigação e as particulares sem fins lucrativos e que são financiadas por subsídios públicos. Mas o Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia inclui ainda todas as estruturas privadas de investigação, em meio empresarial ou

559 Ziman, 1987a , cf. Ruivo, 1998, 35 560 OCDE, 1989, 8

industrial. Tradicionalmente, Portugal não é um país com um desempenho central em matéria de investigação científica562. No espaço europeu, é indicado como um país periférico, com um grau de desenvolvimento menor em todos os sectores sócio- económicos, à semelhança de Espanha, Grécia ou Irlanda. Para quantificar este atraso, podemos comparar as percentagens do produto interno bruto que são canalizadas para o sector da Investigação e Desenvolvimento (I&D)563 em Portugal e noutros países europeus e pela forma como é distribuído o investimento pelos diferentes tipos de instituições de investigação.

No final dos anos oitenta564, Portugal canalizava para o sector da Investigação e Desenvolvimento 0,5% do produto interno bruto, praticamente metade do que fazia a Irlanda (igualmente considerado como sendo um país com menor desenvolvimento sócio-económico) e cerca de um sexto do caso alemão. A Estratégia de Lisboa, traçada pelos países membros da União Europeia em 2000, delineava os objectivos de desenvolvimento a alcançar até 2010 com vista a tornar a Europa num espaço económico, cujo crecimento assentasse na qualificação e no conhecimento. Previa-se que para tal, cada país deveria progressivamente aumentar o seu investimento público em I&D para atingir os 3% do PIB, em 2010565. Em 2003, Portugal permanecia nos 0,79%, segundo dados do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior566 e em 2006 identificava-se a meta do 1% para atingir até 2009567. No que diz respeito à distribuição deste investimento pelos diferentes sectores de execução, assistimos a uma inversão entre o sector do Ensino Superior e o sector do Estado: se em 1964, o Ensino Superior canaliza 8% do investimento e o Estado, 67%, já em 1999, o primeiro cresceu para 39%, tendo o segundo baixado para 28%. Os restantes trinta por cento são partilhados entre o sector empresarial (22% em 1964 e 23% em 1999) e as organizações sem fins lucrativos, praticamente inexistentes em 1964 (canalizando 3% do investimento) e mais expressivas (11%) em 1999568.

562 Também referido em Gago, 1991; Gonçalves et al, 2003 563 Henriques, 2006, 1; Ruivo, 1998, 202

564 Ruivo, 1998, 201

565 Revisto para 2,6% em 2005

566 MCTES, Breve apresentação da Proposta de Orçamento de Estado para 2006. Acedido em Julho de

2007, em: http://devel.mctes.pt/archive/doc/MCTES_OE06.pdf

567 MCTES, Um compromisso com a ciência para o futuro de Portugal. Acedido em Julho de 2007, em:

http://www.portugal.gov.pt/NR/rdonlyres/44DBCA87-D664-452B-A88E- FB415A34F989/0/Compromisso_Ciencia_2007_2009.pdf

Estes dados colocam Portugal num patamar de desenvolvimento científico e tecnológico bastante aquém do desejado para a Europa. O investimento em I&D não é, obviamente, o único indicador do desenvolvimento a que nos referimos. No entanto, é um indicador claro do esforço económico que um país pode, ou está disponível para, gastar no sector da Investigação Científica e Tecnológica. No entanto, este não constitui um trabalho sobre a gestão da política de ciência para Portugal, pelo que estes dados têm apenas um interesse ilustrativo.

Interessa antes destacar o facto do sector público da Investigação ter conhecido um franco desinvestimento desde a década de setenta.