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A gênese do sistema judiciário na Constituição e nas demais leis de Moçambique

CAPÍTULO I – CONTEXTO POLÍTICO E INSTITUCIONAL DA GÊNESE E

1.7 A gênese do sistema judiciário na Constituição e nas demais leis de Moçambique

O sistema judiciário moçambicano foi previsto pela primeira vez na Constituição da República Popular de Moçambique de 1975 (CRPM/1975). No seu Capítulo VI, previa a existência da ―organização judiciária‖ e, no artigo 62 dispunha de forma clara que ―Na República Popular de Moçambique a função judicial seria exercida pelos tribunais, através do Tribunal Popular Supremo e dos demais tribunais determinados na lei sobre organização judiciária‖. Igualmente, no artigo 66, o legislador previa a existência do Ministério Público: ―Junto dos tribunais existirão magistrados do Ministério Público, a quem caberá a representação do Estado. O procurador-geral da República será responsável perante a Assembleia Popular‖.

Apesar da previsão legal do Tribunal Popular Supremo e da Procuradoria-Geral da República (PGR) na Constituição de 1975, a criação destes órgãos apenas ocorreu em 1988 e 1989, respectivamente. A PGR foi concedida, através da Lei Orgânica da Procuradoria-Geral da República, Lei n.º 6/89, de 19 de setembro. Na Constituição da República de 2004 (CRM/2004), a PGR ficou plasmada no artigo 237, definida como órgão central do Estado e, constitui o topo da magistratura do Ministério Público.

Contudo, na Constituição de 1975, as assimetrias entre os órgãos do espaço jurídico e os do espaço político eram muito visíveis, visto que a separação formal de poderes entre o Legislativo, o Executivo e o Judiciário quase era inexistente. Aliás, a própria CRPM/1975 já deixava claro este propósito. Todas as posições de poder eram dirigidas e controladas pela FRELIMO:

A República Popular de Moçambique é orientada pela linha política definida pela FRELIMO, que é a força dirigente do Estado e da Sociedade. A FRELIMO traça a orientação política básica do Estado e dirige e supervisiona a ação dos órgãos estatais a fim de assegurar a conformidade da política do Estado com os interesses do povo (Art. 3 da CRPM/1975).

Todos os níveis de tribunais existentes subordinavam-se à autoridade da Assembleia Popular, a qual prestava contas. A Assembleia Popular era definida como órgão supremo do Estado e o mais alto órgão legislativo da República Popular de Moçambique (art. 37 da CRPM/1975). Este órgão era convocado e presidido pelo presidente da República, que não só era chefe do Estado, como também presidente da FRELIMO.

Além disso, a direção do sistema judicial estava à tutela do Ministério da Justiça, que detinha competências de nomear, exonerar, transferir e do poder disciplinar sobre os

magistrados judiciais e do Ministério Público (art. 49.º do Diploma Ministerial n.º 14/85, de 24 de abril). Neste período, o Ministério da Justiça (MJ) atinha tarefas diretamente ligadas à organização da função judicial, já que o funcionamento dos tribunais, da PGR e da Polícia Judiciária e de outros setores afins estava na dependência orgânica do MJ. Pois, o artigo 14 do Decreto nº 1/75, de 27 de julho, estabelecia de forma clara que constituíam tarefas principais do MJ, de entre outras, a de assegurar o normal funcionamento dos tribunais; superintender as atividades da Procuradoria-Geral da República e supervisionar a atuação da Polícia Judiciária. Igualmente, cabia e ainda cabe até hoje ao governo, através do Ministério da Justiça, a formação de magistrados judiciais, oficiais de justiça e demais funcionários dos tribunais, do Ministério Público e dos profissionais do setor da justiça em geral, através do Centro de Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ), uma instituição subordinada ao Ministério da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos (MJCR). Isso mostra que os poderes não estavam separados, mas sim concentrados nas mãos do Poder Executivo, uma clara inexistência de separação de poderes do Estado e independência do setor judiciário.

Outro ponto importante a realçar, é que nesta altura havia poucos moçambicanos formados em Direito. E, segundo Rui Baltazar dos Santos Alves (Memorando, 2017), com a total escassez de juristas, a maior parte dos tribunais provinciais acabou sendo dirigida por moçambicanos sem qualificações jurídicas (desde médicos até outros funcionários menos qualificados), que exerciam as atividades o melhor que podiam, com a ajuda de funcionários judiciais. Foi já na fase final do mandato do ministro da Justiça, Rui Baltazar dos Santos Alves, em 1978, que começou a colocação dos primeiros jovens juristas moçambicanos nos tribunais provinciais.

Na vigência da Constituição de 1975, que instituía um regime monopartidário em Moçambique, houve uma longa história de submissão do setor da justiça e dos magistrados ao poder político, sob liderança do partido único – a Frelimo. Essa sujeição passava largamente pelo controle do recrutamento e de fiscalização das atividades dos profissionais do campo da justiça. Conforme o plasmado no artigo 3º do Decreto Presidencial n.º 69/83 de 29 de dezembro, competia ao Ministério da Justiça (MJ), nomear, exonerar, disciplinar os magistrados judiciais (juízes) e do MP (procuradores). Igualmente, era atribuído ao MJ o poder de definir os critérios de recrutamento e de seleção dos candidatos à magistratura judicial e do MP e, dos funcionários do setor judiciário; de definir as regras e os procedimentos para a eleição dos juízes eleitos (leigos ou não profissionais); de organização e superintendência do sistema de administração da justiça, através dos tribunais e da PGR.

No domínio da atividade judicial, competia ao MJ implementar a estratégia de criação do Tribunal Popular Supremo e, estabelecer as regras e critérios adequados para a extensão dos tribunais populares dos diferentes escalões em todo o país. E, no domínio da fiscalização da legalidade, o MJ tinha a função essencial de instalar a Procuradoria-Geral da República e controlar o seu funcionamento.

Todos esses fatos representaram o exemplo claro de subordinação histórica do Poder Judiciário aos poderes políticos, ao longo da vigência da Constituição de 1975. Conforme apontam os trabalhos de Open Society Initiative for Southern Africa (2006) e Cistac (2008), os juízes e os procuradores tiveram um poder pouco diminuto, já que tanto as nomeações destes juristas, assim como a gestão orçamentária do Poder Judiciário sempre estevem dependentes da elite política (Poder Executivo e Legislativo).

A Constituição de 1975 sofreu seis alterações pontuais ao longo da sua vigência: em 197614, em 197715, em 197816, em 198217, em 198418 e em 198619. O destaque destas alterações vai para a terceira revisão, concretizada pela Lei n.º 11/78, de 15 de agosto, que alterou a forma de organização e estrutura dos órgãos do Estado. Em função disso, o Comité Central da Frelimo perdeu a sua competência de poder alterar a Constituição, como já havia feito na primeira e segunda alteração constitucional (1976 e 1977). Nesta mesma revisão constitucional, o Conselho de Ministros foi também retirado a competência de legislador, tendo passado a ser exclusivamente da Assembleia Popular.

Na esteira destas alterações constitucionais foram também aprovadas várias leis e decretos-leis que mudaram o figurino do sistema judiciário moçambicano. O realce vai para a aprovação da Lei n.º 12/78, de 30 de dezembro (Lei da Organização Judiciária), que regulamentou a estrutura e a composição dos tribunais populares. O destaque é também extensivo a criação da Lei n.º 11/79 de 12 de dezembro, que estabelece o Tribunal Superior de Recurso em substituição ao Tribunal da Relação, os tribunais populares provinciais em

14 Resolução (8ª Reunião, 1976) sobre a Justiça do Comité Central da Frelimo, publicada no Boletim da República de Moçambique, n.º 42, I Série, sábado, 10 de abril de 1976. Esta resolução estabelecia de entre outros aspectos, os mecanismos de articulação entre os tribunais e as estruturas políticas e sociais do Estado, sobretudo, a participação de juízes eleitos (juízes leigos eleitos pelas assembleias locais) nos tribunais como auxiliares dos juízes profissionais.

15

2ª Sessão do Comité Central da Frelimo, publicada no Boletim da República de Moçambique, n.º 100, I Série, terça-feira, 30 de agosto de 1977.

16 Lei n.º 11/78 de 15 de agosto, publicada no Boletim da República de Moçambique, n.º 97, I Série, terça-feira, 15 de agosto de 1978.

17

Resolução n.º 11/82 de 01 de Setembro, publicada no Boletim da República de Moçambique, n.º 34, I Série, Suplemento de quarta-feira, 01 de Setembro 1982.

18 Lei n.º 1/84 de 27 de abril, publicada no Boletim da República de Moçambique, n.º 17, I Série, Suplemento de sexta-feira, 27 de abril de 1984.

19 Lei n.º 4/86 de 25 de julho, publicada no Boletim da República de Moçambique, n.º 30, I Série, 2º Suplemento, sábado, 26 de julho de 1986.

substituição dos tribunais de comarca, os tribunais populares distritais em substituição dos julgados municipais e os tribunais populares de localidade ou de bairro em substituição dos julgados de paz.

A promulgação do Decreto Presidencial n.º 69/83, de 29 de dezembro, que qualificava o Ministério da Justiça como órgão central do Conselho de Ministros, que incumbia, essencialmente, organizar o sistema judiciário, promovendo a criação de tribunais populares e mantendo o Ministério da Justiça na direção do aparelho judicial, com competências ainda de nomear, exonerar, colocar, transferir juízes, procuradores, de entre outros agentes e funcionários dos tribunais e do Ministério Público, nos diversos escalões, incluindo ao nível do Tribunal Supremo e da Procuradoria-Geral da República.

O realce é extensivo também a entrada em vigor do Tribunal Supremo e a nomeação dos Juízes Conselheiros, em dezembro de 1988; a aprovação da Lei nº 6/89, de 19 de setembro, que elevava a Procuradoria-Geral da República em órgão central do Estado, passando a gozar de autonomia em relação aos demais órgãos do Estado. Esta lei extinguia a subordinação formal do Ministério Público em relação ao Ministério da Justiça, este que deixava de superintender na Procuradoria-Geral da República e nos demais serviços dela dependentes. Tais mudanças tiveram maior consolidação na Constituição de 1990.

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