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a Patrilinearidade versus críticas aos modelos masculinizantes

Capítulo 3: Políticas domésticas: do parentesco kaingang

3.4. a Patrilinearidade versus críticas aos modelos masculinizantes

O pertencimento às ‘marcas’, explicaram-me, é de herança paterna: ‘os kaingang são machistas, por isso pegam só a parte do pai’, disse-me um professor kaingang, revelando uma concepção nativa – parcial e geralmente difundida entre os homens- que converge com as elaborações antropológicas que classificaram e analisaram o sistema de parentesco kaingang através da patrilinearidade (Veiga, 1994, 2000; Fernandes, 1998, 2003). Algo que, a meu ver, merece algumas considerações.

Percebe-se que, de forma geral, os autores que abordaram a sociedade kaingang enquanto patrilinear acabaram privilegiando o plano masculino das relações- fato que se percebe claramente no que se refere à dimensão política (cf. Rocha, 2010, 2011 no prelo), mas também nas teorias elaboradas sobre o processo de constituição das pessoas (cf. Rosa PC, 2011). São freqüentes as afirmações que revelam tal posicionamento: “a criança devia a existência exclusivamente ao pai. A mãe era somente a depositária e guarda da prole (...) a condição do pai passava aos filhos e não a da mãe” (Teschauer 1927: 44 apud Fernandes, 1998: 27); “Assim sendo, as mulheres Kaingang partilham a visão de que o filho é feito pelo homem. A ligação natural mãe-filho não faz parte da ideologia Kaingang (...) A mãe é, em última instância, a mulher do pai”(Veiga, 2000:100).

Minha experiência entre os Kaingang- ainda que pequena- revelou algo bastante distinto dessas proposições. Conversando e convivendo principalmente com mulheres, percebia que se de fato o pertencimento às metades clânicas era atribuído à herança paterna, esta não aparecia como algo tão determinante em outros domínios, como na concepção e criação dos filhos e na constituição dos grupos domésticos. Em contrapartida, as relações entre as mulheres revelavam-se como um elemento prioritariamente aglutinador: sendo as mães, e também as avós, as principais responsáveis pela educação e pelo cuidado dos filhos, estes acabam estabelecendo com elas relações de proximidade

visivelmente mais intensas do que com os pais, algo perdurável à vida adulta.

Com relação à concepção dos filhos, a centralidade feminina aparecia também de forma bastante clara. Os relatos sobre os partos, os resguardos, os remédios e demais preparos destinados às parturientes (cf. capítulo 2) revelaram não só a prioridade do agenciamento feminino, mas também um vasto conhecimento difundido entre as mulheres a este respeito. Além disso, não era raro as mulheres dizerem que os filhos eram mais seus do que de seus maridos, por serem elas que fazem o bebê ‘crescer na barriga’106.

Quanto à herança de características pessoais, constatava geralmente uma ausência de prioridades: dizia-se que a criança ‘pegou’ os olhos do pai, a altura da mãe, a agilidade do tio, a braveza do avô... Características essas que, conforme já colocado no capítulo 2, são também associadas à nominação, realizada geralmente por avós e avôs (havendo, nos casos que pude constatar, uma predominância da avó como figura nominadora). Nota-se também que assim como a nominação, a transmissão do conhecimento e dos ensinamentos ‘dos antigos’ é realizada tanto por avós quanto por avôs e não apenas por estes últimos como comumente se afirma.

Pude também perceber que o fato de serem as avós que muitas vezes cuidam dos filhos de suas filhas107- havendo casos em que elas ‘ganham’ seus netos para si (uma relação muito comum de adoção, conforme será visto adiante)- faz com que os laços de reciprocidade entre as mulheres consangüíneas sejam intensificados, e visivelmente preponderantes na constituição de um segmento residencial, se comparadas às relações entre os homens que também o constituem. Relações estas que são também reforçadas pelo fato de serem as filhas e as netas – e em certos casos, as noras-, que se incumbem de cuidar das ‘velhas’ (avó e bisavó) quando estas, por falta de saúde ou debilidade física, o necessitam (o que inclui a preparação de alimentos, lavação de roupas, limpeza da casa e demais afazeres domésticos). Práticas femininas, portanto, que fortalecem os laços entre mulheres de diferentes gerações de um grupo doméstico, revelando uma importância normativa prioritária no processo de parentesco, face às relações

106 Para uma descrição sobre a concepção e a predominância feminina no “fazer crescer” os filhos entre os Kaingang, conferir Rosa PC(2011).

107 Principalmente, mas não só; há casos, menos freqüentes, em que as avós cuidam também dos filhos de seus filhos.

patrilineares que se equacionam, sobretudo, ao domínio da regra (no caso, ao sistema de metades).

Dessa forma, vale aqui resgatar a análise sobre a importância das relações de consangüinidade e solidariedade entre mulheres nos grupos residenciais kaingang, realizada por Fernandes et al (por 1999), cujas inflexões encontram muitas ressonâncias com as questões que aqui pretendo desenvolver. Em resumo, ao atribuírem ao plano feminino o fator estruturante daquilo que consideram como as “Casas kaingang”108, os autores propõem um modelo em que a participação política das mulheres é compreendida como a extensão de seu poder na constituição das mesmas, algo que acabaria vinculando o “conceito de comunidade” à mulher. Não irei aqui utilizar o conceito analítico de Casa, bastando- me a idéia de grupo residencial para as descrições onde pretendo caracterizar a devida importância do agenciamento feminino no processo de parentesco, que se mostra diretamente ligado a aspectos fundamentais da vida sócio-política do grupo.

Diante das questões apresentadas, devo também salientar que vem se tornando cada vez mais clara a necessidade de se voltar a atenção para as experiências e os posicionamentos das mulheres nos grupos ameríndios em geral, onde até pouco tempo a perspectiva feminina apareceu como mero resíduo (Lasmar, 1999)109. Lembro, por exemplo, que tendo as pesquisas do HBCP ressaltado o papel da polaridade feminino/masculino como um operador simbólico central na vida social dos grupos indígenas estudados (com destaque a pesquisa de daMatta, 1976), as mulheres foram já ali relegadas à “periferia”, e associadas ao plano biológico das relações – em contraste com o plano masculino, associado ao “centro” e ao plano social e político. Tais

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Algo que fazem inspirados nos trabalho de Turner (1979) e Lea (1993), tomando a concepção de Casa conforme no trabalho de Turner, onde esta é considerada “a unidade segmentária efetiva na sociedade Kayapó”(s.p.). Nota-se que os autores apenas tangenciam o uso que Lea faz do modelo lévi-strausseano de Casa sem, no entanto, desenvolvê-lo ou aplicá- lo para o contexto kaingang.

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As principais causas dessa invisibilidade nas últimas décadas (principalmente ’70 e ’80, quando os estudos de gênero já se consolidavam na disciplina) seriam, segundo Lasmar (idem: 147-148): a hegemonia da perspectiva masculina nas ciências sociais, a relativa invisibilidade dos índios amazônicos em relação a outros contextos etnológicos e fatores associados à própria estrutura social indígena. Dentre estes últimos, estariam disposições como a segregação sexual do espaço e das atividades, a valorização cultural da caça e da guerra, e o predomínio da agência masculina no contato com o “mundo exterior”, em contraposição à associação das mulheres à domesticidade. Deparei-me de fato com tais segregações entre os Kaingang; diante desses desafios, no entanto, busquei demonstrar que as práticas efetuadas no domínio doméstico, ligadas ao processo de parentesco, revelavam-se centrais para a vida sócio-política do grupo.

associações, por fim, acabariam conferindo um papel inferior ao domínio feminino do “doméstico”, em relação ao “público”, ao se relegar uma importância política apenas a este último, associado ao universo masculino do centro da aldeia (Lea, 1999).

A crítica de Lea (1993,1999) vai, portanto, nessa direção. Em seu estudo sobre a sociedade Mẽbengôkre, demonstra que os nomes e os nekretx – as maiores riquezas locais- são propriedades das matri-casas, algo que tornou possível constatar que o domínio político ou jural era extensível ao plano doméstico, e não apenas limitado à esfera masculina de atuação, como até então se afirmara. Inspirada em percepções como essa, portanto, busco desenvolver o argumento de que a política kaingang extrapola o domínio da liderança, exclusivamente masculina, constituindo-se também nos processos de parentesco, onde vislumbra-se uma centralidade de atuação feminina- ainda que envolvam, obviamente, relações e agenciamentos de homens e mulheres.

Esses temas serão tratados ao longo do texto, de forma implícita ou explícita, bastando-me por ora salientar as preocupações com os pressupostos envolvidos nesta pesquisa, que se esforça por problematizar o bias masculinizante constatável na literatura sobre os índios kaingang. Feitas essas considerações, retomo o que vinha sendo dito sobre as concepções nativas de parentesco.