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A abertura da Faculdade de Direito e a edificação do sistema de justiça

CAPÍTULO I – CONTEXTO POLÍTICO E INSTITUCIONAL DA GÊNESE E

1.3 A abertura da Faculdade de Direito e a edificação do sistema de justiça

Organizar o sistema de justiça em Moçambique (autônomo e independente) depois de 1974 foi uma tarefa quase impossível. Porque não havia praticamente juristas moçambicanos e os pouquíssimos existentes tinham tarefas de direção política. De acordo com Rui Baltazar dos Santos Alves (Memorando, 2017), juiz conselheiro do Conselho Constitucional Jubilado e antigo ministro da Justiça, até a independência, os agentes do sistema judicial em Moçambique eram, praticamente, todos portugueses. Aliás, a administração da justiça nas colônias portuguesas estava centralizada em Lisboa. A justiça era exercida na base do sistema colonial por autoridades administrativas coloniais e, nos tribunais, sobretudo nos grandes centros urbanos, por magistrados que eram nomeados em Portugal através de concursos.

Para advogar em Moçambique era exigido pelo regime, provar no então Tribunal da Relação, que o candidato tinha a licenciatura em Direito. Dos poucos advogados que optaram por ficar em Moçambique, depois da independência, todos eram brancos, com exceção do jurista Domingos Mascarenhas António Arouca, primeiro negro moçambicano, que no início

da década de 60 advogou em Moçambique e, que ―atuou como um detonador de expectativas ocultas‖ (ALVES, 2008), como se pode observar no trecho abaixo:

Domingos António Mascarenhas Arouca (Inhambane, 1928 — Maputo, 2009), nascido numa família de pequenos proprietários rurais, formou-se primeiro como enfermeiro em Moçambique. Em 1949, ganhou um prêmio na lotaria que lhe permitiu custear os próprios estudos em Portugal onde concluiu o liceu e cursou a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, formando-se em 1960. Em 1961, Arouca tornou-se Conselheiro jurídico do Banco Nacional Ultramarino (BNU). Em junho de 1963 instalou-se em Lourenço Marques, quando sua solicitação de transferência para a agência do BNU nesta cidade foi deferida. Na altura, tornou-se também membro do Tribunal Administrativo de Moçambique, cargo que rapidamente abandonou, por razões políticas. Pelas mesmas razões, já em 1964, demitiu-se das funções de Conselheiro jurídico do BNU, passando a dedicar-se inteiramente à advocacia na circunscrição judiciária de Lourenço Marques. Em março de 1965 Arouca foi eleito presidente do Centro Associativo dos Negros de Moçambique, um dos importantes polos de reivindicação nacionalista na então colônia. Pouco depois, em 29 de maio, foi preso pela Pide, acusado de pertencer à FRELIMO (PEIXOTO e MENESES, 2013, p. 93).

No início da década de 70, o jurista Teodato Mondim da Silva Hunguana foi também advogar em Moçambique, mas por pouco tempo, pois teve de voltar novamente para Portugal, a fim de prestar serviço militar obrigatório, acabando por fugir e ir-se juntar à FRELIMO na Tanzânia (Rui Baltazar dos Santos Alves, Memorando, 2017). Naquele período, na magistratura judicial e do Ministério Público não havia moçambicanos.

Em vista disso, após a independência, a atividade jurídica ficou durante certo período exercido por alguns magistrados portugueses que aceitaram permanecer em Moçambique e continuaram a exercer funções nos tribunais mediante contratos, coadjuvados com alguns moçambicanos sem formação em Direito. Mas foram rapidamente deixando o país e regressando para Portugal. Significa que, com o país colonizado, Moçambique não dispunha sequer de nenhuma universidade. Somente na fase final da colonização é que surge o primeiro sinal de estudos universitários.

Os Estudos Gerais Universitários foram fundados pela primeira vez em Moçambique em 1962, pelo Decreto-Lei nº. 44530, de 21 de agosto de 1962, sob a designação de Estudos Gerais Universitários de Moçambique (não necessariamente como universidade), integrados na Universidade Portuguesa (neste caso, sob a supervisão da Universidade de Coimbra). Somente em 1968, os Estudos Gerais Universitários de Moçambique ascenderam à categoria de Universidade, sendo então designada por Universidade de Lourenço Marques (hoje Universidade Eduardo Mondlane, nome atribuído em homenagem ao Doutor Eduardo Chivambo Mondlane, primeiro presidente da FRELIMO, devido ao papel histórico relevante na Frelimo e em Moçambique.

E no período colonial, como era de esperar, o curso de Direito não estava previsto no currículo. Não fazia parte das cadeiras curriculares. E pela alta componente de formação, não só política, como de preparação de natureza ideológica de argumentação, o colonialismo certamente não queria num país como Moçambique, a abertura da faculdade de Direito.

Aliás, o atual presidente do Conselho Constitucional, Hermenegildo Maria Cepeda Gamito, na entrevista com o pesquisador deste trabalho, afirmou que os Estudos Gerais Universitários de Moçambique somente surgem quando um governador-geral, das então províncias ultramarinas de Portugal, defendeu que Moçambique tivesse os seus próprios Estudos Gerais Universitários o que coincidiu na altura, com uma outra colônia portuguesa que era Angola.

Conforme Hermenegildo Maria Cepeda Gamito (entrevista, 2017), o argumento que aquele governador colonial usou custou-lhe, praticamente, a perda do cargo de governador- geral das províncias ultramarinas de Portugal. Pois, defendia aquele governador colonial que se deveria introduzir em Moçambique Estudos Gerais Universitários, porque poderia acontecer -, se acontecesse e aconteceu, - que no dia que os portugueses pudessem sair das colônias portuguesas, pelo menos deixassem nas suas colônias a língua portuguesa. Portanto, estava em debate a preparação nas elites coloniais locais, a continuidade da língua portuguesa falada e escrita. Isto custou-lhe o posto de governador-geral, na medida em que ele concebia que as colônias poderiam tornar-se independentes, o que na concepção colonial era indesejável. Os cursos tinham uma componente altamente política.

Foi por esta razão que o acesso aos cursos de Direito pelos colonizados na época era muito difícil. Em Portugal, naquela época só existiam duas universidades, designadamente Coimbra e Lisboa. Coimbra é a mais antiga das universidades portuguesas e, também uma das mais antigas da Europa, data do século XIII. Mais tarde foi criada a universidade do Porto, no norte de Portugal. Em Portugal a partir da década de 1940 foi criado em Lisboa, o famoso ―Lar dos Estudantes do Império‖, na universidade de Coimbra (no centro do país) e na universidade do Porto (no norte de Portugal), sucessivamente. Eram jovens trazidos das antigas colónias portuguesas para continuarem os seus estudos universitários em Portugal. Vinham das antigas colónias portuguesas: Estado da índia (Goa, Damão, Diu), Macau (na China), Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe (em África). Os jovens trazidos das colónias para estudar em Portugal, muitos deles acabaram envolvendo-se em atividades políticas clandestinas, contra o regime de António de Oliveira Salazar e Marcelo Caetano. Muitos deles foram presos e torturados e, tantos outros escaparam, fugindo para França e depois fugiram para irem se juntar aos movimentos

nacionalistas. No caso de Angola: António Agostinho Neto, Viriato de Cruz e tantos outros nacionalistas que depois se juntaram ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).

No caso de Moçambique, segundo Couto (2011), destaca-se um núcleo duro que era composto pelos advogados Camilo Pereira, Carlos Adrião Rodrigues, Carlos Raposo Pereira, Domingos Mascarenhas Arouca, Máximo Dias, Rui Baltazar dos Santos Alves, Teodato Mondim da Silva Hunguana, Victor Manuel Lopes Pinto Raposo Serraventoso, juntando-se a outros moçambicanos, designadamente, Albino Magaia, Amaral de Matos, Ana Margarida Oliveira, Eneas da Conceição Comiche, Eugénio de Lemos, Filipe Ferreira, Graça Simbine, Joana Simeão, Joaquim Alberto Chissano, José Craveirinha, Luís Bernardo Honwana, Malangatana Valente Ngwenya, Mário Fernandes da Graça Machungo, Óscar Monteiro, Rui Nogar, Sérgio Viera, entre outros.

De acordo com Hermenegildo Maria Cepeda Gamito (entrevista, 2017), a maioria de moçambicanos que foram em Portugal fazer o curso de Direito não conseguiram. São poucos aqueles que alcançaram ser juristas pelas faculdades de Direito portuguesas. Houve uma minoria que conseguiu terminar o curso, devido às exigências rígidas que se impunham nestas universidades em Portugal. Por isso, após a independência, não havia muitos juristas moçambicanos, dos poucos se destaca os seguintes: Aires do Amaral Banze Muchina, Domingos Mascarenhas António Arouca (já falecido), Hermenegildo Maria Cepeda Gamito, João Manuel Martins (já falecido), Luís Filipe de Castel-Branco Sacramento, Máximo Dias, Rui Baltazar dos Santos Alves, Teodato Mondim da Silva Hunguana e Victor Manuel Lopes Pinto Raposo Serraventoso. Estes foram os principais atores na montagem do sistema judicial de Moçambique (ver Quadro 5).

Quadro 5 - Primeiros juristas em Moçambique formados em Portugal

Nome do Jurista País de formação (Faculdade)

01 Aires do Amaral Banze Muchina Portugal

02 Domingos Mascarenhas António Arouca Universidade de Lisboa, Portugal

03 Hermenegildo Maria Cepeda Gamito Universidade Clássica de Lisboa, Portugal

04 João Manuel Martins Portugal

05 Luís Filipe de Castel-Branco Sacramento Portugal

06 Rui Baltazar dos Santos Alves Universidade de Coimbra, Portugal

07 Teodato Mondim da Silva Hunguana Universidade Clássica de Lisboa, Portugal

08 Victor Manuel Lopes Pinto Raposo Serraventoso Portugal Fonte: Elaboração própria com base em dados da pesquisa.

Durante o período colonial, e por razões políticas, nunca foi autorizada a abertura do curso de Direito em Moçambique, apesar de na década de 1960 terem sido iniciados estudos

universitários em Lourenço Marques. O curso de Direito foi previsto a 4 de julho de 1974, através do Decreto-Lei nº 299/74 (Boletim Oficial, nº 82, de 16 de julho de 1974), mas a sua criação ocorreu em janeiro de 1975, através do Decreto-Lei nº 7/75, de 18 de janeiro, com a denominação de Faculdade de Direito da Universidade de Lourenço Marques, hoje Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane (FDUEM), cuja visão se resumia no seguinte:

[...] adotou-se, então, um currículo de apenas 4 anos de formação que visava sem prejuízo do nível de formação de juristas, preparar rapidamente alguns quadros com um mínimo de formação jurídica, que permitissem fazer face as necessidades mais imediatas e prementes da Área. Isto porque até àquela altura, os juristas existentes, já de si em número muito escasso, eram todos portugueses e na expectativa da independência que se avizinhava, abandonaram Moçambique em pânico. 
Iniciou- se então a formação de juristas cujo perfil, finda a formação, deveria ser caracterizado por um grande domínio do campo técnico-jurídico e por uma assumpção rigorosa dos princípios ideológicos que dominavam a realidade moçambicana nessa época, tendo em conta a natureza do poder.
A Faculdade de Direito vinha funcionando em obediência aos princípios citados quando a 21 de março de 1983, no decurso do encerramento da 11ª Sessão da Assembleia Popular, o então presidente da República, Samora Machel determinou o encerramento da Faculdade de Direito.
Supostamente, estavam na origem do encerramento dúvidas que se prendiam com o nível político e profissional de um grande número de quadros saídos da Faculdade.
A 17 de agosto de 1987 como corolário da pressão exercida por estudantes que haviam interrompido o curso em 1983 e por outros setores da sociedade foi reaberta a faculdade de Direito da UEM. 
O Conselho de Ministros, reunido na sua 13ª sessão, constatou que estavam criadas as condições mínimas para que em 1987 fosse dado início ao processo de reabertura da Faculdade de Direito. Daquela data até hoje, a Faculdade tem vindo a funcionar normalmente, sem isenção de dificuldades oriundas do nível de desenvolvimento do país, do fato de pertencer a uma instituição dependente do Orçamento do Estado e do prejuízo adveniente do período de paralisação a que a Faculdade esteve sujeita (Historial da Faculdade – Portal UEM, 2016).

A abertura da Faculdade de Direito em Moçambique, concretamente, em Maputo, capital do país, afirmava-se como importante centro de formação e reprodução da elite jurídica no país, pois, a maioria dos altos dirigentes do sistema judiciário viria a ser formada naquela faculdade, hoje considerada a mais importante instituição de ensino superior em Moçambique em geral e, na formação jurídica em particular. O currículo estava desenhado para dois níveis: bacharelato (três anos) e licenciatura (quatro anos). Passado algum tempo, o curso de licenciatura passou a ter a duração de 5 anos. A estrutura do curso era idêntica à estrutura do curso de licenciatura da Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, com a qual a Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane (FDUEM) tinha cooperação.

No seu primeiro ano de funcionamento, em 1975, a FDUEM conseguiu matricular 458 estudantes, para os dois níveis (bacharelato e licenciatura). Lembrar que, na altura, os estudantes não tinham a oportunidade de escolher o curso, carreira, emprego. Pela carência de

quadros formados, o Estado moçambicano definia as áreas prioritárias e encaminhava os alunos de acordo com as prioridades e necessidades definidas pelas elites governantes. Só em 1991 foi estabelecido o processo de exames de admissão ao Ensino Superior.

No entanto, em 1976, no segundo ano do curso, o número de estudantes inscritos reduziu para 200 matriculados, ―uma descida provocada pela guerra civil e pelo banimento da prática da advocacia privada pelo governo do dia. Muitos dos que se tinham matriculado no primeiro ano não completaram as suas licenciaturas‖ (OPEN SOCIETY INITIATIVE FOR SOUTHERN AFRICA, 2006, p. 71).

Recordar que, em dezembro de 1977, o governo determinou a interrupção da licenciatura da maioria dos estudantes que já tinham terminado o terceiro ano e acabados de graduar o bacharelato em Direito. Os estudantes foram distribuídos em vários setores da justiça, a maioria deles para o Ministério da Justiça, onde foram organizados em brigadas de justiça para promover o debate do anteprojeto de implementação da Lei da Organização Judiciária, em todas as províncias moçambicanas.

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