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I. 1.1 1.Literatura Tradicional de Transmissão Oral

II.1. A adopção e o superior interesse da criança

A adopção é uma questão relativa ao amor, à essência da vida, à intimidade mais profunda do ser (Rodrigues 1994:159).

A adopção mobiliza sentimentos e emoções profundas, suscitando interesse a muitas pessoas, ou porque foram adoptadas, ou porque fazem parte de uma família onde há casos de adopção, ou ainda por conhecerem alguém que foi adoptado ou que adoptou. Actualmente, é um assunto que tem sido muito explorado pelos media. Gera sentimentos fortes, e cuja prática

origina fortes críticas, mais emotivas que racionais, não sendo também alheia a questão a interesses políticos. Trata-se, pois, de uma problemática actual quer quanto ao interesse público, quer ao nível da investigação, tanto no intuito de melhorar as práticas da adopção, como no âmbito da psicologia do desenvolvimento, no estudo das crianças privadas precocemente de uma relação privilegiada com a (s) figura (s) parentais.

Embora hoje em dia seja um tema plenamente aceite, este revela-se extremamente complexo. Em primeiro lugar, parece-nos fundamental clarificar o conceito de adopção. A adopção na sua definição legal é o “vínculo que à semelhança da filiação natural, mas independentemente dos laços de sangue, se estabelece entre duas pessoas, nos termos da lei” (art.º 1586.ª do código civil 2009: 429). Segundo João Diniz, a adopção consiste na

inserção de uma criança num ambiente familiar, de forma definitiva e com aquisição de um vínculo jurídico próprio da filiação, de acordo com as normas legais em vigor, de uma criança cujos pais morreram ou são desconhecidos; ou, não sendo esse o caso, não podem ou não querem assumir o desempenho das suas funções parentais; ou são pela autoridade competente considerados indignos para tal (Diniz 2004:113).

No regime jurídico da adopção, disponível no portal do governo, podemos ler que,

a adopção constitui o instituto que visa proporcionar às crianças desprovidas de meio familiar o desenvolvimento pleno e harmonioso da sua personalidade num ambiente de amor e compreensão, através da sua integração numa nova família. Quando a família biológica é ausente ou apresenta disfuncionalidades que comprometem o estabelecimento de uma relação afectiva gratificante e securizante com a criança, impõe a Constituição que se salvaguarde o superior interesse da criança, particularmente através da adopção (Conselho de Ministros 2003).

Como fica evidente com as epígrafes supracitadas, a adopção surge como um meio de proteger a criança, permitindo que esta possa ter uma família que lhe possa proporcionar um pleno desenvolvimento, ficando consagrado que esta “só é legítima se for feita no interesse da criança” (Amaro s/d:8). Esta concepção de adopção encontra-se também plasmada num vasto quadro legal que visa consagrar os direitos da criança, do qual podemos destacar a Declaração dos Direitos da Criança, adoptada em 20 de Novembro de 1959, pela Assembleia

Geral das Nações Unidas e a Convenção dos Direitos da Criança, aprovada pela O.N.U., em 1989, e ratificada em Portugal, em 21 de Setembro 1990.

Porém, esta problemática não foi encarada sempre da mesma forma, como aliás fica perceptível pelas datas “recentes” da legislação referida. Como afirma Almiro Rodrigues, “a despromoção, o esquecimento e, mesmo, a opressão das crianças têm raízes fundas e antigas” (Rodrigues 1994:156). Como podemos confirmar com as palavras de Eduardo Sá, na Antiguidade,

o infanticídio era prática corrente não sendo nem pública nem legalmente condenado, e praticado por questões e propósitos tão diversos como o controlo da natalidade, ou a eliminação de filhos ilegítimos, de recém - nascidos prematuros, ou de crianças com malformações. Também, as crenças religiosas podiam implicar o sacrifício de crianças, que era, nessas circunstâncias tolerado e, até exaltado (Sá 2008:9).

Como ficou também explícito no ponto referente à evolução da literatura para a infância, a representação das crianças na sociedade era pouco importante, não passando de adultos em ponto pequeno. Essencialmente, até ao aos finais do século XIII, não existia consciência da infância. A duração da mesma era assim reduzida a um período de maior fragilidade, pois assim que a criança tivesse condições para prescindir da mãe ou da sua ama, integrava-se no mundo dos adultos, “partilhando os seus trabalhos e os seus divertimentos” (Ariès s/d:10). O mesmo autor, Philippe Ariès, que analisa a representação das crianças na arte dessa altura nota que, nas obras artísticas onde a criança é retratada, esta surge com o corpo deformado, por forma a assemelhar-se a um adulto, sendo a única característica que os distinguia a reprodução numa escala mais reduzida, ou seja, não surgia um modelo de um retrato de uma criança real (Ariès 1981:50-51). Inclusive as crianças eram vestidas como adultos: “os pobres vestiam-na com roupas usadas ou trapos, enquanto as classes abastadas usavam roupas de adulto, feitas à sua medida” (Sá 2008:11). A partir deste período, surge lentamente a iconografia da criança, intimamente ligada à imagem do menino Jesus, o que denotava uma progressiva sentimentalização da ideia de infância (Ariès 1981:53).

Contudo, o sentimento de amor pela criança enquanto ser diferente de um adulto é muito mais precoce do que seria de esperar, dadas as condições demográficas adversas que se viviam. Para isso, Ariès encontra exemplo novamente na arte, no retrato da criança morta, inicialmente representada “sobre o túmulo de seus pais”. O autor considera esta prática um

marco para a história dos sentimentos (Ariès s/d:67). Também nesta perspectiva torna-se relevante o alerta de Martine Segalen para a ideia errada de que a criança não era amada na Idade Média, pois a “sua sobrevivência e a sua morte não eram encaradas com indiferença”, apesar do conceito de infância ser irrelevante nesse momento histórico (Segalen 1999:174).

A partir de um período, que pudemos situar no século XVII, surgem novos métodos de cuidar e educar as crianças, essencialmente tendo em conta o interesse psicológico e a preocupação moral “tentava-se penetrar na mentalidade infantil para melhor adaptarem ao seu nível aos métodos de educação” (Ariès s/d: 190). Assiste-se assim a um aflorar de uma nova mentalidade em que “ não apenas o futuro da criança, mas também sua simples presença e existência eram dignas de preocupação – a criança havia assumido um lugar central dentro da família” (Ariès 1981:164). Porém, é sobretudo no século XX, apelidado por Ellen Key como “século das crianças” (Key apud Rodrigues 1994:156), que se operam grandes mudanças para “um moderno desenvolvimento infantil” (Rodrigues 1994:156). Béatrice Copper-Royer partilha da mesma ideia, quando afirma: “é indubitável que o século XX se caracterizou por uma preocupação, até então sem precedentes: proporcionar a melhor educação e o melhor bem-estar possível às crianças” (Copper-Royer 2008:11).

Sem dúvida que a criança necessita “desde o nascimento e especialmente na primeira infância, de uma relação minimamente equilibrada com ambos os pais” (Rodrigues 1994:156). Se isto não for possível, cria-se uma situação de risco para a criança, sendo necessária uma relação substitutiva, primariamente dentro da própria família, com outros parentes e, se estes não existirem, caberá à sociedade encontrar com urgência uma solução. Assim, a adopção surge como um dos mais relevantes recursos na resposta à criança desprovida de meio familiar normal (Preâmbulo do Decreto – Lei nº 185/93, de 22 de Maio).

No entanto, da mesma forma que até então a infância não era reconhecida, o tema da adopção também nunca tinha tido muita importância na sociedade portuguesa, estando muito tempo ignorado das leis portuguesas. Como tal, à criança não lhe eram consagrados direitos específicos, utilizando-se o chamado Direito comum, ou seja, não havia distinções entre adultos e crianças quanto a penalizações. Antes da Carta Régia, que responsabilizou a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa pelo cuidado das crianças desprotegidas, a legislação era esparsa e escassa. Esta consagrava apenas a tarefa de recolher as crianças abandonadas num mecanismo a que se chamou “Roda das Expostas” ou dos “Enjeitados”. As crianças enjeitadas ou fruto de ligações “inconvenientes” eram colocadas nessa roda, que ficava junto às portarias dos conventos (Sá 2008:12). Em 1867, é publicado o Código Civil, que ficou conhecido como

Código de Seabra, no qual a adopção não foi contemplada (Diniz 2004:12). Sobretudo após as guerras mundiais, as quais fizeram um grande número de órfãos, é que, lentamente, foram introduzindo a adopção na legislação, ressurgindo como uma forma de dar resposta ao grande número de crianças que tinham ficado sem família (Amaro 1992:7).

Em Portugal, à semelhança do que aconteceu na maioria dos países da Europa Ocidental, de 1965 a 1975, as leis que regulam o casamento, o divórcio, a filiação, a autoridade parental, vão ser profundamente alteradas (Sullerot 1997:85-86). Uma das inovações do actual Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de Novembro de 1966, foi o reconhecimento da adopção como fonte de relações jurídicas familiares, retomando-se, assim, uma tradição do nosso direito que o Código de Seabra havia interrompido (Preâmbulo do Decreto – Lei nº 185/93, de 22 de Maio).

Essencialmente após o 25 de Abril de 1974, o Direito da Família, em geral, é alvo de profundas alterações. A adopção passa a ser vista, cada vez mais, como um instrumento de protecção da criança e cada vez menos como um acto de caridade ou misericórdia (Sullerot 1997:88). É nesta altura que, constitucionalmente deixa de existir distinção entre filhos legítimos e ilegítimos: “ a criança adoptada tem os mesmos direitos e as mesmas obrigações que o filho legítimo” (Idem,87). Com o decorrer dos anos e as transformações sociais ocorridas, houve necessidade de proceder a revisões no regime da adopção. Em Maio de 1993, dá-se a grande reforma na lei da adopção, com o Decreto-Lei nº 185/93, de 22 de Maio. Posteriormente, foram feitas novas alterações legislativas, sendo a Lei n.º 31/2003de 22 de Agosto e a Lei nº 28/2007, de 02 de Agosto, as mais recentes. Estas constantes alterações surgem na sequência da enorme visibilidade pública que a adopção tem tido nos últimos anos, do grande número de crianças institucionalizadas e do crescente número de candidatos a adoptantes, que esperam cada vez mais anos para verem concretizado o seu desejo e a sua pretensão. Na opinião de Maria Clara Sottomayor, a nova lei parece ter sido um passo em frente na protecção das crianças em perigo, sendo que a

adopção visa realizar o superior interesse da criança(...) algo que já estava subjacente ao espírito do anterior regime jurídico da adopção, mas cuja consagração nas normas do código civil tem um importante valor simbólico susceptível de fornecer orientações concretas ao intérprete e, de o vincular a uma concepção da adopção como um instituto centrado nos interesses da

A mesma autora defende ainda que, também na equiparação da filiação biológica com a filiação afectiva, houve uma evolução, valorizando-se mais as crianças como pessoas e respeitando “as suas relações afectivas”, e sendo estas “o centro do instituto da adopção”. (Idem,89)

Actualmente “entende-se que a criança já é um cidadão de plenos direitos, ao ponto de se pretender até escutá-la na tomada de decisões jurídico-legais atinentes ao futuro da sua vida (como, por exemplo, em processos de divórcio) ” (Sá 2008:14).

Por fim, ficamos com as palavras de Béatrice Copper-Royer:

é necessário defender a ideia de que a criança é uma pessoa, mas uma pessoa em crescimento(...) É uma pessoa com desejos e necessidades específicas que convém respeitar para que ela se desenvolva e se torne num adulto feliz por sê-lo (Copper-Royer 2008:12 e 147, respectivamente).