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Capítulo 3: Políticas domésticas: do parentesco kaingang

3.6. a Os afins aproximados

Faz-se também necessário ressaltar que mesmo que não sejam consangüinizados tal como ocorre com os afins virtuais (como os primos cruzados), os jamré (afins reais) que se ligam por casamento a um grupo doméstico são aproximados da consangüinidade e, logicamente, da relação kanhkó. Disso resulta, pelo que pude perceber, na intensificação de dois tipos de relação entre afins. Por um lado, os genros e noras passam a incorporar os tipos de relações estabelecidas entre os kanhkó, estabelecendo, na maioria dos casos, um alto grau de convívio e solidariedade. Isto fazia com que a prerrogativa do respeito entre esses afins (principalmente entre cunhados) fosse obliterada142,

140 A intradutibilidade das canções ‘dos antigos’, é comum tanto entre os Kaingang quanto entre os Xokleng. Para os primeiros, ver Gibram (2008) sobre a música no ritual do Kiki; para os segundos, ver Hoffmann (2011) sobre a “música do mato”. Considera-se também, em ambos os casos, a possibilidade de se tratar de uma versão arcaica da língua vernácula. 141 Ou seja, conforme a fala, apresentando variações de altura que não chegam a ser associadas a um sistema de diferenciação tonal. Devo esclarecer que a música kaingang é algo que ainda carece de pesquisas mais aprofundadas; assim, também por despertar muito meu interesse, deixo registrada a possibilidade de desenvolver uma pesquisa futura sobre o tema.

142 A etiqueta de “respeito” [piâm]entre os Apinayé, é também associada aos graus de proximidade e distância: diz-se que ela é relativamente desnecessária nas relações intra- familiares consolidadas, e intensificada em relações entre pessoas distantes genealógica e socialmente, como amigos formais e afins, onde toma a forma de “evitação” (Coelho de Souza, 2004: 32).

posto que trata-se de uma forma de relação que intensifica-se com a distância.

Por outro lado, pude perceber que o tratamento do jamré co- residente para com sua má [sogra] e seu kakré [sogro] era marcado tanto por respeito quanto por práticas de solidariedade, efetuadas geralmente de maneira assimétrica. Veja-se que já nos escritos de Turner (1979) sobre os Kayapó, atribui-se à figura do sogro uma concentração proeminente de poder político, este atualizando-se principalmente através do controle hierárquico daquele sobre seus genros143. Fernandes (2003), seguindo esta direção, destaca também a concentração de poder na figura do sogro entre os Kaingang. Enquanto chefe residencial, o sogro exerceria sua dominação através das prestações decorrentes do “serviço da noiva”, que implicaria em tarefas diversas prestadas pelo genro (:125). Propõe desta forma que o grupo doméstico, que engloba diferentes grupos familiares, acabaria configurando-se enquanto unidade política.

Mesmo que eu concorde e siga considerando os grupos domésticos como domínios políticos discretos, devo aqui fazer algumas objeções. Em primeiro lugar, devo salientar que, para chegar a esses argumentos, o autor pressupõe a uxorilocalidade como regra de residência entre os Kaingang - algo que, como já colocado, não encontra ali tal positividade. Além disso, mesmo tomando os casos em que o noivo muda-se para a casa da família de sua esposa, a convivência de fato entre genro e sogro é notoriamente curta: o casal recém casado ali se estabelece apenas o tempo suficiente para que a eles seja concedida uma nova casa e para que possam se sustentar economicamente (cf capítulo 2). Quando isso ocorre, marido e esposa passam a formar um novo núcleo familiar e o genro já se torna um novo chefe de família. Além disso, ainda que as relações com o grupo residencial de origem - principalmente da mulher- continuem efetivas, as relações de

143 Devo acrescentar que esta seria a entrada de compreensão de Turner sobre o dualismo Jê, este sendo concebido como uma forma de amenizar as diferenças inter e intra-familiares decorrentes principalmente da uxorilocalidade- a qual acabaria conferindo uma concentração de poder na figura do sogro enquanto chefe residencial. Para o autor, em suma, o dualismo não pode ser descolado dos aspectos políticos e sociais expressos principalmente nessas formas de dominação. Vale notar que em estudo mais recente sobre os Kayapó (Mẽbengôkre), Lea (1999) critica o modelo de Turner (idem) sobre o ciclo de desenvolvimento da família Kayapó, ressaltando que são raros os casos em que os sogros convivem com seus genros, visto que o casamento ali se dá entre homens bem mais velhos que suas esposas. Assim, quando suas filhas se casam, é comum que os pais já tenham morrido ou deixado suas casas, cabendo à mulher o encabeçamento de sua unidade doméstica (:189).

subordinação política entre sogro em genro não se mostram tão consistentes se comparadas com as relações de proximidade e solidariedade entre filhas e mães, conforme vem sendo apresentado.

Por outro lado, pode-se também dizer que, se validarmos uma proeminência política do kakré [sogro] nas relações intra-familiares, algo semelhante ocorre com a figura da má [sogra]: suas noras prestam- lhes serviços domésticos, dividem bens, acompanham-nas em viagens, cuidam de sua saúde em caso de doenças. É também comum as mulheres kaingang dizerem, de formas distintas, que ‘é o pa’í que fala e representa a família, mas é a manh que decide’. Dessa forma, deve-se ressaltar que o poder político atribuído geralmente apenas ao sogro é mais freqüentemente atualizado de forma complementar pelos ‘troncos- velhos’, ou seja, pelo casal mais velho de um grupo residencial.

Uma figura exemplar a este respeito era D. Laurinda. Presenciei diversos momentos em que ela decidia se alguém poderia mudar para a área indígena: lembro, por exemplo, quando seu irmão Hortêncio estava para mudar para lá e disse que só iria se D. Laurinda estivesse de acordo. Seu poder de decisão aparecia também durante reuniões da liderança com a ‘comunidade’: uma cena bastante comum era ela cochichando no ouvido de S. João Elias (seu marido, que é conselheiro) para comunicar, segundo disse-me ela, o que estava pensando sobre os assuntos em pauta na reunião. S. João, por sua vez, depois de alguns instantes, cochichava no ouvido do cacique Antônio, passando a ele o que D. Laurinda havia lhe dito. Assim, mesmo que a liderança local seja formada exclusivamente por homens, momentos como este confirmavam a influência política de D. Laurinda, por vezes mais significativa que a de S. João Elias144.

Os desdobramentos da concentração de poder dos chefes residenciais serão tematizados no próximo capítulo. Passo agora a abordar outro plano das relações entre jamré, que são associadas às inversões da prerrogativa de respeito ali estabelecidas.

144 Deixo claro que não pretendo aqui inverter a lógica da dominação masculina predominante na literatura etnológica ameríndia (cf. Lasmar, 1999; Lea, 1999)- e especialmente kaingang - propondo com isso uma idéia de matriarcado, uma utopia de sociedade em que as mulheres detém o poder em detrimento dos homens (cf. Bamberger, 1974 apud Lea, 1999). Como já colocado, proponho, devido à ênfase na literatura kaingang ao mundo masculino, uma descrição que mostre a devida importância do plano de atuação feminina para o domínio sócio- político entre esses indígenas.