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Capítulo 4: Ações políticas kaingang

4.4. a A ‘hierarquia’

Ao descreverem a organização da liderança local, o primeiro elemento destacado pelos Kaingang é a ‘hierarquia’. No contexto de Rio da Várzea, essa seria expressa por uma ordem crescente de posições ocupadas pelos polícias, cabos, sargento, major – as ‘lideranças menores’ [pa’í sĩ]- e pelo capitão, coronel, conselheiros, vice-cacique e cacique- as ‘lideranças maiores’ [pa’í mág]. Veja-se que, segundo Fernandes (2003), essa é uma forma de organização encontrada em todas as terras indígenas kaingang, apresentando variações como supressão ou acréscimo de algum cargo ou ‘patente’, inversão ou ampliação da hierarquia militar (:161-162).

A origem dessa formação remete ao período de criação de aldeamentos durante o século XIX (cf. capítulo 1). Este foi um período em que alguns indígenas, ao trabalharem para agentes colonizadores do império, recebiam por seus serviços títulos militares e pagamentos em forma de soldo. Os trabalhos, no caso, consistiam em ocupar postos de chefia nos aldeamentos e atuar na pacificação de índios ainda não aldeados (cf. Mota 2000; Fernandes e Tommasino 2001)173.

Mesmo com essas hipóteses, permanece a inquietação sobre como e por que uma organização política estruturada em patentes militares disseminou-se por todas as TIs kaingang. A esse respeito, o que vejo ao meu alcance é trazer a evidência de que, como foi demonstrado no capítulo 1, a organização política dos Kaingang durante o século XIX apresentava uma estrutura semelhante à atual: dividiam-se os chefes entre as categorias pa’í mág - representada pelos caciques

principais- e pa’í sĩ– representada, por sua vez, pelos caciques

subordinados. Pode-se inferir, portanto, que mesmo tendo a liderança kaingang se subdividido em uma multiplicidade de posições militares, a estrutura de hierarquia entre ‘lideranças maiores’ e ‘lideranças menores’ permanece. Mas como se caracterizam essas subdivisões? Quem as ocupa, como se diferenciam, o que se faz em cada uma delas?

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De acordo com as explicações dos membros da liderança, cada uma dessas posições possui uma ‘função’. ‘Os polícias, os cabos, o

173 Essa “militarização” da liderança kaingang pode ser também relacionada à tentativa de

instalação de colônias militares nos aldeamentos indígenas criados na região sul, no mesmo período (cf., por exemplo, Mota, 2000 : 165-167, sobre a instalação de um “aldeamento indígena de caráter militar” na região do Xongu, comandado pelo cacique principal Viri).

sargento e o major174 cuidam da segurança da área’: atuam geralmente na separação de brigas, em rondas noturnas, no controle de ‘confusões’ causadas por bebedeiras, e são sempre requisitados a atuarem em dias de bailes e demais festas que envolvam o consumo de álcool. A autoridade é estabelecida de acordo com a hierarquia: os polícias e cabos podem receber ordens dos sargentos, estes do major, sendo todos da ‘liderança menor’ ‘subordinados’ às ‘lideranças maiores’. Segundo o coronel José, dentre as ‘lideranças menores’, aquele que mais participa das reuniões e dos planejamentos é o major.

‘Aí tem o sargento, o cabo e os polícias... são eles que fazem as rondas. Por exemplo, se dá um caso de ter uma briga em um lugar ali, o cabo, os sargento e os polícias vão lá, pra pegar, prender. Se a pessoa reagir, eles dão um jeito, pegam e trazem igual. E já é o capitão que dá as ordens para eles175.’ (José Pinto, coronel)

Nota-se também que as posições de pa’í sĩ – com destaque para os ‘polícias’- são geralmente ocupadas por indígenas mais jovens, o critério de idade sendo também relevante para estabelecer relações de comando nessa estrutura hierárquica (havendo exceções: durante minha estadia, o capitão vigente em Rio da Várzea era um homem bem jovem; como já havia trabalhado como polícia e como cabo, e o posto de capitão havia sido deixado por seu sogro, ele foi indicado a assumi-lo).

‘O cacique deixa as leis nas minhas mãos. Se acaso não der certo, eu volto para o cacique e ele me dá uma outra opinião, um outro jeito de fazer. A liderança trabalha junto, fazendo a leis internas. O cacique não pode fazer sozinho. Como o cacique passou para mim, eu passo para os cabos, polícias, sargentos, eu comando tudo. O cabo e o sargento comandam as polícias deles também.’ (Thiago Cadete, capitão)

O capitão tem a posse da chave da cadeia176 e pode ‘mandar prender’. Trata-se de um importante cargo na liderança, pois, além de

174 Durante minha pesquisa de campo, a ‘liderança menor’ de Rio da Várzea era formada por quatro polícias, dois cabos, um sargento e um major. Os cargos de liderança maior são sempre ocupados por apenas uma pessoa.

175 Veja-se portanto, aqui uma inversão da hierarquia do exército, em o “major” é superior ao “capitão” e inferior ao “tenente-coronel”.

176

A cadeia é um sistema de punição amplamente difundido nas TIs kaingang; mais detalhes sobre este e outros sistemas punitivos serão dados mais adiante.

substituir o cacique em determinadas situações de sua ausência, ele faz a mediação entre as ‘lideranças maiores’ e ‘menores’. Ou seja, as diretrizes e decisões tomadas pelas ‘lideranças maiores’ são a ele passadas, para que possa comandar as práticas de sua ‘equipe’ (polícias, cabos, sargentos, major) - quem deve ser preso, quem deve fazer ronda noturna, quem trabalhará nos dias de festa177.

‘O capitão está com a lei. Se é preciso condenar, fechar na cadeia, ele fecha. É ele quem tem o prazo pra fechar e largar. E depois que eles largam, somos nós que fazemos o conselho pra pessoa, para que não volte a fazer mais... Conselho pra botar no caminho certo, para que não venha mais tarde acontecer de novo.’ (S. José Pinto – coronel)

O coronel atua em assuntos administrativos, na formação do ‘conselho’ e nas tomadas de decisões cotidianas. Em Rio da Várzea, é o braço-direito do cacique: acompanha-o nas viagens, está presente em todas as reuniões da liderança, reúne-se particularmente com ele para fazer planejamentos sobre projetos, sobre as formas de aplicação de recursos públicos, sobre quais medidas devem ser tomadas em assuntos escolares ou no posto de saúde. Nas reuniões com a ‘comunidade’ posiciona-se sempre próximo ao cacique, por vezes pontuando seu discurso com comentários paralelos.

O vice-cacique substitui o cacique nos momentos em que este não está presente, principalmente na atividade oratória em ocasiões públicas ou em reuniões com a ‘comunidade’. Exerce influência nas tomadas de decisões, atuando também como conselheiro. Como já colocado, o vice-cacique de Rio da Várzea é também kujã, e detentor de amplo ‘conhecimento do mato’. É comum referirem-se a ele como o ‘líder espiritual da comunidade’.

‘Primeiro executa, depois aconselha. Porque é só com o

conselho que a execução pega bem’. (S. João Elias,

conselheiro)

Fazem parte da liderança também os conselheiros: geralmente anciãos, eles possuem uma participação primordial nas tomadas de decisões, pois são detentores do ‘conhecimento das leis e dos costumes

177 Percebo, no entanto, que as divisões das ‘funções’ da liderança kaingang não são rígidas. Esses acionamentos podem na prática ser tomados por qualquer membro da liderança maior, e em certos casos, também por lideranças menores.

dos antigos’. São eles os responsáveis por aconselhar os noivos nos casamentos, e as pessoas que acabaram de sair da prisão. Assim, podem ser considerados como veículos de acesso a uma moralidade considerada exemplar para os Kaingang; através dos aconselhamentos eles sustentam como os Kaingang do uri [tempo atual, hoje] idealmente devem agir, de acordo com os costumes, os modos de agir do vysy [tempo passado, dos antigos].

‘O cacique tem que saber das leis dos brancos, tem que saber falar com os políticos importantes... mas também tem que saber das nossas leis internas, e saber lidar bem com a comunidade.’ Wilson Moreira, ex-cacique

Finalmente, ao cacique cabem, principalmente, as funções administrativas. Sua disposição como orador, no entanto, seja em reuniões com a ‘comunidade’ ou e em ocasiões públicas que contam com a presença de representantes do Estado é indispensável. Confere-se, portanto, a ele – que ‘fala em nome da comunidade’- o plano da representação política. Representação essa, notemos, que se efetua, à parte de eventos festivos como o dia do índio, geralmente em momentos críticos – como em reuniões com secretarias regionais da saúde e escolar, com a prefeitura e demais órgãos estatais, em que faz-se quase impreterivelmente presente o tema da reivindicação (por direitos jurídicos, investimentos, recursos, fornecimento de empregos, melhorias de todo tipo). Além disso, do cacique espera-se também que sejam tomadas decisões sobre as mais diversas questões do cotidiano: aprovar ou desaprovar os casamentos e os divórcios, decidir se determinadas pessoas devem ser presas ou não, aprovar a ampliação de alguma área de plantio, permitir que famílias de outras TIs mudem-se para a sua, autorizar a presença de algum fóg na TI (para citar algumas das mais recorrentes).

De toda forma, à parte do cacique, percebe-se que as práticas da liderança remetem mais ao plano da ação política do que da

representação178. Dentre as ações políticas ressaltam-se, como veremos,

178 Concebo essa bipartição a partir da forma como propõe Sztutman (2009), que equaciona os planos da ação e da representação respectivamente ao plano da liderança e ao plano da chefia. Sugere o autor que a efemeridade das representações indígenas, assim como os mecanismos de multiplicidade e alternância percebidos no plano da chefia entre os antigos Tupi (e povos atuais) apresentam-se como críticas às noções tanto de chefia quanto de representação política – idéias que, por sua vez, pressuporiam uma noção de sociedade una ou acabada. Assim, portanto, sua ênfase nas ações políticas ameríndias, mostrando serem elas indissociáveis dos processos de constituição de demos ou coletivos.

a vigilância e o controle das práticas punitivas, mas também a prática de reuniões.

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As reuniões da liderança em Rio da Várzea realizam-se idealmente toda semana, na maioria das vezes na casa do cacique. No entanto, sempre que ocorre algum acontecimento extraordinário– alguma visita, o convite para reuniões fora da TI, festas – ‘sai reunião’. São também freqüentes as reuniões de membros da ‘liderança maior’ com membros do conselho escolar e do conselho de saúde (cf. capitulo 2).

Dentre todas as ‘reuniões internas’, os Kaingang costumam conferir maior importância àquelas realizadas com toda a ‘comunidade’. Promovidas na oca ou no salão de festas, geralmente aos domingos (e não mais que uma vez por mês), essas reuniões ocorrem quando decisões importantes devem ser tomadas, ou é preciso que todos tenham conhecimento sobre algum acontecimento na TI: construção de novas casas, instalação de banheiros, substituição de algum membro importante da liderança. Nessas reuniões, estão presentes a maioria dos homens e das mulheres da TI, que se dispõem diametralmente opostos no recinto, sentados em bancos de madeira ou no chão. As crianças também fazem-se presentes, e ficam reunidas no ponto de encontro da ala feminina e masculina. Os membros da liderança, por sua vez, sentam-se em cadeiras, em um ponto demarcado entre os homens. O cacique, que se posiciona no centro e é o principal orador da reunião, fala por aproximadamente três horas – sendo por vezes interrompido por alguns dos conselheiros, ou por comentários e risadas dos demais presentes.