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CAPÍTULO I – CONTEXTO POLÍTICO E INSTITUCIONAL DA GÊNESE E

1.2 A Guerra civil e o processo de formação do sistema judicial

Outro aspecto importante, mercê de destaque neste trabalho, é o fato de que o processo de formação ou da construção do campo jurídico moçambicano, não só surgiu num processo de partido único, como também ocorreu num clima de uma guerra civil, a guerra dos dezesseis anos. Desde que Moçambique tornou-se independente em 1975 até 2016, o registro de confrontos político-militares no país tem sido frequente, protagonizados pelo governo da Frelimo e pelo maior partido da oposição (Renamo). A luta pelo poder e o controle dos recursos do país são ou têm sido duas principais razões do conflito armado em Moçambique, depois da independência em 1975. Tem sido uma derradeira luta pelo poder.

Como argumenta Nuvunga (2007), tudo começou em 1975, quando o país alcançou a independência e começou o processo de formação do Estado moçambicano. O que aconteceu foi uma falta de consenso no seio da FRELIMO, quanto ao sistema econômico que Moçambique deveria escolher. Alguns destacados dirigentes da FRELIMO impuseram a sua vontade, escolhendo o sistema socialista. Porém, alguns queriam um sistema capitalista, isto é, uma economia de mercado. Não se tratou do povo, mas sim de desentendimentos dentro da FRELIMO. Assim, em 1976, volvidos poucos meses após a independência de Moçambique, um grupo de militares da FRELIMO, liderados pelo dissidente e então comandante da FRELIMO, André Matade Matchangaisse, natural da província central de Manica, desertou e, fundou a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), como um movimento armado de resistência nacional anticomunista e anti-marxista-leninista, patrocinado por uma organização secreta de inteligência da Rodésia do Sul – hoje Zimbabwe.

Foi a partir desta insurgência que, no decurso do ano de 1976 eclodiu em Moçambique uma guerra civil entre o governo da FRELIMO (liderado por Samora Moisés Machel) e a RENAMO (grupo de desertores da FRELIMO, liderados por André Matade Matchangaisse). A causa principal desta divergência ou falta de entendimento foi a escolha do sistema econômico. A jovem nação acabava de se tornar independente em 25 de junho de 1975, com a denominação: República Popular de Moçambique. Como recorda Brito (2014), a

FRELIMO impunha para Moçambique um sistema de economia socialista, enquanto que a RENAMO defendia um sistema de economia capitalista, i.e., um sistema de economia de mercado.

Nos anos subsequentes a guerra civil foi se intensificando gradualmente. Contudo, de acordo com o jornal moçambicano O AUTARCA (2012, p.1), André Matade Matchangaisse foi morto em combate pelas forças governamentais em Gorongosa no dia 17 de outubro de 1979, na serra da Gorongosa, província de Sofala, centro do país, num confronto militar entre as tropas governamentais e os guerrilheiros da RENAMO. Após a morte em combate de Matchangaisse, Afonso Macacho Marceta Dhlakama assumiu o cargo de novo comandante militar da RENAMO e a guerra civil continuou.

A verdadeira destruição do país, através da guerra civil, aconteceu durante as décadas de 1980 e de 1990. Em 1990 começou um roteiro de negociações para a paz entre as duas partes. Estas negociações surgiram como ―fruto do esgotamento das duas forças e das suas incapacidades para continuar a guerra no contexto do fim da guerra fria, do que o resultado de uma vontade genuína de negociação e de criação dos mecanismos para a solução das diferenças‖ (BRITO, 2014, p. 24). O país estava, completamente, paralisado, destruído e sem alimentos.

Foi nestas circunstâncias que a FRELIMO e a RENAMO acabaram por aceitar encetar um diálogo em Roma, na Itália, mediado pelos católicos da Comunidade de Santo Egídio. Foram várias as rondas de negociação entre as partes nos corredores de Santo Egídio. Durante dois anos de negociação o povo moçambicano esperou e desesperou, até que em quatro de outubro de 1992 surgiu uma luz ao fundo do túnel: pela primeira vez tinha sido assinado um Acordo Geral de Paz (AGP) e de cessação imediata das hostilidades militares, sob a mediação de diversos atores nacionais e internacionais. Joaquim Alberto Chissano era o presidente da República e tinha assumido o cargo, depois da morte de Samora Machel, num acidente de aviação em dezanove de outubro de 1986, em Mbuzini, na África do Sul (em circunstâncias ainda hoje não esclarecidas).

A guerra civil durou dezesseis anos (1976-1992). Segundo DW (2014), o balanço apontava para cerca de um milhão de mortos e, quatro milhões de refugiados e muitos deslocados internos, destruição de muitas infraestruturas básicas (habitações, campos de cultivo, estradas, pontes, caminhos-de-ferro, portos, aeroportos, locomotivas de comboios, postos de transporte de energia de alta-tensão de Cahora Bassa para a vizinha África do Sul, escolas, hospitais, condutas de transporte de água potável, entre outras). No final da guerra civil (1992) a economia moçambicana estava, completamente, destruída e, com cerca de 89%

do Orçamento Geral do Estado financiado pela Comunidade Internacional. Hoje, Moçambique é considerado um dos países mais pobres do mundo.

Na verdade, em Moçambique nunca houve uma paz efetiva desde o Acordo Geral de Paz assinado em Roma, em outubro de 1992. Os dois principais partidos (a Frelimo e a Renamo) nunca se reconciliaram de fato. Desde que Moçambique se tornou independente em 1975, a Frelimo e Renamo têm-se envolvido em conflitos políticos e militares, em perseguições, em guerras de palavras, em várias torturas e mortes em teatros de guerra, envolvendo cidadãos civis e militares, além de acusações mútuas de raptos, assassinatos e execuções sumárias de dirigentes políticos de ambas as partes.

A Renamo tem vindo a alegar, a falta de transparência nos escrutínios eleitorais e a necessidade da despartidarização das instituições do Estado. É preocupante o fato de não se vislumbrar ações concretas por parte das instituições da administração da justiça moçambicana, por forma a mediar e pôr fim a estes conflitos. Ao contrário, as instituições da justiça têm sido vistas como parte do problema, ao serem consideradas parciais ao governo. Em tese, as instituições de justiça são consideradas guardiãs da ordem social e do Estado democrático, um papel a que têm sido atribuídas desde a primeira Constituição da República de Moçambique de 1975.

Desta forma, o contexto do processo histórico de construção do sistema Judicial moçambicano deve ser analisado tomando em conta dois fatores fundamentais: primeiro fator, um período em que vigorou um sistema de partido único, fruto da conquista da independência nacional, após a Luta Armada de Libertação Nacional, que tornou a Frelimo vitoriosa e no único partido político que liderou o processo de construção do Estado, no geral e do Poder Judiciário, em particular.

Segundo fator, a formação do sistema judicial em Moçambique decorreu como se viu, num ambiente de uma guerra civil. Estes dois fatores influenciaram de forma negativa a construção e a automatização do espaço jurídico em Moçambique, como se pode perceber na assertiva de José Jaime Macuane (2017).

Historicamente, a base de criação do Estado moçambicano é a vitória da luta de libertação nacional, que tornou a Frelimo no principal patrocinador político do processo de construção do Estado e da nação. Consequentemente, os ideais da luta de libertação informaram e enformaram a ideologia central da construção do Estado. Em um certo momento histórico esta ideologia foi o marxismo-leninismo, formalmente de 1977 a 1989 (entre o III e V congressos da Frelimo), que teve como consequência a confusão entre o Estado e o partido governante. A guerra civil protagonizada pela Renamo e o governo da Frelimo, contribuiu para o questionamento desta ideologia do Estado e foi um dos fatores, aliado ao contexto internacional e a pressões e discussões dentro do regime do dia, que levou à

democratização e à adopção formal da separação do Estado e do partido e abriu espaço para o multipartidarismo, cuja operacionalização levou às primeiras eleições multipartidárias no país desde 1994 (MACUANE, 2017, p.9).

Assim sendo, compreende-se no texto acima que a formação dos poderes de soberania do Estado em Moçambique, particularmente do Poder Judiciário, surge num contexto em que não havia uma separação formal entre a ideologia do partido e a orientação do Estado. Não havia, não houve e não há até hoje, uma separação nítida entre o partido e o Estado em Moçambique. Comparando com os países democráticos do ocidente, este é o grande desafio para a FRELIMO, o partido no poder em Moçambique. ―A Constituição de 1975 estabelecia um regime monopartidário que confirmava o papel destacado do Executivo – com efeito, o partido no poder, FRELIMO (Frente da Libertação de Moçambique) – sobre todos os aspectos da vida pública, incluindo o judiciário‖ (OPEN SOCIETY INITIATIVE FOR SOUTHERN AFRICA, 2006, p. 4).

Desta forma, o sistema judicial foi sendo integrado num Estado cujos fundamentos ideológicos resumiam-se no partido-estado, onde as orientações políticas e ideológicas estavam acima da lei. Logo, foi um momento sem uma clara separação de poderes, construído no período posterior à independência, mais tarde legitimado pelo formalismo democrático estabelecido na Constituição de 1990, que revogava formalmente a primeira Carta Magna.

Neste período, a estrutura judicial implantada não passou de uma assimilação da estrutura colonial portuguesa. Como afirma Gita Welch ―De uma forma genérica, o direito colonial, como parte integrante do poder colonial, teve um papel subjugador em relação ao direito local, e esta relação permitiu a adulteração e mesmo obliteração de muitas instituições de direito costumeiro‖ (WELCH, 1991, p. 105).

O sistema judiciário foi erguido num contexto que vigorava o regime de partido único, liberado pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) com fortes relações com Cuba e a extinta União Soviética. A hegemónica do poder da Frelimo era maior do que as políticas do próprio Estado, aliás, a Frelimo era o próprio Estado. Tudo era decidido em volta do partido. Pouco se falava da independência das instituições do país, mormente no que diz respeito ao desempenho das funções do Estado. O Poder Judiciário, em particular, estava subordinado aos Poderes Executivo e Legislativo, que por sua vez estavam sob controle do partido Frelimo.

Igualmente, o campo jurídico moçambicano emerge num contexto em que não havia muitos juristas de formação. Após a independência, os poucos moçambicanos que se filmavam no Poder Judiciário (que desempenhavam a função judicial, mesmo sem formação

jurídica) morreram como consequência da guerra dos dezesseis anos. Logo, para além do problema da guerra civil, outras preocupações estavam na linha da frente, como por exemplo, o problema de falta de quadros formados para ocuparem cargos de direção nos principais poderes do Estado, sobretudo no Poder Judiciário.

Numa conjuntura em que se propunha a formação do Estado, o país carecia de quadros em todos os setores públicos (justiça, saúde, educação, etc.). No setor da justiça, uma das áreas mais técnicas, não se tratava apenas de uma necessidade, mas constituía uma obrigatoriedade ter pessoas com formação acadêmica na área para assumir a direção do poder. Ou seja, trata-se da necessidade de pessoas com formação jurídica para exercer funções ligadas à matéria de Direito.

Foi neste contexto que o governo de Moçambique vê-se confrontado com a grande necessidade de apostar na qualificação acadêmica de juristas moçambicanos. As políticas seguidas no período pós-independência, algumas bastante radicais, aceleraram este processo. Assim, uma das primeiras medidas adotadas, a partir do período de transição, foi à abertura da Faculdade de Direito (antes da independência, em Moçambique não existia o curso de Direito), na Universidade Eduardo Mondlane (UEM), em 1975, que logo acolheu grande número de candidatos. Muitos deles tinham concluído o ensino secundário em missões católicas, na então província ultramarina de Moçambique.

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