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I. 1.1 1.Literatura Tradicional de Transmissão Oral

I.2. A criança e o conto

I.2.2. O valor pedagógico do conto

O conto infantil é uma chave mágica que abre as portas da inteligência e da sensibilidade da criança, para a sua formação integral (Carvalho 1989:18).

Desde a mais tenra idade, a criança toma contacto com diversos textos orais e, embora estes sejam considerados por muitos autores como não sendo textos literários, problemática que já abordamos em tópicos anteriores, a verdade é que é nos primeiros anos de vida que se operam as principais aquisições para a formação do indivíduo. Como afirma Bárbara Carvalho, “a infância constitui uma fase especial de evolução e formação” (Carvalho 1989:18).

As rimas, as canções de embalar, as lengalengas surgem como estímulo à criança para iniciar a pronúncia das palavras e acompanham -na no seu crescimento tendo, uma função específica, de acordo com a fase etária em que se encontrem (Parafita 2002:208). Defendendo também esta perspectiva, Maria Emília Traça afirma: “palavras, ideias, sonhos, as descobertas feitas nas primeiras canções de embalar, nos primeiros contos, vão ficar para sempre presentes” (Traça 1992:76). Retomando as palavras da mesma autora, a criança que se encontre “habituada a ouvir contar histórias, a manipular um livro, cresce o desejo de saber o que está escrito no livro, de aprender a ler” (Idem,77). Também Lúcia Goés defende que todas as crianças deveriam “livremente ter acesso ao brincar, ao sonhar, quer pelo seu imaginário quer por todas as suas formas, em especial o pleno acesso ao livro, pois a criança no jogo, no brincar, liberta bem cedo a sua fantasia” (Goés 2002:31-37).

Desta forma, é com este tipo de literatura que o jovem leitor tem o primeiro contacto com a beleza da palavra. Como tal, a família assume um papel preponderante, pois a esta cabe a tarefa de proporcionar os primeiros contactos com o livro e, embora esta não saiba ler, este contacto permitirá motivá-la para o prazer da leitura que surgirá mais tarde, pois contar “bons” contos à crianças “aumenta as hipóteses de as transformar em “bons leitores” (Traça 1992:116).

Os laços afectivos que ligam pais e filhos são fulcrais para um crescimento saudável dos mais pequenos. Assim, as experiências que a criança tem neste meio terão um grande

peso no sucesso do seu desenvolvimento, pois “é em função dos modelos familiares que a criança cria o seu primeiro estilo de expressão verbal” (Botelho s/d: 35). Os mais novos deverão encontrar na família a segurança, o estímulo, a motivação para que o seu crescimento, enquanto seres em busca de conhecimentos, seja feito de uma forma harmoniosa levando a que os resultados sejam satisfatórios.

Este papel preponderante que assume a família no desenvolvimento da criança é partilhado com a escola, uma vez que é também neste espaço que se trocam experiências e se adquirem conhecimentos, sendo que, os pais juntamente com a escola constituem o principal meio difusor das histórias. Assim, é, pois, fundamental que pais, educadores, professores e todos aqueles que lidam com crianças estejam sensibilizados para os benefícios dos contos para que, dessa forma, se possa tirar o melhor proveito dos mesmos.

Na verdade, a relação entre literatura e escola centra-se exactamente no facto de ambas terem uma natureza formativa, estando votadas para uma actuação dinâmica na formação do receptor ao qual se dirigem (Zilberman 2003:21). Nesta perspectiva, literatura e escola unem- se para proporcionar à criança um crescimento saudável em todas as suas dimensões, com vista à formação de cidadãos conscientes e capazes de enfrentar o mundo exterior.

As histórias narradas são uma óptima forma de chegar aos mais pequenos. Recorrem a uma linguagem que lhes é compreensível, trabalham situações que lhes despertam interesse, espelhadas em personagens que lhes são próximas. Possibilitam inúmeras fantasias, funcionando como estímulo à imaginação, como refere Soromenho:

o conto pode ter uma elevada função pedagógica: para o desenvolvimento da imaginação, da observação e da memória das crianças, além do aumento dos conhecimentos e das experiências” (Soromenho apud Traça 1992:87).

Armindo Mesquita corrobora a afirmação supracitada quando refere que o conto, para “além de divertir a criança e de lhe desenvolver a sua capacidade imaginativa, surge como uma maneira, ainda que disfarçada, de objectivar determinados conhecimentos” (Mesquita 2006:168). Como tal, com estas histórias, a criança pode desenvolver, ao mesmo tempo, as suas habilidades linguísticas e imaginativas, facto que prova a função pedagógica profunda da literatura infantil. Aliás, a este respeito, Maria Leonor Botelho refere que “a literatura infantil alimenta e estimula a imaginação e satisfaz a afectividade e a curiosidade da criança, podendo representar um papel importante no desenvolvimento integral e harmonioso da sua personalidade” (Botelho s/d:33).

Através de textos que recorrem à fantasia, é proporcionada à criança uma visão da realidade envolvente, permitindo que esta reflicta sobre o mundo que a rodeia. A fantasia permite-lhe o derrubar de fronteiras entre o real e o imaginário, sendo que “ o estímulo à imaginação pela narrativa maravilhosa (...) é uma verdadeira pedagogia da criatividade” (Quadros apud Cariello 2002:54-55). Todo este processo é vivido através do imaginário, onde intervêm entidades fantásticas como bruxas, fadas, reis, príncipes, princesas…

O desenvolvimento da imaginação constitui um factor importante no desenvolvimento da criança. Mostrando essa importância Barata-Moura afirma: “sem o sal -sem o «Sol» – de uma imaginação cultivada, não há inteligência criadora que se firme, não há actuação consequente que se afirme; não há amor partilhado que gratifique” (Barata-Moura 2002:25).

A partir do momento em que a criança desperta para o livro2 e para a leitura, num processo que se deseja atento e estimulante, e se sinta motivada, todas as actividades pedagógicas que a literatura infantil possa desencadear são facilitadas. Torna-se assim essencial que se desenvolvam actividades que despertem o gosto pela leitura, pois “sólo aquellos para quienes la lectura estuvo dotada, en una edad temprana, de algunas cualidades visionarias y significado mágico llegarán a ser instruidos” (Cervera s/d:328).

A literatura infantil, e mais concretamente os contos, podem ser utilizados das mais diversas formas e em múltiplas situações, como “as conversas sobre as histórias, as dramatizações, os fantoches, as recitações individuais ou em coro” (Botelho s/d:36), podendo fazer nascer, ou criar, uma ligação muito forte com os livros, a leitura ou até mesmo com a escrita:

Cabe aos pais e aos professores aproveitar ao máximo os interesses espontâneos dos seus educandos, mina que, bem aproveitada, é quase inesgotável. Mas cabe-lhes também organizar o meio educativo de tal forma que novos interesses, julgados convenientes, possam desabrochar (Idem, 49).

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Com o recurso ao conto infantil, a aprendizagem da leitura pode ser estimulada, pois quanto mais a criança estiver motivada para ouvir histórias, quando chegar o momento de aprender a ler sentir-se-á igualmente empenhada, sendo que o desenvolvimento da leitura “resultará em um enriquecimento progressivo no campo dos valores morais, no campo racional, no da cultura e da linguagem” (Goés 1991:28). Também da mesma forma pode ser despoletada a curiosidade pela construção e o respectivo registo de cada história que se cria ou recria pelas próprias crianças.

É, pois, importante que seja feita uma selecção cuidada do material a ser lido, sendo “necessário oferecer à criança um material de leitura que faça apelo ao conjunto da sua personalidade, constituído por textos interessantes e significativos” (Traça1992:119). Aliás Bruno Bettelheim, citado por Juan Cervera, insiste que o que motiva a criança a aprender a ler não é a utilidade da leitura, mas sim “la firme creencia de que saber leer abrirá ante él un mundo de experiencias maravillosas, le permitirá despojarse de su ignorancia, compreender el mundo y ser dueño de su destino” (Bettelheim apud Cervera s/d:328).

Como tal, estes textos devem prender a atenção dos jovens leitores de forma a que possam criar estruturas que lhes permitam ser leitores activos e empenhados, sensibilizados para a necessidade de, a cada passo, realizarem a melhor leitura possível de cada texto, retirando dela proveito para toda a vida. Uma “leitura variada e rica levará ao aprofundamento dos conhecimentos que permitirão melhor apreciação do mundo real e dos valores culturais” (Goés 1991:29). É nesta perspectiva que o espírito crítico se revela deveras importante, já que esta competência lhes fornecerá meios que lhes possibilitarão a reflexão sobre valores sociais e progressivamente atingir autonomia e a liberdade, que levam a um melhor exercício da cidadania e a uma participação mais activa na sociedade.

Por tudo o que foi referenciado, acreditamos que os contos, sejam tradicionais ou modernos, se revelam importantes como veículo de ensinamentos e transmissão de valores. Assim, consideramos que estes devem ser aproveitados para trabalhar com as crianças, pois, uma vez que se encontram a formar a sua personalidade, nada melhor que o recurso a este meio para criar aptidões que lhes possam ser úteis.

Contudo, devemos se cuidadosos para que estes não sejam vistos apenas como uma forma de decifração de conteúdos, pois, nesta fase, a vertente lúdica torna-se essencial para a motivação dos mais jovens. Como já foi referenciado, uma óptima forma será socorrermo-nos da chamada “pedagogia do imaginário”(Mesquita 2002), para que as crianças possam desenvolver a imaginação, a memória e a criatividade e, acima de tudo, compreendam a

realidade envolvente: “afinal, elas afirmam a sua personalidade, imaginado (...) uma personalidade que se (re) constrói num percurso gradual de representações simbólicas, de combinação de imagens, criação de escolhas, apreensão e construção de sentidos, de realidades” (Parafita 2002:9). Eis um propósito, para que possa chegar um dia o momento de dizer como o poeta José Régio:

[...] Só vou por onde

Me levam os meus próprios passos.

[...] Ah! Que ninguém me dê piedosas intenções! Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: “vem por aqui!”

Um dia, a criança descobrirá que se veio ao mundo foi também para desflorar florestas virgens,

e desenhar[seus] próprios pés na areia inexplorada! (José Régio apud Fonseca 2002:85)

Parte II

Os Contos, a Adopção e a

realidade dos afectos

O ser humano é extremamente sensível aos efeitos do meio durante o período da primeira infância, que se caracteriza pela ocorrência de mudanças evolutivas bastante significativas, como ficou claro no ponto precedente. É um dado adquirido da investigação psicológica e educacional que um meio estimulante e enriquecedor é fundamental para favorecer a actualização do potencial de desenvolvimento de toda e qualquer criança. Daí a importância de estruturas familiares sólidas e estáveis, de forma a proporcionar às crianças uma estimulação afectiva, a qual se torna essencial para que se desenvolvam sem dificuldade, podendo a privação destes afectos levar ao que Sptiz denominou “debilidade mental frustacional” (Sptiz apud Silva 1985:174). Nesta perspectiva, “nada melhor do que a literatura infantil para permitir uma aproximação das pessoas e do mundo que as rodeia, enriquecendo-as de cultura, de afectos e de emoções” (Mesquita 2006:16).

A verdade é que são inúmeros os contos que continuam a responder às necessidades das crianças permitindo-lhes colocar em ordem o seu caos interior, sendo “a infância a altura para aprender a transpor a imensa brecha entre as experiências interiores e o mundo real” (Bettelheim 1998:87).

Contudo, e como poderemos confirmar de seguida, a sociedade está em constante mudança. Como consequência, as realidades de outrora são muito díspares das actuais bem como as estruturas familiares em que as crianças estão inseridas.

Não obstante, a literatura infantil acompanha essa evolução e, apesar de por vezes assistirmos como que a uma reinvenção dos contos tradicionais, a verdade é que também há aqueles que, atendendo a novas realidades, tentam abordar temáticas que se enquadram nas sociedades actuais. Mais concretamente, nos contos em estudo que analisaremos no próximo item (II.4), poderemos confirmar esta realidade. Veremos que nos contos tradicionais encontramos várias marcas do quotidiano, em que “o nascimento nobre ou a fortuna andavam lado a lado com a miséria” (Ariès 1981:279), estando claramente representadas as diferentes classes sociais existentes na época. Têm início com uma situação de falta (Propp 2000:144), provocada pela ausência de uma família estável.

Como abordaremos mais adiante, na Antiguidade não existia a noção de infância. A criança desde cedo era afastada dos pais, ingressando na vida dos adultos. Daí ser frequente encontrarmos nos contos a ajuda nas lides, como se de adultos se tratassem, de forma a assegurarem a sua sobrevivência e a da família. Atendendo agora mais em concreto ao tema que nos propusemos, a adopção e a afectividade familiar, nos contos tradicionais infantis é

frequente assistirmos a casos que estão estritamente relacionados com o tema como: a criança abandonada pelos pais verdadeiros, ou roubada, e criada por outros, geralmente de condição inferior (Diniz 2004:125). Porém, como não se pensava na criança como ser portador de direitos - o direito a uma família, ao afecto e à protecção eram situações que não estavam legalizadas - surge aqui talvez a resposta para o facto de estes não surgirem plasmados nos contos infantis tradicionais de uma forma clara e explícita.

Por contraponto, na actualidade a questão dos direitos da criança é um tema que tem vindo a ser explorado pelos nossos autores. Surgem, então, de forma clara as famílias adoptivas, as quais se caracterizam pelos enormes laços afectivos.

Assiste-se assim, cada vez mais, a uma maior preocupação com o bem estar da criança e, como tal, é frequente surgirem obras que permitem que os pequenos leitores tomem contacto com as novas realidades.

Dada a impossibilidade de analisar aqui todos os dados referentes à adopção, devido à sua abrangência, focaremos apenas alguns aspectos essenciais para um melhor enquadramento da problemática. Assim, veremos de que forma os conceitos de família, criança e adopção foram evoluindo ao longo dos tempos, bem como as relações parentais.