I. 1.1 1.Literatura Tradicional de Transmissão Oral
II.4. Os contos em análise
II.4.1. Análise dos Contos Tradicionais
II.4.1.4. Os sapatinhos encantados
Este conto de Adolfo Coelho inicia com a tão usada expressão inicial Era uma vez, remetendo a acção para um tempo incapaz de se situar e para um mundo maravilhoso. Aliás, em toda a narrativa, prevalece essa impossibilidade de nos situarmos temporalmente. Temos, no entanto, algumas expressões que nos permitem ter noção de que o tempo passa: “Dai por diante…”; “Ela foi indo…” (Coelho 1879).
Também, neste conto, o tempo da história não é o mesmo que o tempo do discurso, à excepção dos momentos em que as personagens intervêm activamente através do diálogo. O narrador condensa momentos menos relevantes, destacando os mais importantes para a economia da narrativa, servindo-se para isso de sumários e elipses.
Destinador: Rainha
orgulhosa, homem casamento com o Objecto: príncipe Destinatário: menina Adjuvantes: Criados, Homem, guarda, rainha Sujeito: Menina/princesa Oponente: Rainha orgulhosa
É uma narrativa que contempla pouca descrição. O narrador aposta sobretudo na narração e no diálogo que, como afirma Massaud Moisés, irá permitir o desenrolar da acção: “o diálogo é o mais importante dos conflitos, sem diálogo não há discórdia, e sem isso não há conflito, nem acção. Os diálogos constituem a base expressiva do conto” (Moisés 1982: 28).
Ao longo da história, o narrador, assinala a mudança de discurso, introduzindo indicadores grafémicos (dois pontos, aspas): “ «Ainda agora ali vi uma mulher mais bonita…» ”; “ «Você, como anda por muitas terras…» ” (Coelho 1879). Assim, nas diversas intervenções das personagens, o narrador utiliza o discurso directo, permitindo que estas assumam o estatuto de sujeito da enunciação (Reis; Lopes 2007:319). Tal como nos outros contos analisados, apresenta-se como não participante da acção, narrando-a em terceira pessoa. Porém, conhece os seus pormenores, utilizando expressões valorativas. Daí, podermos considerar que a sua perspectiva ou focalização é omnisciente.
No que respeita aos espaços, permanece a indeterminação. São pouco descritos, permitindo que o leitor/ouvinte sonhe e desenvolva o seu imaginário. Temos referência a uma estalagem, um monte, uma serra, uma casa. Contudo, todos estes espaços assumem um carácter universal e, em nenhum instante, nos conseguimos situar concretamente.
Verificamos que o conto é apetrechado com um número reduzido de personagens, sendo na sua totalidade planas (Reis; Lopes 2007:322), sem nomes e sem densidade psicológica, facilitando a identificação projectiva do leitor/ouvinte.A protagonista deste conto é a rapariga. Caracteriza-se pela ausência de nome próprio e apenas sabemos que era bonita, motivo pelo qual era rejeitada pela mãe: “tinha uma filha mais bonita do que ela e tinha-a fechada” (Coelho 1987). Com o fluir da acção, também podemos depreender que seria trabalhadora, pois, mal chega a casa dos ladrões faz a ceia.
A mãe da rapariga aparece referenciada como “mulher bonita”, indiciando-nos logo à partida um dos seus aspectos físicos. Pela sua prestação ao longo do conto, temos a noção de que é cruel e egoísta, condição que mantém do início ao fim da história.
Em relação à velha, é uma personagem tipificada. O estatuto de que é detentora – velha – é sinal de sabedoria e grande experiência (Chevalier; Gheerbrant 1982: 679). Durante a diegese, não age por decisão própria, mas sim motivada pela “mulher bonita”.
Os ladrões por sua vez, surgem como uma personagem colectiva, não havendo alusão ao seu número e nunca aparecendo de forma individualizada. É patente a falta de caracterização, contudo, podemos inferir que eram bons, pois acarinharam a rapariga como se
da família se tratasse: “eles estimavam-na muito e tratavam-na”; “meus irmãos dão-me quantos sapatos eu quiser”; “lastimaram muito a morte dela” (Coelho 1987).
Os criados são apenas caracterizados pelo seu papel social e pelo seu número – dois – , símbolo de “dualismo, que tanto pode ser de ódio como de amor” (Chevalier; Gheerbrant 1982: 270).
Em relação ao filho do rei, apenas aparece no final e, é aquele que impulsiona o desenlace do conto.
Resta analisar este conto na perspectiva da acção. É perceptível que se trata de uma narrativa com uma estrutura actancial pautada pela simplicidade e pela linearidade.
Começando pela enunciação das funções, segundo a proposta de Propp (Propp 2000: 65-110), verificamos que o início deste se caracteriza por uma situação de falta de amor materno - ao ser rejeitada pela mãe por ser mais bela que ela - , seguido de uma interdição, ao estar proibida de sair: “tinha-a fechada para ninguém a ver” (Coelho 1987). Mesmo assim, a rapariga põe-se à janela, surgindo a transgressão.
Após a primeira informação, esta dada pelo almocreve, desponta a primeira tentativa de prejudicar o herói: a “mulher bonita” manda matar a filha. Assim, é chegado o momento em que o herói decide agir (inicio da função contrária) pedindo que não a matem, pois não voltaria a casa. Os criados deixam-na partir, cumprindo-se o primeiro socorro.
Depois desta situação, verifica-se a partida do herói: “Ela foi indo e chegou a uma serra” (Coelho 1987). Chegando a casa dos ladrões, estes acolhem-na (segundo socorro) e tratam-na como se fosse irmã.
Surge a segunda informação, dada pela velha à mãe da rapariga, seguida de uma tentativa para prejudicar o herói. Recebe o objecto mágico – os sapatos – , os quais inicialmente recusa, mas que acaba por aceitar, caindo morta após os calçar. Surge o terceiro socorro, o filho do rei, que lhe tira os sapatos fazendo-a regressar à vida.
O casamento da rapariga com o filho do rei é a recompensa do herói. Constatamos que o esquema canónico dos contos tradicionais é cumprido: a situação de falta inicial é reparada. A rapariga passa por um processo de amadurecimento, ascende socialmente e obtém o amor do marido.
As palavras finais reenviam para um tipo de narrativa aberta: “foram, visitar a bêbada da mãe e esta ainda depois mesmo a queria mandar matar, mas não conseguiu” (Coelho 1987). Este desenlace leva-nos a supor que, daí em diante, tudo correrá bem. No entanto, o autor não recorre à expressão típica: E viveram felizes para sempre.
Atendendo agora à dinâmica da narrativa, na linha de Larivaille, Cristina Macário Lopes divide-a em cinco momentos. Assim, neste conto, o estado inicial corresponde ao momento em que a mãe rejeita e esconde a filha por esta ser mais bonita. Apesar disso, a rapariga põe-se à janela e é vista por um almocreve. Este irá dizer à mãe que viu uma rapariga mais bela que ela, incitando a perturbação. A transformaçãodiz respeito ao momento em que a mãe, para resolver a situação, manda matar a filha, provocando a partida do herói. A resolução pode coadunar-se com o momento em que a rapariga calça os sapatos e cai morta. Este acontecimento irá desencadear o estado final de equilíbrio restaurado, com o casamento do herói.
Para concluir esta análise, resta dizer que o esquema actancial é simples, marcado pelo sincretismo, como podemos observar no esquema seguinte:
A rapariga assume-se como o herói deste conto, cujo objecto da missão passa pelo seu casamento com o filho do rei.
É a “mulher bonita” que desencadeia toda a acção (destinador), ao mandar matar a sua filha. Com o desenrolar da narrativa, esta personagem assume também o papel de oponente. Após uma primeira tentativa falhada, tentará matar de novo a rapariga, desta vez, com a ajuda da “velha”. Esta personagem assume uma função importante no conto, pois é ela que leva os sapatos à rapariga e consegue convencê-la a calçá-los. Como adjuvantes destacam-se os criados, que não cumprem a ordem dada pela “mulher bonita” e deixam partir a rapariga, e os ladrões, que a acolhem. Estes últimos irão contribuir para o desenlace final ao levarem-na “à serra de tal banda” (Coelho 1987), onde o filho do rei a veria.
Destinador:
Mulher bonita Objecto: Casamento com o filho do rei Destinatário: Rapariga
Adjuvantes:
Criados, ladrões. Sujeito: Rapariga
Oponentes:
mulher bonita, velha