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Capítulo 3: Políticas domésticas: do parentesco kaingang

3.6. b Relações di-abólicas

Como colocado, as relações de afinidade contém também em si potencialidades perigosas, disputas, ambivalências. Nelas, o respeito pode a qualquer momento se reverter em hostilidade, através de conflitos que envolvam tanto fofocas quanto agressões físicas e xingamentos. Assim, mesmo que as disputas mais visíveis sejam entre jamré distantes, a aproximação de um jamré a um núcleo residencial pode também acarretar aspectos conflituosos: a maior parte das brigas são entre marido e esposa, sendo também não muito raras as agressões entre cunhados ou de genros para com seu sogro e sogra145.

Grande parte dos conflitos são associados às relações conjugais e extra-conjugais, que envolvem ciúme, traição e fofoca146. Como eu conversava mais com as mulheres, sempre ouvia suas versões, a respeito de suas brigas com seus maridos: ‘meu marido me bateu porque disseram que eu estava no mato com .... mas é mentira, aqui todo mundo fala de todo mundo. Na verdade ele é que me trai’. Era comum as mulheres queixarem-se dos posicionamentos adotados pelos membros da liderança a respeito desses tipos de conflito, dizendo que eles são complacentes com a violência física dos homens que foram traídos por suas esposas, mesmo quando não era certo se de fato a traição havia ocorrido. Por outro lado, soube de três casos em que o casal havia sido preso, por terem, marido e esposa, se agredido mutuamente.

O ciúme mostrava-se também como a principal causa de conflitos entre as mulheres. O grande foco das fofocas, a este respeito, eram as mén tũ [sem marido; mulheres solteiras]. Sobre elas reinava-se uma tensão constante, algo ligado à atração que poderiam causar nos homens em geral, justamente por não serem casadas. Uma dessas

145 Nota-se que a agressividade é em grande medida associada ao consumo excessivo do álcool. Não irei aqui me delongar em tão vasto e complexo tema. Sugiro apenas que o consumo de álcool entre os Kaingang de Rio da Várzea, ainda que associado às brigas entre parentes, apresenta-se como uma prática de sociabilidade, realizada de forma mais intensiva em momentos extraordinários, como nos finais de semana e em dias de festa. O consumo moderado de bebidas não é censurado pela maioria dos indígenas, excetuando-se, no entanto, os adeptos do pentecostalismo, que pregam a total abstinência. Sobre a alcoolização entre os Kaingang da TI Xapecó, ver Guiggi Jr (2010). E para uma reflexão de bastante fôlego a respeito do consumo de álcool por povos indígenas presente na literatura antropológica, ver Caux (2011). Note-se que neste trabalho a autora busca também extrapolar as questões concernentes ao “problema do alcoolismo”, salientando motivações e sentidos múltiplos no uso de destilados pelos indígenas.

146 Para uma descrição dos conflitos e das agressões relacionados às traições e ao ciúmes entre os Kaingang paulistas, conferir Melatti (1976: 39-41).

mulheres, de sua parte, costumava comentar comigo que ‘os kaingang são machistas. Principalmente a liderança... por isso não gostam de mulher solteira’. Certa vez, esta mesma mulher relatou-me que já havia sido casada duas vezes, mas preferiu deixar seus maridos: um era muito agressivo e o outro não fazia nada para lhe ajudar, só lhe dava trabalho. Bastante articulada com movimentos de mulheres indígenas regionais, essa mulher sempre apresentava sua indignação a respeito da invisibilidade e da subalternidade relegada às questões femininas entre os Kaingang. Além disso, parecia não se incomodar com o fato de ser mén tũ.

De certa forma, por vezes eu sentia alguns rebatimentos dos estigmas relegados às mén WNJ : ainda que andasse sempre com roupas largas para não chamar a atenção, evitasse ficar apenas na companhia de homens, o fato de eu ser solteira acaba ativando comentários e olhares oblíquos das mulheres casadas. Assim, aos poucos ia aprendendo como me comportar, buscando evitar situações embaraçosas: andava sempre acompanhada de crianças, reforçava a polidez e o distanciamento nas relações com homens adultos e casados.

No entanto, sempre fui muito respeitada, por todos, em Rio da Várzea. Fui uma única vez ‘incomodada’ (como eles mesmo narraram depois), quando, no dia posterior a uma festa de casamento, um jovem de outra TI pulou o portão do postinho e bateu à minha porta, tentando me abordar. Mandei-o embora e nada aconteceu, mas resolvi no dia seguinte relatar o acontecido para o ‘capitão’. No mesmo dia, o rapaz foi ‘fechado’ na cadeia. A notícia logo se espalhou por toda a área, e todos pareciam demonstrar muita satisfação com a forma como eu havia lidado com a situação. ‘Foi bom que você contou pro capitão. Aí todo mundo fica sabendo que você não é metida, tem respeito’- disse-me uma mulher kaingang. Realmente, depois desse dia, as coisas começaram a mudar; muitas mulheres iam até o postinho para conversar comigo, convidavam-me para ir a suas casas e para jogar futebol. Deixei de sentir o incômodo que, como mén tũ, sentia inicialmente. Fui entender a importância do acontecido algum tempo depois, quando uma amiga kaingang, de outra área indígena, me explicou: ‘Paola, eu sou mén tNJ, mas tenho my’a. Por isso todo mundo me respeita’.

Como já colocado, ‘my’a é um termo traduzido pelos kaingang como ‘vergonha’ e, em certos casos, como ‘respeito’147. Segundo

147 Veja-se que os Kaingang glosam que a expressão tu há é também traduzida por ‘respeitar’. No entanto, carrega em seu campo semântico as idéias de ‘querer bem’, ‘gostar’, aplicável, portanto, às relações entre pessoas próximas. Como vimos, no caso das relações entre pessoas

alguns tradutores indígenas, o uso desta expressão remete à contenção de atitudes e à discrição: mulheres que ‘se metem’ no meio dos homens, bebem com eles, andam à noite pela área indígena, são desprovidas de my’a. Homens que bebem em demasia, não respeitam seus jamré e kakré, abordam as mulheres, causam ‘confusão’ no espaço público, brigam, também o são. Diferente da conotação negativa que o termo ‘vergonha’ assume em português, portanto, esta palavra assume a forma de uma prerrogativa para a boa conduta, fundamental para a capacidade de se relacionar/ agir sociavelmente (cf. Coelho de Souza, 2004). Nesse sentido, com my’a, as mulheres não causam ciúmes, não traem, limitando-se a relacionar-se com seu marido e com os homens que são seus parentes próximos.

Tomando o que vem sendo descrito sobre o processo de parentesco kaingang, o que podemos depreender de tudo isso?

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Se os Kaingang valorizam as pessoas que têm my’a, e de certa forma discriminam as mulheres mé tũ, estamos diante de questões levantadas no começo deste capítulo. Vimos que a mulher que recorre ao artifício da melancia assim o faria por querer transformar sua condição de solteira. De tal modo que deixa de ser mén tũ, mas passa a não ter mais ‘parentes’- sendo este o preço pago por ser tão desejada quanto esse fruto148. Ainda que não seja minada da possibilidade de ter filhos e netos, este ato teria como conseqüência uma disseminação irrestrita de afinidade, quebrando o interdito sexual que marcava inicialmente a relação com aqueles que constituíam seu corpo de parentes. O que, agora, nos é possível saber no que implica: por um lado, na ruptura dos laços de solidariedade e comensalidade em que estava inserida e, por outro, na perda de sua ‘marca’, que seria sua chave de entrada para as relações kanhkó e jamré.

Devo ainda notar que estamos aqui lidando com outro fator de perigo para os Kaingang. Pelo que vimos, a mulher desejada pode arranjar um marido que era anteriormente seu consangüíneo, mas o fato distantes, a prerrogativa do ‘respeito’ mostra-se ligada à boa conduta e às convenções do ‘sistema’.

148 Para uma discussão sobre as analogias entre a sexualidade e a comida, pautadas na concepção de desejo, conferir Gow (1989). Neste texto o autor explicita o papel dos desejos orais e sexuais em uma economia de subsistência no baixo rio Urubamba (região habitada predominantemente pelos Piro), ressaltando também a centralidade de demandas e dos diversos cuidados entre co-residentes assim direcionados para a geração do parentesco.

de deixar de ter parentes torna-a livre da condição de incesto. Por isso, mesmo com todos os malefícios de uma atitude que leva à perda dos parentes, esta continua sendo uma possibilidade concebível às mén tũ. O incesto, em contrapartida, seria o ápice do descontrole do desejo, do envenenamento das relações kanhkó: aqueles que o cometem são prontamente acusados dos piores atributos de animalidade ou de monstruosidade. Dizem os Kaingang que essas pessoas ‘viram bicho’, ‘soltam fogo pelos calcanhares’, ‘ficam com os pés torcidos para trás’, ‘viram lobisomem’.

Mesmo sem cometer incesto, a mulher mén WNJ posiciona-se em um local escorregadio, onde o desejo marca os limites de sua possibilidade à humanidade plena. Se busca ser tão desejada quanto a melancia para poder se casar, no entanto, perde seus parentes. Em um caso, o desejo incontrolado associa-se à transgressão das etiquetas de ‘respeito’ e my’a, e no outro, à negação do parentesco. O perigo iminente, portanto, seria nada menos quanto à negação de todo um sistema de significações que torna possível a vida social e sociável entre os Kaingang. Ou quanto ao risco daquilo que mais evitam: a desumanização.