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Capítulo 3: Políticas domésticas: do parentesco kaingang

3.1. A melancia, o mel e o desejo

‘Marsĩa kanhkó tũ’, disse-me uma mulher kaingang, enquanto eu e seus ‘parentes’ sentávamos em seu prur [terreno limpo que rodeia a casa] e dividíamos uma saborosa melancia. O significado, disse-me ela: ‘A melancia não tem parente’. Muito intrigada com a assertiva, continuei a conversa: ‘como assim, a melancia não tem parente?’, ao que ela respondeu-me: ‘a melancia, por ser muito desejada, por ser uma fruta que todos querem, que dá vontade de ter pra si, é boa para as mulheres solteiras, as mén tũ. Se você, que é solteira, passar a casca da melancia no seu rosto e no seu corpo, vai ficar tão desejada, que vai logo arranjar marido. Mas aí, quem era seu parente deixa de ser. Todos vão desejar você. Teve uma mulher aqui na área que fez isso, e nunca mais teve parente. E isso passou para seus filhos, seus netos, eles também não têm parente. Aí tem que escolher: você pode passar melancia, e arranjar marido, mas aí nunca mais vai ter parente. ’

E enquanto me lambuzava com mais um generoso e suculento naco de marsĩa, todos que estavam em roda, saciando-se e matando a sede provocada pelo calor intenso daquele dia de verão, repetiam com aguda reticência que as mulheres que passassem no corpo a casca daquela desejada fruta ficariam sem parentes [kanhkó tũ].

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É no segundo ato das Mitológicas – “Do Mel às Cinzas”- que Lévi-Strauss, com base em um mito Mundurucu, refere-se à “natureza diabólica das melancias” (2004[1967]:90). Neste mito (M157b), os homens que primeiro ingeriram as melancias, frutos providos pelo demônio, morreram envenenados, seu consumo tornando-se livre de perigo somente após sua domesticação. Neste mesmo volume, Lévi- Strauss refere-se também a mitos de outras regiões da América, nos quais, justamente por terem perdido seu potencial envenenador, as

melancias são consideradas frutos peculiares, diferentes dos demais frutos da estação seca, em sua maioria amargos e venenosos. Com efeito, o autor considera-o como um fruto marcado pela ambigüidade, seja por conter em si o potencial (inativo) de veneno, seja por, na passagem para a estiagem seca, conservar sob sua casca grossa e dura os deleites da aquosidade da estação chuvosa. Tais ambigüidades, já indicadas em seu continente e seu conteúdo, remetem por sua vez a deuses enganadores presentes nos mitos que fazem referência a esse fruto: verdadeiros tricksters que, segundo Lévi-Strauss, diferenciam-se “por fora e por dentro” (:94).

Na narrativa kaingang, vimos que a melancia, fruto de explícito anseio, carrega também ambigüidades: sua casca (continente) passa à mulher solteira seu potencial de desejo (conteúdo), o que leva à possibilidade de todos, inclusive consangüíneos, quererem-lhe tomar como esposa. Tal transformação, contudo, contém em si um grau de envenenamento: ao tornar-se excessivamente desejada, a mulher perde seus ‘parentes’, generalizando em torno de si uma afinidade potencialmente desmedida. Os perigos decorrentes desta escolha, por seu turno, são de tal forma anunciados pelos Kaingang, que outras analogias fazem-se a esse caso pertinentes.

Como já dito em outros lugares87, os mitos, em última instância, falam todos sobre a passagem da natureza à cultura. Em “Do mel às cinzas”, assim como em “O Cru e o Cozido”, revela-se justamente uma mitologia indígena obsessiva em perseguir a diferenciação, o estado descontínuo, aquilo que torna possível o estabelecimento de um sistema de significações. Nesse sentido, o temor indígena ressaltado nos mitos, utilizando as palavras de Sztutman, seria quanto à

“conjunção não-mediada entre esferas normalmente separa- das, perigo que faria o estado de “sociedade” — e, portanto, de diferenciação — resvalar em estado de “natureza” — e, portanto, de indiferenciação(...) Não importa o lugar, os mitos falam sempre de uma só questão: a passagem da natureza à cultura, isto é, o estabelecimento das regras de aliança e a separação entre humanos e não-humanos (2005:214).

Se a condição de humanidade diferencia-se pelo surgimento tanto da aliança e da mortalidade, quanto do fogo culinário (cf. Viveiros de

87

Vide, por exemplo, Lévi-Strauss (2004a, 2004b); Viveiros de Castro (2002a); Sztutman (2005); Lima (1999).

Castro, 2002a:171), o mel, estando “aquém da cozinha”, representa nos mitos os perigos de uma reaproximação dos humanos à esfera da natureza88. Além de ser um alimento que não requer preparos culinários para seu consumo, o perigo de “regressão à natureza”(Sztutman, 2005 :215)mostra-se devido à ampla associação do mel ao envenenamento e à sedução89, representado nos mitos muitas vezes como a causa da quebra de alianças.

Portanto, se a natureza “dia-bólica”90 das melancias é ressaltada nos mitos analisados por Lévi-Strauss, já é possível perceber outros desdobramentos presentes na pequena narrativa acima representada. Diante dos paradoxos apresentados pelo mel, a melancia, fruto de desejo que pode ser manejado pelas mulheres kaingang solteiras como um mecanismo de sedução, dele se aproxima. Ambos contém um potencial de veneno: a melancia, assim como o mel, pode representar o perigo do “regresso à natureza”- no caso, por infringir as interdições de incesto e as regras de alianças ali estabelecidas. Tão desejada quanto a melancia, a mulher deixa de ter ‘parentes’.

Para prosseguir com os desdobramentos dessas questões e suas implicações relacionais entre os kaingang, algumas perguntas primeiro se impõem: diante da aparente contradição de não se ter ‘parentes’ mas ao mesmo tempo serem mencionados marido, filhos e netos, quem seriam os ‘parentes’ /‘kanhkó’ que a desejada mén tũ deixa de ter? Porque são tão importantes? Subseqüentemente, seja qual for a identificação dessas categorias nativas, quais seriam os perigos imbricados a uma atitude que leva a algo considerado como uma

88 Note-se que o tabaco apareceria assim representando uma “sobre-natureza”, pois está “além da cozinha”, podendo, em contrapartida, trazer as possibilidades de reaver as aquisições culturais perdidas. Ver Sztutman (2005), para uma resenha das Mitológicas, vol. 1 e 2, onde são ressaltados os perigos da continuidade entre natureza e cultura no pensamento ameríndio, assim como o elogio do discreto em relação a esses dois planos ontológicos.

89 Conferir, em “Do mel às cinzas”, o capítulo III da Primeira Parte: “História da moça louca por mel, de seu vil sedutor e de seu tímido esposo” (:97-138). Já para as relações entre veneno e desejos culinários e sexuais incontidos, vale trazer a aproximação presente em “O Cru e o Cozido” entre o mito mundurucu de origem do timbó (veneno de pesca) e o mito da “amante do tapir” (:299-300; 305-307), que Lévi-Strauss considera como simétricos. Veja-se que, se no primeiro mito a mulher é considerada “suja” e desprende veneno de seu corpo em decorrência de sua “empresa culinária imoderada”, no segundo a sujeira da amante é associada a seu “erotismo excessivo, que o animal satisfaz melhor” (:306). Sobre esta última, o autor evoca a fala de um informante indígena que a descreve como “sem-vergonha muito suja”, e acrescenta que “entre nós” essas mulheres são tratadas como “sujeira”, tratando-se, portanto, de uma “sujeira moral”.

90 Faço aqui referência a Menezes Bastos (1996:15) que também em outros lugares chama a atenção à etimologia das palavras “dia-bólica” e “sim-bólica”, que respectivamente apontariam para a idéia daquilo que “separa” e “une”.

afinidade desmedida, que ultrapassa – ou “envenena” - as relações de consangüinidade?