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d Caça, pesca, coleta: das relações com o mato

Capítulo 2: Penhkár

2.2. d Caça, pesca, coleta: das relações com o mato

A caça, para os kaingang de Rio da Várzea, apresenta-se como uma atividade extraordinária, momento em que os homens abstêm-se de suas atividades cotidianas e passam vários dias mato adentro: ‘hoje a gente caça por diversão’, disse-me certa vez S. João Elias67. Dentre os principais animais de caça mencionados tem-se: porcos-do-mato, queixadas, tatus, quatis, cotias, capivaras, e em menor escala, pacas e veados. Utilizam-se geralmente cachorros e espingardas para a captura dos animais, com exceção dos tatus, que são pegos diretamente em suas tocas.

À saída para a caça, os homens geralmente usam ‘remédios-do- mato’ – como folhas de guiné [ ]- para a proteção contra picadas de cobra e para o bom agouro em suas caçadas. O ‘tigre’ ([maneira como se referem aos felinos selvagens encontrados ali, como as jaguatiricas e os gatos-do-mato; [mig]) representa grande fonte de medo, sendo também utilizados ‘remédios’ para afugentá-los, assim como ‘para ouvir bem os avisos do mato’. Segundo o cacique Antônio e o kujã Jorge Garcia, aqueles que detém o ‘conhecimento do mato’ podem, em suas incursões, conversar com os espíritos das árvores, dos rios, dos pássaros e de outros animais.

Por ser uma prática não muito freqüente atualmente, a carne de caça é considerada uma iguaria, um prato excepcional, extremamente apreciado por todos os indígenas que conversei. A maneira preferida de consumo são os assados, à maneira dos churrascos. Note-se que os churrascos, de carne de porco e de vaca, são também muito apreciados pelos Kaingang. Nas festas grandes, como os casamentos e o dia do índio, são o prato obrigatório.

A pesca é uma atividade feita com uma freqüência notoriamente maior que a caça, sendo extensiva às mulheres e às crianças. O principal rio utilizado é o rio da Várzea, mas também o são seus afluentes, dentre os quais se destaca o rio Demétrio, localizado a 15km da Sede. Normalmente a pesca é realizada com linha e anzol, prática que se intensifica com a diminuição do volume das águas fluviais. Além de

67 Advirto que por trabalhar apenas com discursos econômicos nativos, e não com quantificações, não posso avaliar precisamente o valor econômico da caça para esses indígenas.

pontos específicos nas margens dos rios, utiliza-se o caíco para a pescaria. A maioria dos indígenas apresenta grande habilidade no manejo do caíco, e todos sabem nadar, muitos com destreza. Os Kaingang também utilizam, em menor escala, armadilhas feitas com filetes de taquara trançados, às quais dão o nome de pãri. Além dessa técnica, utilizam o envenenamento dos peixes através de um cipó conhecido como kojé68 . Para a liberação do veneno, o cipó é batido em uma pedra, e em seguida colocado na água; os peixes envenenados são coletados com o pãri, pouco abaixo de onde foi inserido o cipó.

Traíras, jundiás, joanas, lambaris, pintados, curimbas e cascudos são os principais peixes pescados na região. A pesca dos cascudos é feita manualmente, sem o uso de anzóis; por fazerem tocas nas margens dos rios, eles são pegos diretamente nesses buracos. Nos períodos de baixa do rio, esse peixe é o mais abundantemente consumido. A maneira preferida e ‘típica’ de preparo dos peixes é o cozido; feito com bastante água, prepara-se assim o caldo de peixe, amplamente apreciado. Faz-se também, com menor freqüência, peixes assados diretamente no fogo. Os peixes quase nunca são fritos, este sendo considerado o ‘jeito do branco’ preparar o peixe.

A coleta de recursos naturais no mato apresenta-se também como uma atividade de muita relevância. Existe uma ampla diversidade de alimentos silvestres – aos quais nomeiam de ‘comida-do-mato’, assim como uma variedade ainda maior de plantas medicinais, conhecidas como ‘remédios-do-mato’. Dentre as ‘comidas-do-mato’ mais consumidas encontra-se o fuvá, um arbusto amplamente encontrado no mato e entre as plantações de banana, milho e feijão, de alto valor nutritivo. Os Kaingang costumam dizer que o fuvá substitui a carne nas refeições, e de fato, ele é consumido apenas com farinha de milho, ou emỹ [pão ou bolo na cinza]. O kumy, folha da mandioca brava, é também muito apreciado. Seu preparo é bastante demorado, visto que é necessário retirar o veneno presente nas folhas; para isso, as mulheres socam intensamente as folhas no pilão e, posteriormente, deixam-nas por muitas horas fervendo no fogo. Além dessas folhas, são consumidos o pyr-féj [pyr = urtigão; féj = folha], o pehó-féj [folha de abobora], o gry (folha de um espécie de samambaia, da qual consome-se apenas as pontas), e alguns palmitos.

Coleta-se também uma ampla variedade de frutos silvestres: mexericas [ka kané; termo também utilizado como ‘fruta’; ka = árvore;

68 Que parece ser o mesmo, senão semelhante, ao timbó, cipó muito freqüentemente utilizado em grupos indígenas amazônicos.

kané = fruto]; amoras (em variações branca, rosa e roxa); bananas imbé ou de mico [ko]; iriticuns; guavirovas [penva]; pitangas [jymi]; goiaba; guabiju [kane sá = olho preto]69. Dentre os frutos mais apreciados está também a melancia [marsĩa]:encontrada geralmente em plantações, e não no mato, ela exerce fascínio entre os Kaingang, recebendo mesmo alguns interditos quanto à maneira como é consumida (voltarei a este ponto posteriormente).

Os Kaingang coletam também pequenas larvas que crescem nos brotos da taquara, às quais denominam ‘koró’. Estes são servidos fritos: ‘parecem torresmo’, dizem os indígenas. A gordura desta larva é aproveitada para o preparo da comida; atualmente, no entanto, utiliza-se a banha de porco para esse fim. É notória a preferência pela comida preparada com banha, à qual denominam de vyjãn tãgy [vyjãn = comida; tãgy = bastante gorda]- a ‘comida forte’, em contraposição à comida preparada com ‘azeite’ (leia-se óleo de cozinha vegetal), à qual eles denominam de vyjãn tag si [tãg= gordo; si= pouco]70.

São também exímios coletores de mel [myg], sendo os ‘meleiros’ os homens especialistas nessa coleta. Diz-se comumente que, em relação ao ‘tempo dos antigos’, hoje o mel é encontrado com escassez; seu apreço, nesse sentido, é ainda mais expressivo. O mel, assim como a carne de caça, é consumido como uma iguaria: uma relíquia escassa no uri [tempo de hoje], tendo sido abundante no vysy [tempo passado, ‘dos antigos’].