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Capítulo 4: Ações políticas kaingang

4.1. b ‘Casar bem’

Os Kaingang costumam dizer que só há festa quando as pessoas ‘casam bem’. Fui aos poucos apreendendo as implicâncias dessa expressão: ‘casa-se bem’ quando a exogamia de metades e a interdição determinada aos consangüíneos próximos são respeitadas; quando se casa com um Kaingang ou com alguém que, sendo de outra etnia, vive com/entre os índios kaingang há algum tempo; e quando tanto os parentes dos noivos quanto a liderança aprovam o matrimônio151.

A aprovação do casamento pela liderança é imprescindível, havendo inclusive ‘leis internas’ a isso relacionadas: aqueles que se casam e são da mesma metade clânica ficam presos na cadeia, ou (ao menos idealmente) devem deixar a terra indígena152. Homens que se casam com mulheres fóg podem ficar na TI, mas não o contrário: ‘se a mulher casar com um fóg, ele pode querer ter terra daqui para ele. Já a mulher não, ela se junta à sogra e ao sogro’ – explicou-me S. João Elias.

Veja-se no entanto que, além de um momento de atualização das convenções vigentes, o ‘casar bem’ implica também no agenciamento voltado à construção de alianças com afins distantes. Assim, a cerimônia de casamento, mais do que qualquer outro momento, traz à tona as ambivalências imbuídas na noção de afinidade entre esses indígenas: ao mesmo tempo em que se trava uma “batalha” entre partes antagônicas, celebra-se a afirmação de vínculos com novos aliados153. Dessa forma, tudo indica que essas alianças, realizadas tanto intra quanto inter aldeias,

151 Como toda regra apresenta a possibilidade de exceção, nota-se aqui as principais causas das fugas matrimoniais, que não são raras entre os Kaingang. Durante meu período de pesquisa de campo, constatei três casos: um em que os noivos fugiram para outra TI por serem da mesma metade; outro em que a mulher fugiu para a cidade por se casar com um fóg. Por último, soube de um casal que fugiu, sem, no entanto, estar transgredindo nenhuma dessas interdições. Ao conversar com seus parentes e seus pais, percebi ser esta também uma forma de efetivação do casamento que torna isenta a necessidade de realização de uma festa, na qual, como vimos, deve-se desprender muitos investimentos.

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Devo notar que ainda que o ‘casar bem’ seja algo que os indígenas afirmam como sendo uma prática da ‘tradição’, a recorrência de casais de ‘troncos-velhos’ que possuíam a mesma ‘marca’ em Rio da Várzea era notória. Essa ênfase na obediência às regras de exogamia, a meu ver, liga-se a processos mais amplos de normatização da sociedade, atualizados, entre outros, pelas ‘leis internas’. Tais temas serão abordados mais adiante.

153 Veja-se que a palavra agonística, que encontra sua origem no grego ágon- 'assembléia'; 'luta', 'combate'; 'debate', 'questão'; 'momento crítico' – remete também ao nascimento da hospitalidade. Segundo o filósofo Amós Silva, os festivais de jogos e lutas gregas, cuja principal sede era a cidade de Olímpia, reuniam pessoas de pontos longínquos do território grego, o que desencadeava na construção de laços de amizade e aliança entre aqueles que ali se embatiam (Silva, 2001: 4).

operam sobretudo como um mecanismo de ampliação das redes de parentela e de amenização de facções154, mostrando-se (do mesmo modo que em muitos outros contextos ameríndios) como um plano político fundamental para o processo – nunca acabado- de constituição do grupo local.

A este respeito, importante trazer as contribuições de Clastres (1963/ 2003), que enxerga nas alianças matrimoniais ameríndias (assim como na chefia principal, como veremos) formas de contrapor as forças centrífugas geradas pela multiplicidade de autoridades políticas presentes em cada grupo local. Veja-se que aqui também faz-se presente a idéia defendida pelo autor acerca da exogamia local, cuja “função” para o autor “não é negativa –assegurar a proibição do incesto- mas positiva – obrigar a contrair o casamento fora da comunidade de origem” (:82, grifos meus). Para Clastres, portanto, as alianças matrimoniais seriam antes de mais nada o “meio da aliança política” (idem).

No entanto, ao tentar fugir de princípios explicativos como a reciprocidade– conforme também apresentado no capítulo 1, a respeito da guerra ameríndia -, Clastres dirige críticas a Lévi-Strauss que podem representar um risco de retorno ao funcionalismo, a um pensamento prático “em termos de meios e fins” (cf. Lanna, 2005: 438). Como vimos, ao sobrepor a aliança política ao princípio da troca, Clastres coloca que o que estaria em primeiro plano seriam as motivações ou o desejo das “sociedades primitivas” pela fragmentação – estas consideradas como “sociedades-para-a guerra” (e, por isso, a necessidade de formação de aliados via aliança matrimonial). Dessa forma, Clastres acaba negando que a guerra seria também uma forma de troca – idéia por sua vez presente não apenas em Lévi-Strauss (1976 [1942]), mas também em Mauss (2003/1925), conforme sugerido anteriormente.

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De toda forma, tudo indica que os casamentos revelam princípios de ordem central para as ações políticas kaingang. Tratando-se também

154 A importância política inter e intra-tribal das alianças matrimoniais já foi amplamente tratada, direta ou indiretamente, em muitos contextos ameríndios. Cf. Menezes Bastos (1999 [1976]; 1990; 1995; 2001), para o Alto Xingu (mais especificamente para a área do uluri), onde vislumbra-se o sistema matrimonial como um dos principais sistemas de comunicação na região. Ainda no Alto Xingu, agora para os Kalapalo, cf. Guerreiro (2011), sobre o sistema de alianças entre chefes, que se realiza geralmente através da troca matrilateral, e coloca em cena tanto a afinidade entre chefes de aldeias diferentes, quanto relações internas de hierarquia.

de momentos de troca - não sendo esta apenas uma “meio” para aquela, portanto-, as alianças construídas entre grupos familiares distantes parecem atuar ora como forças integradoras diante à tendência à formação de facções, ora como um mecanismo de construção de vínculos com aliados supra-locais. Assim, sugiro que o ‘casar bem’ entre os Kaingang, como um processo de aproximação de afins distantes, é uma forma de incorporação daqueles que apresentam as maiores potencialidades tanto para a guerra, quanto para a troca. Algo que ressoa com a idéia de que “toda troca, a começar pela matrimonial, é uma forma de predação” – predação, no caso, consentida por ambas as partes aliadas (Viveiros de Castro, 2002c: 167; 175).

O segundo ponto estaria no fato de que as cerimônias dos casamentos aparecem como momentos ímpares em que se tornam explícitas as diversas chefias internas, seja pela atuação da liderança – que é múltipla, conforme veremos adiante-, seja pela atuação dos chefes residenciais que representam cada núcleo matrimonial. Sobre estes últimos, vimos que as disputas cerimoniais acontecem, em última instância, em nome do pa’í (ou da manh) que concentra em si as relações que formam cada parte. Mais do que qualquer outro momento, ali são colocados em jogo – ou em disputa- aspectos que conferem proeminência a determinados sujeitos: aqueles que possuem uma ampla rede de parentes e de aliados, que podem gastar e distribuir suas riquezas, que podem enfim, ‘fazer sair’ uma festa. Como veremos, essas características, somadas a outras a serem abordadas mais adiante, são fundamentais para a constituição de um sistema de diferenciações entre os Kaingang. Diferenciações essas que esboçam as posições políticas locais – representadas por grandes pa’í, como o cacique e demais figuras que ocupam posições altas na liderança, e por outros sujeitos proeminentes, como alguns ‘troncos-velhos’ dali.