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a Co-residência, comensalidade, solidariedade

Capítulo 3: Políticas domésticas: do parentesco kaingang

3.5. a Co-residência, comensalidade, solidariedade

‘Quando a gente cresce junto, é parente’ (Angélica Pinto)

Durante minha pesquisa de campo realizei uma atividade que pode iluminar em certa medida as questões neste momento abordadas. Tendo como objetivo levantar a genealogia de todos os moradores da área indígena, ao mesmo tempo sinalizando o posicionamento de suas residências, visitei todas as casas ali encontradas, mesmo aquelas situadas nos setores habitacionais mais distantes. Essa atividade possibilitou-me perceber alguns aspectos significativos para o processo de parentesco kaingang, que eram reificados em cada visita.

Um deles, como já se faz perceber, é a co-residência ou a proximidade residencial. Esse princípio já foi comentado no capitulo 2, quando mencionei a formação dos ‘bairros’ como algo que sugere a

120 Deve-se também acrescentar que os afins reais são também aproximados da relação kanhkó, e por isso, “contaminados pela consangüinidade”, representando - para utilizar novamente as expressões de Viveiros de Castro [2002a]- versões “menos energizadas” de afinidade.

proximidade das casas de ‘parentes’ em torno de um casal de ‘troncos- velhos’121. De fato, a proximidade espacial entre as residências é altamente visível quando se tratam de consangüíneos; é bastante comum que um novo casal more próximo, senão na mesma casa dos pais do noivo ou da noiva. A esse respeito, devo notar que se não percebi alguma predominância entre a regra viri ou uxorilocal para a regra de residência pós-matrimonial, pude no entanto perceber que, no processo de formação de ‘bairros’ ou ‘linhas’, há uma predominância de concentração de casas em torno da casa materna da esposa, podendo aqui se perceber uma tendência uxorilocal. Tal é o caso, por exemplo, das irmãs Angélica, Adriana e Silvana, que moram com seus respectivos grupos familiares, em residências próximas à casa materna, formando o ‘bairro dos Pinto’.

Somando-se ao princípio de ‘morar junto’, ou ‘morar perto’, percebe-se também que a comensalidade permeia e é fundamental para a construção de relações de consangüinidade. ‘A gente não mora junto mas come só em uma panela’- disse-me um indígena ‘tronco velho’, a respeito de seu filho que mora com a atual esposa (em uma casa vizinha à sua, vale notar). Afirmações desse tipo eram constantes, o ‘comer e beber junto’ mostrando-se entre os Kaingang como algo indissociável do relacionar-se entre ‘parentes’. Haja vista eu tenha descrito a importância da comida, nas relações cotidianas ou nos momentos festivos no capítulo 2, não irei aqui me delongar sobre o tema, bastando apenas ressaltar que ‘comer na panela de alguém’ é percebido como algo também fundamental para estabelecer proximidade entre pessoas distantes (como eu). Em suma, percebo que a comensalidade representa uma das formas de “reafirmação contínua dos vínculos de consubstancialidade” (Coelho de Souza, 2004: 45), esta sendo indissociável do processo de consangüinização.

Com efeito, a associação entre parentesco e humanização expressa-se também nas dinâmicas comensais: não apenas comer junto, mas comer do ‘jeito do índio’ (cozinhar ‘folhas-do-mato’, peixe ensopado, canjica, cozinhar na banha e não no azeite...; cf. capítulo 2) mostra-se entre os Kaingang como um elemento capital para as relações entre “gente de verdade”. Lembro ainda do dia que cozinhei um macarrão à yaksoba para as minhas companheiras indígenas, e elas nem

121 Veja-se, no entanto, que essa não é uma regra estrita: existem, de fato, ‘parentes’ que não moram perto uns dos outros em Rio da Várzea. Mecanismos que veiculam a proximidade entre parentes que moram longe, no entanto, podem ser percebidos através de visitas constantes, por exemplo. Note-se que tais princípios foram também notados por Hoffmann (2011) para o contexto xokleng a respeito da relação konhká.

tocaram na comida, vendo aqueles legumes mergulhados no molho escuro e salgado... Tentei de outra forma. Desta vez, macarrão com molho de tomate. Quando elas viram eu colocar uma pitada de açúcar- para tirar a acidez- além de não comerem nada, espalharam a fama de que ‘a Paola não sabe cozinhar, faz comida doce’ – o que parecia aumentar ainda mais minha estranheza inicial. D. Laurinda, por outro lado, fazia questão de me chamar a sua casa toda vez que preparava o pisé ou cozinhava fuvá: enchia um prato com farinha e com a erva cozida na banha e dividia-o comigo. Isso dava-lhe muita satisfação; era seu jeito de me aproximar, de tornar-me mais humana, enfim122.

Filhos, netos e sobrinhos, assim como ‘compadres’ alimentam-se cotidianamente na casa de D. Laurinda. Além disso, todas as tardes seus ‘parentes’ visitavam-na, reunindo-se para tomar mate, comer pipoca, conversar na casa de fogo [in sĩ]. D. Laurinda, como veremos, é uma das pessoas que mais “contém parentes” em Rio da Várzea, o que é verificado genealogicamente, mas também evidenciado por práticas de sociabilidade como essas, que também veiculam processos de construção de consangüinidade com pessoas consideradas inicialmente como afins ou parentes distantes.

Tais aspectos revelam também que aos princípios de co- residência e comensalidade soma-se uma forma mais ampla do relacionar-se entre ‘parentes’: as relações de solidariedade. ‘Os parentes existem para se ajudar’, disse-me Angélica. De fato, se a relação kanhkó supõe comensalidade e proximidade espacial, estas atualizam-se justamente por meio de reciprocidades que se desenrolam em níveis diversos. Netas comem na panela da avó, mas ajudam na limpeza da casa e na lavação de roupas; sobrinhos e netos ajudam em serviços como cortar e buscar lenha, apanhar milho e feijão; filhas ajudam a ‘campear’ taquara, kumy e fuvá; filhos que trabalham fora sempre provém alimentos para a despensa, como mate, carne, refrigerante e salame. ‘Primos-irmãos’ realizam visitas constantes entre si e estão sempre próximos em momentos delicados, como em casos de enfermidade e morte, ou para colaborarem com os preparativos de

122 Vejo que tudo isso ressoa com o que diz Fausto (2002:16) a respeito da comensalidade enquanto uma das formas processuais de familiarização na Amazônia: “Há, enfim, uma concepção difundida de que comer como e com alguém inicia ou completa um processo de transformação que conduz à identificação com este alguém”. Nesse sentido a comensalidade ligar-se-ia também ao processo de humanização: Fausto enfatiza que para adquirir capacidades humanas no contexto amazônico é preciso caçar, sendo que a satisfação compartilhada do desejo pela carne da caça acaba criando laços de parentesco (referindo-se a Gow, 2001), uma vez que “a partilha do alimento e do código culinário fabrica (...) pessoas da mesma espécie” (ibid.: 15).

algum momento festivo, como os casamentos. As avós ajudam no cuidado com os netos (quando não ‘ganham’ o neto para si, como será descrito), e tias maternas ajudam com os sobrinhos, que acabam ‘sendo criados como irmãos’. E, de maneira geral, todo dinheiro recebido- seja por aposentadoria, ou por serviços prestados a terceiros (cf. capítulo 2)-, é distribuído entre os ‘parentes’ próximos, na forma de comida e roupas, principalmente123.

Dessa forma, pode-se claramente perceber que ter e estar próximo de ‘parentes’ é algo fundamental para poder ‘viver bem’ entre os kaingang. É algo que facilita a realização de tarefas cotidianas, assegura a efetuação de ações recíprocas de solidariedade. Assim procedendo, mostra-se igualmente como um fator decisivo para a permanência ou a mudança de grupos familiares para outras áreas indígenas. Pois é também notório que, em sua versão intensificada, a solidariedade acaba assumindo uma potencialidade política expressa principalmente em direitos e benefícios diferenciados nas áreas indígenas – algo circunscrito aos ‘parentes da liderança’, como será descrito no capítulo posterior.