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Modelo judiciário adotado para o sistema de justiça moçambicano

CAPÍTULO I – CONTEXTO POLÍTICO E INSTITUCIONAL DA GÊNESE E

1.6 Modelo judiciário adotado para o sistema de justiça moçambicano

Antes da independência de Moçambique, não se pode falar da construção do sistema jurídico moçambicano. O país era administrado pelos colonialistas portugueses, como uma província ultramarina de Portugal e todas as normas eram portuguesas. Neste período,

O sistema de justiça formal limitava-se aos tribunais coloniais das áreas urbanas, que serviam os portugueses e uma minoria de cidadãos negros considerados ―assimilados‖. A maioria dos moçambicanos era governada pelo direito costumeiro local, imposto por funcionários portugueses através da cooptação de chefes e líderes tradicionais. Estes tribunais tradicionais estavam amplamente associados a práticas de corrupção e opressão (OPEN SOCIETY INITIATIVE FOR SOUTHERN AFRICA, 2006, p. 9).

No tempo colonial, ―O racismo, a discriminação, a dominação, a opressão estavam presentes em todos os aspectos da vida quotidiana, desde os assentos nos autocarros até aos elevadores onde os negros não podiam entrar, para já não falar dos muitos lugares e atividades cujo acesso lhes era interdito‖ (ALVES, 2008, p. 1). Estes males conduziram o país ao início da Luta Armada de Libertação Nacional, em 25 de setembro de 1964, quando a FRELIMO, como movimento de libertação, começou a ocupar e controlar pequenas zonas, na altura chamadas ―zonas libertadas‖, nos então distritos do norte (então distritos de Cabo Delgado e Niassa) e do centro (então distritos de Tete, Manica e Sofala) de Moçambique.

A Luta Armada de Libertação Nacional conduziu o país à independência em 25 de junho de 1975. Tendo tornado Moçambique um país livre da dominação colonial, da cultura, da ideologia e do sistema colonial português. Como afirmam Sachs e Welch (1990, p. 3), o

sistema jurídico colonial em Moçambique era fascista e elitista, que gradualmente foi sendo transformado num sistema popular, moçambicano e democrático, onde o poder supostamente residia no povo. Esta liberdade foi-se conquistando gradualmente nos espaços e nos territórios que as forças da FRELIMO ocupavam e, ao mesmo tempo destruíam os hábitos e os costumes coloniais impostos pelo colonizador. Como era necessário disciplinar os seus membros e o povo aliado, foram sendo criados ―Comitês Disciplinares‖ e comissários políticos para a mobilização e propaganda no seio das populações e para a difusão das linhas de orientação política da FRELIMO, cujos responsáveis eram guerrilheiros deste movimento nas zonas libertadas.

As zonas libertadas eram extensas áreas totalmente controladas pela FRELIMO dentro de Moçambique. Elas tinham como objetivo ―essencial a destruição das estruturas de dominação e opressão do povo moçambicano, e a edificação de novas formas de poder, segundo o interesse das massas‖ (Relatório do III Congresso da FRELIMO, 1977). Depois da independência de Moçambique, a FRELIMO começou ―a criar as suas próprias estruturas legais, que consistiam em tribunais populares, presididos por quatro a seis juízes eleitos no seio da comunidade. Estes tribunais populares tomavam as suas decisões através de diversos mecanismos de consulta e respondiam perante as assembleias populares locais‖ (OPEN SOCIETY INITIATIVE FOR SOUTHERN AFRICA, 2006, p. 9). Desta forma, foram surgindo os tribunais populares em Moçambique, seguindo um modelo de justiça popular. Ao contrário disso, nas zonas libertadas não havia tribunais. Existia uma justiça popular, onde o júri era constituído por guerrilheiros da FRELIMO e pela própria população (participação popular no julgamento) nas circunscrições territoriais libertadas.

A edificação da justiça popular tem as suas raízes na experiência das zonas libertadas: esta é uma afirmação que serviu de guia e de inspiração na altura em que começamos a construir uma nova organização judiciária, a criar novas leis, a pôr em prática um novo princípio de legalidade. Isso porque durante a fase mais aguda de uma luta (e tal foi sem dúvida a experiência das zonas libertadas), realizam-se as experiências mais criadoras e exemplares, as que servem de modelo e de ponto de referência para o futuro, quando o novo poder se estabeleceu e uma sociedade no seu todo deve encontrar novas formas de organização e de funcionamento (HONWANA, et al., 1984, p. 11).

Nesta perspectiva, quanto ao modelo de justiça adotado no processo de formação do campo jurídico em Moçambique, após a independência nacional e aprovação da primeira Constituição de Moçambique Independente em 1975, alguns dos entrevistados são unânimes em afirmar que não havia um modelo de referência, apenas tinham como fonte de inspiração a

experiência da luta armada de libertação nacional nas zonas libertadas, com a participação dos juízes eleitos no seio da população sem formação em Direito.

Para a entrevistada (2017) Irene da Oração Afonso Micas e Uthui, procuradora-geral adjunta para área fiscal e aduaneira na Procuradoria-Geral da República, o modelo de referência foi a experiência da Luta Armada de Libertação Nacional, dos tribunais populares das zonas libertadas. Logo após a independência, Moçambique escolheu o sistema socialista, os tribunais não existiam no interior do país, fora das cidades não havia tribunais. E a maioria da população moçambicana vivia e vive até hoje no campo, vive da agricultura de subsistência. Os conflitos sociais no seio das populações eram dirimidos pelos anciãos, pelas pessoas mais velhas da povoação, uma imagem daquilo que tinha sido o papel dos régulos coloniais em Moçambique, antes da independência.

Segundo Irene da Oração Afonso Micas e Uthui (entrevista, 2017), os conceitos de ―justo‖, ―atitude correta‖ ou ―atitude incorreta‖, não eram jurídicos, mas sim populares. Eram, pois, pontos de vista populares. Muitos casos eram discutidos na praça pública, havia vezes em que se convocava uma reunião em que a pessoa era apresentada à população e criticada em público (repreensão pública, chicotadas, fuzilamento, etc.). Os tribunais sempre existiram, mas nas cidades, nas vilas, sem muito peso na vida da maioria da população. Naquela época, eram poucos os casos que eram levados aos tribunais, porque os conceitos de ―justo‖ ou ―injusto eram de interpretação popular. Por isso, os julgamentos eram feitos em comícios populares, onde o presidente da República tomava decisões, como se fosse um tribunal a decidir e, a pena tornava-se de cumprimento obrigatório.

A opinião desta entrevistada vai de acordo com o escrito em 1984 por HONWANA, Gita, et al., na Revista Justiça Popular, que abaixo se transcreve:

Reafirmamos uma vez mais a importância da experiência das zonas libertadas como fonte de inspiração para a construção de um sistema popular de justiça em Moçambique, através dos depoimentos daqueles que, enfrentando heroicamente a violência assassina do exército colonial fascista, criavam uma nova vida e um novo direito nas zonas libertadas (HONWANA, Gita, et al., 1984, p. 2).

Continuamente, Honwana, et. al. (1984) afirmam que ―O nosso tribunal foi constituído não só por juízes, mas por elementos das Organizações Democráticas de Massas residentes na zona, [...] e por cidadãos exemplares, o que permitiu efetuar julgamentos com base num conhecimento profundo da realidade de cada zona‖ (HONWANA, et. al., 1984, p. 4).

O jurista Abdul Carimo Issá, antigo vice-presidente da Assembleia da República (1994-1999) e diretor da extinta Unidade Técnica de Reforma Legal – UTREL (2002-2012),

partilha também a mesma ideia. Citado por Senda (2019) refere que ―Contrariamente aos processos de descolonização em geral, no caso de Moçambique, operou-se uma solução de descontinuidade, uma ruptura e a efetiva fundação de um novo Estado que nada tinha com o Estado colonial‖ (Abdul Carimo Issá Apud SENDA, 2019, p.2). Da mesma forma, Issá entende que ―o escangalhamento do Aparelho de Estado colonial, onde se insere a ruptura do modelo de justiça colonial e instituição da justiça popular é corolário dessa decisão estratégica de então‖ (Abdul Carimo Issá Apud SENDA, 2019, p.2).

Ideia semelhante é expressa pela procuradora-geral adjunta de Moçambique, Lúcia Buinga Maximiano do Amaral (entrevista, 2017), chefe do departamento especializado para área de controlo da legalidade da Procuradoria-Geral da República, segundo a qual, o modelo adotado para o sistema moçambicano foi o sistema colonial português, mas com certa rótula, desde logo com a implantação de tribunais populares, algo exclusivo de Moçambique. Esta magistrada entende que, o modelo foi próprio, típico de Moçambique, trazido da experiência das zonas libertadas, durante a guerra colonial de libertação nacional, o que vai de acordo com o que defendem Honwana, et. al. (1984):

Os principais fundamentos da justiça popular não surgiram do nada, nem tão pouco foram copiados deste ou daquele país. Forjaram-se, com toda a sua complexidade e todo o seu pormenor, aqui no nosso solo, através de trabalho diário de milhares de moçambicanos organizados e enquadrados pela FRELIMO, durante a Luta Armada de Libertação Nacional (HONWANA, Gita, et. al., 1984, p. 2).

Lúcia Buinga Maximiano do Amaral (entrevista, 2017) entende que a forma como deveria ser analisado certo comportamento, como o infrator deveria ser corrigido, as medidas a serem aplicadas, isso tudo, influenciou a gênese do sistema judicial. Igualmente, entende que, tudo foi por mérito do primeiro ministro da Justiça de Moçambique, na altura, o jurista Rui Baltazar dos Santos Alves, formado em Direito em Portugal, depois veio trabalhar em Moçambique como Advogado, em defesa dos interesses dos moçambicanos, sobretudo daqueles que lutavam e impugnava o sistema colonial. Conforme Lúcia do Amaral, Rui Baltazar dos Santos Alves tinha ideias progressistas e democráticas, e agregadas às orientações que teria recebido do Chefe do Estado, além do trabalho de divulgação e de recolha de opiniões feito pelas brigadas da Justiça Popular, teriam de certa maneira facilitado a implantação do sistema judiciário moçambicano.

Na visão de Rui Baltazar dos Santos Alves (Memorando, 2017), antigo ministro da Justiça e juiz-presidente do Conselho Constitucional jubilado, o sistema implantado resultou, pois, de um misto de soluções adaptadas às realidades existentes, de criatividade sintonizada

com as políticas seguidas, mas tendo como referência modelos portugueses, o que se impunha. Pois, o grosso da legislação vigente continuava a ser a portuguesa, aplicada às colônias, e era a cultura jurídica portuguesa que dominava e, até certo ponto, ainda domina ou mantém forte influência em Moçambique. Esta visão é reforçada também pelo Open Society Initiative for Southern Africa (2006, p. 6), ao aduzir que a estrutura dos tribunais e as bases do sistema de justiça moçambicano foram herdadas do sistema colonial português.

De igual modo, Gita Welch, afirma também que ―essencialmente o sistema comporta elementos do direito estatuário herdado do colonialismo, elementos trazidos pela prática da aplicação da justiça nas zonas libertadas durante a Luta Armada de Libertação Nacional e certamente alguns elementos de direito costumeiro‖ (WELCH, 1991, p. 107). Continuamente, a autora entende que,

A transformação do sistema de justiça em Moçambique correspondeu à necessidade de adequar as instituições jurídicas e o próprio direito herdado do colonialismo à nova concepção de Estado de Democracia Popular, no quadro da definição do direito como expressão do poder da classe dominante (WELCH, 1991, p. 107).

Alguns analistas entendem que, no período compreendido entre a proclamação da independência e a aprovação da primeira Lei da Organização Judiciária moçambicana (Lei nº 12/78, de 2 dezembro – Lei da Organização Judiciária), manteve-se vigente a essência da estrutura do sistema judicial do período antes da independência, dominado pela legislação portuguesa, como por exemplo, um Tribunal da Relação, com jurisdição em todo o país, com funções de Tribunal de Recurso em última instância; tribunais judiciais de comarca (mais tarde tribunais populares provinciais), com jurisdição em cada província; julgados municipais (tribunais populares distritais), com jurisdição em cada distrito; julgados de paz (tribunais populares de localidade), com jurisdição em cada posto administrativo; e os tribunais populares de bairro, modelo adotado implantado nas zonas libertadas (Historial do Tribunal Supremo, 2017).

Hermenegildo Maria Cepeda Gamito (entrevista, 2017), atual presidente do Conselho Constitucional de Moçambique, explica que se seguiu o modelo português, pois não poderia se fazer um corte, ou mesmo este corte não podia ser tão radical, tendo em conta o contexto que o país se encontrava, com quase uma dezena de juristas formados em Portugal. Desta maneira, a legislação e o Direito português, são as normas ocidentais que acabaram influenciando mais a ordem jurídica moçambicana.

Contudo, apesar de haver uma pequena discrepância dos entrevistados em relação ao modelo judiciário implantado em Moçambique, a ideia que fica é de que, o sistema judiciário moçambicano é de fato, um modelo português, tendo sofrido pequeno processo de adaptação, interpretação e modificação, face as experiências das zonas libertadas. O que era de esperar, pois, conforme Badie e Hermet (1993), os países periféricos, caracterizam-se por um processo de importação de modelos ocidentais, o que não podia ser diferente para Moçambique.

No entanto, é digno de se dizer que, o modelo do sistema judiciário adotado em Moçambique, não teve a sua origem meramente como produto da história social e política do país, à semelhança do que sucedeu com os países ocidentais. Contrariamente a isso, o sistema judiciário moçambicano surge associado à problemática que Badie e Hermet (1993) denominaram de ―dinâmicas órfãs‖, que caracterizam os países periféricos, dos quais Moçambique faz parte. É um modelo caracterizado pela importação de padrões de instituições europeias, principalmente do modelo português, imbricado à experiência das zonas libertadas. Como o país não tinha curso de Direito, a configuração e consolidação das instituições jurídicas beneficiaram-se dos mecanismos do ―sistema internacional‖, que permitia a circulação dos juristas por meio de títulos universitários, conhecimento técnico, contatos, recursos, prestígio e legitimidade obtidos no exterior (BADIE e HERMET, 1993; DEZALAY e GARTH, 2000). Tais políticas importadas têm implicações na configuração de estruturas políticas, institucionais e normativas diversas que, consequentemente, levam os Estados importadores a sujeitarem-se à reprodução de uma estrutura de hierarquização e dominação. Esta configuração permeia que grupos sociais ligados ao centro do poder estatal, apropriem-se dos recursos do Estado de diversa ordem. Já que as políticas implantadas ―[...] cumprem a função de reforçar as estruturas políticas mais deficitárias e substituir as organizações tradicionais que tenham se tornado arcaicas‖ (BADIE e HERMET, 1993, p. 182).

As políticas importadas criam certo hibridismo, que tem como consequência o baixo grau de autonomização e de diferenciação das esferas sociais. Esta hibridação ocorre entre elementos internos e externos e propicia um enraizamento do domínio patrimonial, no âmbito do Estado (BADIE; HERMET, 1993). Neste sentido, a elite governante acaba tendo o monopólio de nomear as elites dos outros campos do poder, sendo até ao momento o critério visível para legitimação das elites do espaço jurídico moçambicano, que é dado de acordo com a confiança político-profissional, centrado nos militantes partidários. São padrões que emanam desde o tempo colonial, no surgimento dos movimentos nacionalistas que lutaram para a independência de Moçambique. Nesta época, todas as chefias eram por indicação do presidente da República.

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