CAPÍTULO I – CONTEXTO POLÍTICO E INSTITUCIONAL DA GÊNESE E
1.5 Brigadas de justiça e a implementação dos tribunais populares
Como se disse anteriormente, de abril a dezembro de 1978, a maioria de estudantes que concluiu o bacharelato em Direito, em 1977, foi distribuída pelo governo para diferentes áreas do setor da justiça moçambicano (Ministério da Justiça, tribunais e Ministério Público), onde foram juntar-se aos outros moçambicanos que se haviam formado em Portugal e regressados ao país para desempenhar a função jurisdicional (ver Quadro 5). Os tais bacharéis juntaram-se também a alguns portugueses que ainda tinham permanecido no setor da justiça em Moçambique, que acolheram os recém-graduados moçambicanos.
Eram cerca de 20 a 24 bacharéis e licenciados em Direito, organizados em brigadas de justiça, que foram distribuídos nas então dez (10) províncias12 moçambicanas (na altura, a Cidade de Maputo não tinha estatuto de província). Tudo começou em setembro de 1974, com a nomeação do jurista Rui Baltazar dos Santos Alves para o cargo de ministro da Justiça do governo de Transição de Moçambique, função também por ele exercida depois da independência em 1975 até 1978. Após a sua nomeação para ministro da Justiça, Rui Baltazar dos Santos Alves promoveu uma série de reformas radicais no sistema judiciário moçambicano, dando prioridade à nacionalização da justiça, historicamente dominada por juízes, procuradores e advogados brancos portugueses.
De acordo com José Norberto Rodrigues Baptista Carrilho (entrevista, 2017), juiz conselheiro do Tribunal Supremo, depois da independência, o primeiro ministro da Justiça, de Moçambique independente, Rui Baltazar dos Santos Alves, juntamente com outros juristas moçambicanos, como primeira ação revolucionaria, pensaram em estabelecer uma nova organização judiciária, partindo de zero. Esta iniciativa implicou, primeiro, a criação de condições legais que pudessem orientar as ações judiciais. Aqueles juristas elaboraram um anteprojeto de lei da organização judiciária para criação dos tribunais populares13 e do Ministério Público, em todo o país.
Desta forma, os primeiros licenciados e bacharéis em Direito foram organizados em brigadas, a fim de divulgar ao nível das províncias o anteprojeto de lei da organização judiciária, onde se previa a organização e a estrutura dos tribunais judiciais (tribunais populares como se chamavam na altura) e a forma de organização do Ministério Público. Eram denominadas brigadas de Justiça Popular, porque naquela altura havia já uma proposta
12 Atualmente são onze (11) províncias. 13
―Os tribunais populares eram tribunais do governo e tinham a consagração na constituição. Tinham as suas regras de funcionamento. Não se deve pensar que eram diferentes dos tribunais atuais. A filosofia, os princípios até podiam ser diferentes, tendo em conta a orientação política vigente naquele momento, mas eram tribunais que obedeciam aos princípios básicos de um tribunal, de um órgão judicial, simplesmente a característica principal que tinham era a participação dos Juízes Eleitos, figuras que até hoje existem, mas nessa altura tinham muita força. Na altura ia buscar-se pessoas da comunidade, eleitas pelas assembleias locais, para representarem o povo nos tribunais populares‖ (Sinai Josefa Nhatitima, Entrevista com HENRIQUES, 2013).
para a submissão à Assembleia Popular, sobre a organização judiciária no país. Nesta proposta de lei, previam-se os tribunais populares que haviam sido criados em Moçambique.
As brigadas tinham a composição de três elementos cada, sendo dois juristas e um funcionário do Ministério da Justiça sem formação em Direito. Assim, foram formadas 10 brigadas, com a missão exclusiva de divulgar e discutir com o povo, como é que a justiça seria organizada no país. Portanto, tiveram a missão de divulgar a lei, discuti-la ao nível de todo o país em reuniões populares, recolha das contribuições que posteriormente, foram remetidas ao Ministério da Justiça, que por sua vez submeteu à Assembleia Popular, mais tarde aprovada em 2 de dezembro de 1978 (Lei n.º 12/78, de 2 de dezembro).
De acordo com Sinai Nhatitima, o primeiro jurista moçambicano a ocupar o cargo de vice-procurador-geral da República e o segundo procurador-geral da República na história de Moçambique independente, não foi somente a tarefa de divulgar o anteprojeto de lei da organização judicial, como também:
[...] foi, para mim, um momento de muita aprendizagem; foi interessante, não era apenas divulgar, era também dialogar com a população, ouvir as suas contribuições. Percorremos distritos, as populações tiveram a oportunidade de dizer o que este projeto de lei podia melhorar neste e outro aspecto. Fazíamos a recolha da informação e no fim compilávamos. Oito meses depois regressamos a Maputo e realizou-se uma conferência nacional para o estudo das contribuições harmonizadas. Só depois desse trabalho é que ingressamos na magistratura (NHATITIMA, In: O País).
Conforme José Norberto Rodrigues Baptista Carrilho (Entrevista, 2017), quanto à composição e distribuição das brigadas de implantação dos tribunais populares, os grupos foram constituídos pelos seguintes juristas, por província, como mostra o quadro seguinte (Quadro 7):
Quadro 7 - Composição e distribuição das brigadas de implantação dos tribunais populares
BRIGADAS JURISTAS
Niassa João Carlos Loureiro do Nascimento de Almeida Trindade (chefe da brigada) e Joaquim Luís Madeira.
Nampula Luís Filipe Sacramento, Lúcia Buinga Maximiano do Amaral e Teodato Mondim da Silva Hunguana.
Zambézia Ozias Pondja e Agostinho Ganhane. Tete Conceição Quadros e Albano Maiobwe. Manica Ussumane Aly Dauto e Fernando Cunha.
Sofala José Norberto Rodrigues Baptista Carrilho (chefe da brigada), José Ibraimo e Victorino Mahumane.
Inhambane Cláudio Nhandava e Sinai Josefa Nhatitima. Gaza Abdul Carimo Mahomed, Alberto Nkutumula (pai).
Maputo Aires de Amaral, Laura Rodrigues, Gita Honwana, Caetano de Souza. Fonte: Elaboração própria com base em dados da pesquisa.
De acordo com Lúcia Buinga Maximiano do Amaral (entrevista, 2017), terminado este processo, o ministro da Justiça, Rui Baltazar dos Santos Alves, nomeou aqueles bacharéis e licenciados, uns para juízes, outros para procuradores e outros ainda como escrivães de Direito. Abdul Carimo Mahomed, Joaquim Luís Madeira, Hermenegildo Maria Cepeda Gamito, entre outros bacharéis e licenciados em Direito, foram colocados na magistratura judicial. Enquanto que, Lúcia Buinga Maximiano do Amaral, José Norberto Rodrigues Baptista Carrilho, Sinai Josefa Nhatitima, Mário Fumo Bartolomeu Mangaze, Ozias Pondja, António Paulo Namburete, etc., foram nomeados magistrados do Ministério Público, na altura, designados de delegados de procurador-geral da República. Contudo, em pouco tempo de trabalho, muitos acabaram de trocar de magistratura, a maioria saindo do Ministério Público para a magistratura judicial (juízes).
Naquela altura, tal como em Portugal e outros países lusófonos, as instituições da administração da justiça estavam à tutela do Ministério da Justiça. Era o ministro da Justiça que procedia, a admissão, transferência e a movimentação de todos os quadros do setor da justiça. Assim foi o ministro da Justiça, na altura Rui Baltazar dos Santos Alves, mais tarde nomeado ministro das Finanças, que iniciou o processo de implantação do sistema de justiça no país, tendo como sucessor o jurista Teodato Mondim da Silva Hunguana, que deu continuidade a construção do sistema judicial em Moçambique.
Assim, de abril a dezembro de 1978, estes foram parte do primeiro grupo de magistrados que tiveram a missão de divulgar o anteprojeto da Lei de Organização Judiciária e implementação dos primeiros tribunais populares. Ainda em 1978, o projeto foi submetido à Assembleia Popular, tendo sido aprovado e, constituída a primeira Lei Orgânica dos tribunais populares de Moçambique independente – Lei nº 12/78, de 2 dezembro – Lei da Organização Judiciária. Esta Lei marcava o início da edificação de um sistema de administração da justiça em Moçambique livre do colonialismo português. Nesta Lei, foram estabelecidos tribunais
populares em diferentes escalões territoriais, onde juízes profissionais trabalhavam ao lado de juízes eleitos pela população.
Deste modo, foi com o regresso de alguns estudantes moçambicanos, que vieram de Portugal e, com os primeiros bacharelados e licenciados da Faculdade de Direito da UEM, que foi possível, em Moçambique independente, começar a organizar os tribunais ao nível provincial e distrital. Antes, a justiça era assegurada, na maior parte dos casos, pelos magistrados portugueses (advogados portugueses) e por um número insignificante de juristas moçambicanos, que já tinham se formado em Portugal. Estes constituíram figuras de destaques no primeiro período do sistema judicial de Moçambique pós-independente (1975 à 1978), que foram responsáveis pelo estabelecimento das bases para a implementação do Poder Judiciário (lecionação das aulas e criação de anteprojeto judicial).
Assim foi nascendo o sistema judicial em Moçambique pós-independente, como um sistema jurídico democrático e popular, contrariamente ao sistema elitista e colonial, que vinha vigorando no país sob administração do governo colonial português. Segundo José Norberto Rodrigues Baptista Carrilho (entrevista, 2017), o sistema judicial de Moçambique teve como pioneiros - entre outros que a fonte entrevistada já não se lembrava - os seguintes moçambicanos, como mostra o quadro seguinte (Quadro 8).
Quadro 8 – Os primeiros integrantes da justiça em Moçambique
01 Abdul Carimo Mahomed Issá Diretor da Unidade Técnica de Reforma Legal
02 Abel David
03 Afonso Antunes Vice-presidente do TS e do CSMJ
04 Afonso Fortes
05 Agostinho Ganhane
06 Aires do Amaral
07 Albano Maiogue
08 Alberto Nkutumula (pai)
09 Alberto Zandamela
10 Albino Massangai
11 Ângelo de Amaral
12 Augusto da Silva Hunguana
13 Caetano Sousa
14 Carlos Raposo Pereira
15 Cláudio Nhandava
16 Conceição Quadros
17 Domingos Mascarenhas António Arouca Membro do Conselho Superior da Magistratura Judicial
18 Fernando Cunha
19 Gita Honwana
20 José Ibraimo Abudo Provedor de Justiça.
21 Idalina David
22 Isabel Tiago
23 João Carlos Loureiro do N. A. Trindade Juiz Conselheiro do Conselho Constitucional
24 João Carrilho
25 João Manuel Martins
26 Joaquim Luís Madeira Procurador-geral da República, Juiz Conselheiro do TS.
27 Jorge da Graça
28 Jorge Ribeiro
29 José Ibraimo
30 José Manuel Caldeira
31 José Nhamussua
32 José Norberto Rodrigues Baptista Carrilho Vice-presidente do TS e do CSMJ.
33 Laura Rodrigues
34 Lúcia Fernanda B. Maximiano do Amaral Juíza Conselheira do CC, procuradora-geral adjunta.
35 Lúcia da Luz Ribeiro Juíza Conselheira do CC.
36 Lucinda da Cruz
37 Luís Filipe de Castel-Branco Sacramento Vice-presidente do TS e do CSMJ
38 Machatine Mumbambe Presidente do Tribunal Administrativo.
39 Mário Fumo Bartolomeu Mangaze Presidente do Tribunal Supremo
40 Melchior Manuel
41 Orlando António da Graça Juiz Conselheiro do CC
42 Oscar Monteiro
43 Ozias Pondja Juiz Conselheiro do CC e do Tribunal Supremo
44 Rui Baltazar dos Santos Alves Presidente do Conselho Constitucional
45 Salomão Langa
46 Sinai Josefa Nhatitima Procurador-geral da República
47 Teodato Mondim da Silva Hunguana Juiz Conselheiro do Conselho Constitucional
48 Ussumane Aly Dauto
49 Victor Manuel L. P. Raposo Serraventoso Juiz-presidente do Tribunal Superior de Recurso
50 Victorino Francisco Mahumane
Mais adiante se aborda em detalhe o perfil social, acadêmico e profissional de algumas destas elites pioneiras na construção do novo sistema judiciário moçambicano, edificado depois da independência.
Até aqui, se pode perceber, pelos menos em linhas gerais, como foi o processo de importação de modelos políticos, institucionais e ideológicos, conforme atestam os estudos de pesquisadores que se dedicaram ao tema da importação de modelos institucionais para os países periféricos (BADIE e HERMET, 1993; DEZALAY e GARTH, 2000). Os dois juristas pioneiros e dirigentes do Ministério da Justiça em Moçambique foram formados em Portugal. Os países semiperiféricos caracterizam-se por importar modelos institucionais, como resultado do ―sistema internacional‖ e de atores políticos implantadores dos poderes do Estado, que tenham um capital político internacional herdado no estrangeiro.