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Aspectos de uma teoria nativa: os Kaingang descrevem seu sistema

Capítulo 3: Políticas domésticas: do parentesco kaingang

3.4. Aspectos de uma teoria nativa: os Kaingang descrevem seu sistema

“Com efeito, propomo-nos a mostrar aqui que a descrição das instituições indígenas feitas pelos observadores em campo- inclusive eu próprio- coincide, certamente, com a imagem que os indígenas têm de sua própria sociedade. Mas essa imagem não passa de uma teoria ou, melhor dizendo, de uma transfiguração da realidade, que é de natureza totalmente diferen- te” (Lévi-Strauss, 2008 [1952]: 134)

Os Kaingang de Rio da Várzea descrevem sua organização social baseando-se em grande medida no sistema de metades103, e apresentam para isso um modelo bastante claro sobre suas classificações de parentesco. A divisão da sociedade entre pessoas kamé e kanhru e a maneira como estas se relacionam de acordo com o pertencimento às metades clânicas é fundamental para a forma como concebem e descrevem o socius nativo.

Ser kamé ou ser kanhru é considerado pelos indígenas como um diacrítico fundamental para a caracterização dos kanhgág pe- os ‘índios puros’ ou ‘verdadeiros’. Os usos dessa categoria [kanhgág pé], por sua vez, parecem apontar para concepções de humanidade difundidas entre os Kaingang. Tudo indica que para ser plenamente humano é preciso pertencer a uma das metades: isso define uma posição em um mundo de significações, que torna possível a vida e o estabelecimento de relações com ‘parentes’104. Ainda que esse relacionar-se com os parentes não seja algo prontamente estabelecido (i.e., pertenço à uma metade clânica,

103 Devo de antemão ressaltar que a pertinência dessa afirmação é válida para minha experiência etnográfica entre os Kaingang da TI Rio da Várzea e áreas vizinhas do Rio Grande do Sul. Há no entanto um consenso entre a atual geração de antropólogos de que em diversas áreas em Santa Catarina e Rio Grande do Sul o sistema de metades é pouco conhecido, principalmente, entre os mais jovens.

104 Veja-se que se podemos inferir um sentido de humanidade plena entre os Kaingang, ele obviamente extrapola o pertencimento às metades clânicas, envolvendo aspectos outros, como a nominação e a relação entre corpo e alma, descritas no capítulo anterior. Tal elaboração encontra ressonância com o que foi trazido por Rosa PC(2011), em sua pesquisa sobre os processos de construção de corpos e pessoas entre os Kaingang. Noto no entanto que se a autora chama atenção para aspectos corporais e constitutivos da pessoa, irei agora enfatizar os princípios relacionais do parentesco kaingang tendo como foco os mecanismos de

aproximação. Proponho, assim, que os elementos fundamentais envolvidos nos processos de

aproximação e consangüinização não são distintos daqueles operantes para tornar alguém “mais humano” no pensamento nativo.

portanto, sou humano e posso me relacionar com outros parentes/humanos), o sistema de metades mostra-se como a convenção mais explícita no processo de parentesco kaingang (no contexto da TI Rio da Várzea, ressalto novamente).

Todos em Rio da Várzea sabem a qual metade pertencem e, quase invariavelmente, a qual pertencem todos os indígenas ali residentes. Diferente de outras regiões, no entanto, os indígenas comumente se referem ao pertencimento às metades através das ‘marcas’ [rá]: aqueles pertencentes à metade kamé são da ‘marca riscada’ [rá téj], e aqueles pertencentes à metade kanhru, da ‘marca redonda’ [rá ror]. As ‘marcas’, por sua vez, são alusões às pinturas referentes à cada metade, conforme presente no mito de origem. Referem-se, além disso, à forma como os pertencentes às metades kamé e kanhru pintam-se durante o ritual do Kiki.

Os Kaingang consideram que as metades/ marcas estão associadas a diferenças comportamentais e à forma como os corpos são constituídos: ‘É fácil ver quem é rá téj e quem é rá ror’, disse-me uma senhora indígena, ‘é só olhar para as unhas, os rá téj têm riscos nas unhas, os rá ror, não. E é assim: os rá téj, que são kamé, são mais altos, mais fortes e bonitos. Os rá ror, kanhru-kré, são baixinhos, gordinhos... mas são mais inteligentes’. Veja-se que com base em atribuições como essas, em interpretações de mitos e de elementos performativos do ritual do Kiki, alguns autores aqui mencionados glosam que as metades que dividem a sociedade kaingang são opostas e assimétricas, a assimetria ligando-se ao fato de a metade kamé ser associada ao todo, considerada mais forte, sendo a metade kanhru englobada por ela105. Além disso, enfatiza-se uma relação de complementaridade entre as metades, presente também no mito e no rito. Neste caso, percebo uma ressonância com o que me disseram alguns indígenas: ‘é preciso ter kamé e kanhru na liderança, e os conselheiros, que são dois, também tem que ser um de cada marca. Tem que ser assim, senão não funciona bem’. Com efeito, conforme veremos no capítulo 4, o modelo apresentado pelos Kaingang é fortemente marcado por uma concepção harmonizante, onde tudo ‘funciona bem’, e cada um sabe sua ‘função’.

Parece-me, no entanto, que os aspectos de assimetria atribuídos às metades clânicas Kamé e Kanhru não são extensíveis ao sistema de

105 “A organização dual kaingang consiste de metades chamadas kamé e kanhru, que são concebidas como assimétricas e complementares. O kamé é primeiro e associado ao mais forte, masculino, sol, leste, poder político e xamanismo, enquanto o kanhru é concebido como segundo, mais fraco, feminino, associado à lua, ao oeste e à organização do rito de segundo funeral” (Crépeau, 2006: 12).

‘marcas’, que encontra nas relações matrimoniais sua principal forma de atualização. Além disso, ainda que os Kaingang considerem as ‘marcas’ e as metades clânicas como equivalentes, veremos aos poucos que suas práticas matrimoniais e de sociabilidade revelam diferenças entre estes sistemas. Antes de chegarmos a estas questões, no entanto, importantes considerações sobre a descendência devem ser feitas.