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Capítulo 1: Das histórias kaingang e seus personagens

1.4. Aldeamentos na região do Alto Uruguai

Atesta-se a presença de índios Kaingang na região planáltica do Rio Grande do Sul, mais especificamente na região do Alto Uruguai, há aproximadamente 1500 anos. Tal constatação é baseada na existência de inúmeros sítios arqueológicos que desmontam a idéia de que a presença indígena ali se daria somente após a formação dos aldeamentos no século XIX. De fato, considera-se que a ocupação das áreas onde seriam formados os aldeamentos de Guarita e Nonoai, dois dos maiores

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territórios kaingang localizados na referida região fisiográfica (entre os rios Piratini e Passo Fundo), estaria ligada às migrações dos grupos chefiados pelos caciques Fongue e Nonoai durante o século XVIII. No entanto, é consenso que os indígenas chefiados pelo cacique Braga seriam autóctones dessa região (Ebling, 1985: 14).

A formação dos primeiros grandes aldeamentos na região do alto Uruguai contou também com a colaboração de caciques principais, como ocorrido em outros contextos da região sul. Sob o amparo da Lei no. 601 de 1850– mais conhecida como “Lei de Terras”27-, foram criados inicialmente os aldeamentos de Guarita, Nonoai e Campo do meio. Tais medidas estavam ligadas à liberação de terras para o povoamento colonial europeu (representado principalmente por ‘colonos’ alemães e italianos), buscando-se concentrar a maior quantidade possível de índios nos territórios demarcados.

Segundo Nonnenmacher (2000:31), a formação do aldeamento de Nonoai coincide com os primeiros povoamentos da região do antigo município de Passo Fundo, nas proximidades da foz do Rio de Passo Fundo. A oficialização do aldeamento ocorreu a partir do ano de 1845, no momento em que o governo provincial passa a enviar missionários para a catequese dos indígenas da região. Nesse mesmo período, estabelece-se com o cacique Nonoai um acerto para a construção de uma estrada que ligava o aldeamento aos campos de Palmas e aos demais povoamentos da região missioneira. Pela posição considerada estratégica, e pelos interesses coloniais em povoar a região, o aldeamento de Nonoai acaba sendo, durante o século XIX, um dos mais importantes na província (ibidem: 24). Em virtude dessa centralização e da solicitação dos fazendeiros da região de Cruz Alta, quase toda a população de Guarita foi transferida para Nonoai. Essa migração forçada revelou-se como mais uma das estratégias articuladas pelo Governo Provincial para o confinamento de indígenas da região neste aldeamento.

Paralelamente a isso, o governo estatal tomou diversas medidas que culminaram com a diminuição dos territórios indígenas demarcados em períodos anteriores. Assim ocorreu com o aldeamento de Nonoai: sua primeira demarcação, oficializada no ano de 1856, abrangia uma

27 A “Lei de Terras” reduzia todos os tipos de propriedades territoriais a apenas duas classificações: terras públicas (do Império) e terras particulares (cujos proprietários deveriam ter um título legítimo de propriedade). Note-se que com essas leis as terras indígenas passaram a ser consideradas “terras particulares”; o que de certa forma facilitou as alterações posteriormente feitas nos territórios indígenas, visto que as documentações territoriais eram facilmente manejadas pelos setores provinciais.

área de aproximadamente 428 mil hectares. Esse primeiro território foi intensivamente invadido pelos colonos da região (no ano de 1870, aproximadamente 1300 colonos ocupavam áreas indígenas), que acabaram apossando-se das terras invadidas. Muito devido a essas ocupações, o governo do Rio Grande do Sul passa a reduzir drasticamente as áreas indígenas, dividindo-as em novos territórios: em 1880 contam-se com oito aldeamentos, de extensão bastante reduzida em relação aos três primeiros grandes aldeamentos de origem (Nonoai, Guarita e Campo do Meio)28.

A área de Nonoai, que no fim do século XIX abrangia cerca de 360 mil hectares, passou no período republicano por novas demarcações, com diminuições territoriais ainda mais incisivas. Entre os anos de 1910 a 1918 a Diretoria de Terras e Colonização da Secretaria de Obras Públicas do Estado do RS realizou uma nova demarcação que reduziu o aldeamento a praticamente 10% do território original. Para isso, dividiu a área em dois novos toldos indígenas: o toldo de Nonoai com 34.908 ha de extensão, e o toldo de Serrinha, com 11.950 ha. Com essas demarcações, intensificou-se o confinamento dos Kaingang: muitos indígenas que ocupavam terras antes pertencentes aos antigos limites do aldeamento, passaram a vê-las ocupadas por fazendeiros, sendo muitas vezes expulsos de seus territórios. A área de maior concentração de indígenas continuou sendo Nonoai, para onde grande parte desses indígenas viu-se obrigada a migrar.

Com o advento do SPI (Serviço de Proteção ao Índio) no Rio Grande do Sul, novas alterações territoriais ocorreram em Nonoai. A medida tomada em 1941 consistia na criação de uma Reserva Florestal de 19.998 hectares, que passaria a ser considerada como propriedade do governo estadual. Duas décadas depois, no ano de 1962, criou-se o Parque Ecológico de Nonoai, que passou a contar com a ação vigilante de guardas florestais. A idéia era impedir que os indígenas ocupassem a área reconhecida como Reserva Florestal, realocando-os para a área centralizada na nova demarcação de Nonoai. A presença dos guardas florestais marcou um período de conflito e violência com os indígenas que habitavam a porção florestal desse território indígena.

Note-se que justamente durante os anos de 1960, sob a égide do governo de Leonel Brizola, cerca de 2.500 hectares dessa reserva florestal foram distribuídos aos colonos, na forma de 143 lotes - evento que ficou então conhecido como “reforma agrária do Brizola”. Tamanha

28 São eles: Nonoai, Guarita, Campo do Meio, Inhacorá, Pinheiro Ralo, Pontal, Caseros e Campos de José Bueno.

coação pelos setores governamentais em relação à ocupação indígena na área florestal fica um pouco mais clara se tivermos isso em mente. Seria necessário expulsá-los, para que as terras ficassem devolutas e passíveis de redistribuição29.

Em uma região próxima a onde foram distribuídos esses loteamentos, e também dentro da Reserva Florestal de Nonoai, encontrava-se a região de Penhkár, hoje reconhecida como Terra Indígena Rio da Várzea, habitada pelos ascendentes dos indígenas que passarão a povoar esse trabalho. O sobrevôo até o momento foi feito justamente para nos levar até ali.

Mapa 2: Planta do Toldo de Nonoai, na demarcação de 1911/1912. No detalhe, a região de Penhkár. Fonte: Simonian (1981:117)

29 Interessante notar que para diversos indígenas com quem conversei nas áreas de Rio da Várzea e Iraí, essa ‘falsa’ reforma agrária de Brizola estaria ligada com o surgimento do movimento-sem-terra no Brasil. Para eles, ao serem expulsos dos territórios indígenas loteados neste período, os colonos desterrados formariam as primeiras levas de agricultores que fundariam o movimento.