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Capítulo 1: Das histórias kaingang e seus personagens

1.2. c Guerra e vingança produtivas

A vingança kaingang conforme descrita por Mabilde (op. cit.) estaria ligada aos antepassados, a um ódio que liga o presente ao passado e se perpetua através das gerações, uma vez que é transmitido pela memória e pela oralidade:

“Não possuindo escrita alguma, têm uma memória excelente, de que se valem pra passar, de pai para filho, suas reminiscências, a tradição oral, o ódio e o sentimento de vingança que nutrem contra seus inimigos”. (:21)

Pensar os atos vingativos da guerra ameríndia através de sua ligação com o passado, como vimos, foi um posicionamento adotado por Florestan Fernandes (1948, 1952), sendo justamente a este ponto destinadas algumas das principais revisões críticas de sua obra. Considera-se que sua ênfase na relação dos vivos com a ancestralidade é demasiada, o passado sendo colocado como a única clave da lógica da vingança Tupinambá.

Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro (1985) foram os primeiros autores a elaborar outra forma de abordagem para essa temporalidade. Sugerem que o ato vingativo não seria movido pelo passado, mas sim pelo futuro; para eles, o que estaria em primeiro plano seria a incessante relação de inimizade, o movimento contínuo de novos atos de vingança que, enfatizam, existem para se perpetuar. Em suma, propõem que a vingança seria, antes de mais nada, produtora de devir, determinante para a existência futura do grupo social, o motor da história tupinambá.

A vingança passa assim ao patamar da infinitude, pois, através da produção de inimigos mútuos por mortes que são vinganças de mortes passadas, desenvolve-se uma relação permanente de hostilidade entre os grupos envolvidos22. Esse tipo de abordagem passou a ser a central para a compreensão do estatuto das sociedades tupinambá, estendendo-se também a grupos indígenas contemporâneos. Aqui, a imanência do inimigo, a existência do “outro”, são colocadas como condicionantes da própria perpetuação e da formulação identitária.

Sugiro, desta forma, estender esse raciocínio para o contexto kaingang, salientando o lado constitutivo das guerras registradas no passado. Antes de inexplicáveis ou irracionais – conforme os escritos dos cronistas-, estas últimas podem ser melhor compreendidas se forem vistas como o meio pelo qual os diferentes grupos (ou hordas, naçoens, tribu, corporaçoens...) eram constituídos, em um movimento permanente de construção de alteridades. Tudo indica que a constituição dos Camés, Votorões, Dorins e Xocrens enquanto grupos políticos

22 É possível perceber, portanto, que na lógica da vingança o passado é constantemente projetado no futuro, aquele não devendo por isso ser descartado. Não seriam o futuro, o devir, compostos por um constante fluxo de passados, em relação a determinados presentes? Agradeço a meu orientador, Rafael Menezes Bastos, por esta alerta.

locais era indissociável de suas mútuas oposições, sendo estas fomentadas pelas guerras constantes que mantinham entre si. Por elas, os inimigos e os aliados seriam- e continuam a ser- continuamente definidos23.

Outrossim, a formação de unidades sociais, movimentada pelas guerras kaingang, mostrava-se indissociável da constituição de novas chefias. Veja-se, por exemplo, a narração da guerra entre o cacique principal Braga contra o cacique Doble, inicialmente um de seus subordinados:

“A festa foi perturbada por uma peleja sanguinolenta em que o novo cacique Doble perdeu quase metade de sua gente e perturbou a paz que, até aquele momento, existia entre aquelas tribos que ficaram, desde aquele momento, divididas em dois cacicatos: um, do cacique Braga e o outro, do cacique Doble que se erigiu em cacique principal dos iludidos derrotados. Após a perseguição, ao regressarem ao alojamento geral, o cacique Braga declarou uma guerra de vingança e de extermínio ao novo cacique Doble e a seus subordinados.” (Mabilde, 1982:162)

O contexto de guerras kaingang, portanto, não se distancia dos princípios de fragmentação, autarquia e diferença de que fala Clastres, os quais podem ser resumidos na grande lógica da centrifugacidade que assume a guerra nas sociedades ameríndias. A despeito, sigo com o argumento de Sztutman (2005) de que a guerra, ao mesmo tempo em que incita a formação de novas unidades sociais, contém em si o ideal centrípeto de unificação. Se entre os Tupinambá24 ela possibilitava a formação de grandes guerreiros morubixabas e de principais, entre os Kaingang avista-se também no contexto guerreiro e nos processos de fragmentação social a formação de novas diferenciações políticas, consumadas principalmente na construção de grandes caciques [pa’í mág].

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A permanência da fragmentação social kaingang, por sua vez, dá continuidade a uma questão já antiga colocada pelos americanistas acerca da guerra. Lévi-Strauss, por exemplo, coloca que “dificilmente se explicariam a fragmentação dos povos primitivos da America do Sul, sua dispersão em uma verdadeira poeira de unidades sociais pertencentes quase sempre às mesmas famílias lingüísticas, e entretanto isoladas nas extremidades mais opostas da floresta ou do planalto brasileiro, se não se admitisse que, na história pré-colombiana da América Tropical, as forças de dispersão prevaleceram sobre as formas de união e de coesão” (1976 [1942]: 326). Essas lógica, por sua vez, parece se estender à atualidade, o que pode ser atestado pelo caráter faccional da política kaingang contemporânea (cf. Fernandes, 2006).

Para dar prosseguimento, esclareço que não é meu intuito realizar um mergulho profundo no contexto de guerras kaingang nos séculos passados, uma vez que para isso seria necessária uma reunião de dados muito maior do que aqui se verifica. Contudo, penso que um retorno aos registros a partir de um posicionamento que confere uma positividade constitutiva às guerras narradas por cronistas pode ser um caminho que auxilie a compreensão de processos atuais de relações inter-grupais, constituições sociais, formação de chefias e demais diferenciações políticas. Tais temas serão desenvolvidos subseqüentemente, tendo como foco os Kaingang da TI Rio da Várzea.