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A parentalidade observada na perspectiva das tradições populares e

I. 1.1 1.Literatura Tradicional de Transmissão Oral

II.3. A parentalidade observada na perspectiva das tradições populares e

Procurando o significado do vocábulo parentalidade, nos nossos dicionários, vimos que o mesmo é inexistente, “mas cujo significado se assimila ao de parenthood ou parentalité, ou seja, qualidade parental, maternidade ou paternidade, tem portanto, um sentido mais precioso e específico do que parentesco (qualidade de ser parente, afinidade) ”

(Relvas 2004:83). Do ponto de vista biológico, a maternidade e a paternidade referem-se à qualidade de ser pai e mãe, isto é, à capacidade biológica de se reproduzir. Não obstante, esta não é a condição primordial para os homens e mulheres se tornarem pais de crianças, sendo uma das possibilidades a adopção. Embora os laços de parentesco ainda estejam muito ligados à noção de sangue e de “natural” (Segalen 1999:124), por oposição ao parentesco natural, surge actualmente de uma forma mais vincada o parentesco legal, proposto por David Schneider, que dividiu os parentes entre os que o são por natureza, os que o são por lei, e os que têm ambas as características (Schneider apud Segalen 1999:71). No caso das crianças adoptadas, estas inserem-se claramente na segunda categoria; são filhos determinados por lei.

Como já salientamos em pontos precedentes, para o desenvolvimento saudável de uma criança é, sem dúvida, fundamental a presença das figuras parentais, sejam elas biológicas ou não. Assim sendo, a “ausência de uma delas é sentida pela criança como o mesmo que perder uma parte de si mesmo” (Gonçalves 1998:84), tornando-se vulnerável para o aparecimento de outros sentimentos como a rejeição, a melancolia, a solidão, o medo. Sem o elo que a une primordialmente à sociedade, a criança vê-se obrigada a reformular o seu modo de vida, muitas vezes de maneira precoce, para tentar superar as dificuldades que se interpõem no seu caminho.

Na demografia antiga, a mortalidade provocada pelas epidemias e a fome desfaziam diversos lares (Traça1992:44), sendo muito vulgar recorrerem muito rapidamente às segundas núpcias: “assim o exigia a sobrevivência do lar, confundido com a exploração, baseado na complementaridade do trabalho do homem e da mulher” (Segalen 1999:56). Assim, era frequente um homem assumir, ao longo dos anos, diversas esposas “ (caso muito mais frequente que o inverso) onde os filhos de diferentes leitos coabitam, onde os primogénitos órfãos estão dispersos entre os outros membros da parentela” (Idem, ibidem). As estruturas familiares apresentam-se desmembradas, não sendo de estranhar a presença, nos contos de tradição oral, da figura da madrasta com enorme enfoque, bem como as relações de rivalidade fraterna. Em relação à figura paterna, nos contos em estudo, apenas é feita uma pequena referência ou despontando como personagem ausente. Este facto pode talvez ser explicado, como temos vindo a relatar, pelas razões de na Literatura Infanto-Juvenil se expressar o vivido na sociedade portuguesa. Os laços de maternidade ainda não eram fortes afectivamente, inclusive as relações entre marido e mulher não tinham uma função afectiva (Ariès 1981:11) e, na época, assistia-se a um separar de funções: para homem destinava-se o papel instrumental, de trabalho no exterior e o elo de ligação à sociedade e para a mulher o

papel “ expressivo no interior da família”. A mulher esposa e mãe era aquela a quem cabia a função de cuidar dos filhos (Segalen1999:104).

Actualmente, a realidade é um pouco diferente, sendo muito vulgar, após um divórcio, ambos os cônjuges poderem voltar a casar ou “coabitar sem matrimónio legal com um novo companheiro. Em vez de diminuição, há então uma abundância de pais” (Segalen 1999:63). A mesma autora, evidenciando esta mudança, afirma ainda que “se os contos antigos estão cheios de madrastas, a situação contemporânea põe em evidência a presença de padrasto” (Idem, ibidem).

Não sendo nossa pretensão minimizar a relevância de um bom pai, prestaremos agora mais atenção ao papel da maternidade, por ser aquele que aparece com mais relevância nos contos tradicionais que iremos analisar.

A visão da mãe, nas narrativas populares, é sempre boa. Ela é a que ama incondicionalmente os filhos, ela é a que se sacrifica por eles, educa-os com amor, paciência e boa vontade, seja ela rainha, camponesa ou de qualquer outro estatuto social. Para Chevalier e Gheerbrant (1982:431) a mãe é “a segurança do abrigo, do calor, de ternura e da alimentação”. Todos estes atributos da mãe são positivos, com o que se deseja salientar que não há amor comparável com o materno, que a mulher-mãe é um ser sublime, digno de respeito e admiração, e a maternidade fá-la inigualável às outras. As eventuais características negativas de uma mãe, nos contos tradicionais, geralmente transpõem -se para a personagem da madrasta, ou até da bruxa. Surgem associados a esta personagem sentimentos de hostilidade, como “má, vingativa, invejosa, uma bruxa que se transforma para ferir sua enteada, roubar-lhe a beleza, o lugar, o príncipe, o pai” (Gonçalves 1998:17).

Procurando o significado do termo madrasta nos dicionários, encontramos dois sentidos distintos. O primeiro diz respeito à relação de parentesco: “esposa do pai relativamente aos filhos que este já tinha na ocasião do matrimónio”, e o segundo faz alusão ao sentido figurado da palavra: “mãe pouco carinhosa; ingrata; má; vida madrasta”.

Atendendo ao segundo significado, fica bem patente a dificuldade com que se defrontam as mulheres que assumem este papel. Os rótulos depreciativos são constantes e impregnados de conotação social. Por norma, é rejeitada pela criança, sendo inevitável a constante comparação com a mãe biológica. Porém, nos contos infantis tradicionais, verifica- se a rejeição inversa, ficando bem retratada a crueldade que tantas vezes é manifestada pela madrasta que renega os filhos do primeiro casamento do marido. A prova da complexa relação entre madrastas e enteados fica bem evidente nos contos que iremos analisar a Gata

Borralheira e a Madrasta, em que a madrasta desponta como antagonista e responsável pelo sofrimento pela heroína. Nos contos A Rainha Orgulhosa e Os sapatinhos encantados poderemos presenciar que irão ser utilizados comportamentos desviantes para justificar a “má-mãe”, pois, como já referimos, à mãe não eram permitidos atributos negativos.

Ao contrário do que acontecia há poucos séculos atrás, a mulher passa a ter “uma dupla actividade familiar e profissional” (Segalen 1999:126), admitindo-se actualmente “que um pai ou uma mãe possam ter papéis cambiáveis; da mesma forma que um pai pode alimentar o filho ou cuidar dele, uma mãe pode exercer a sua autoridade ou seguir uma carreira” (Copper-Royer 2008:37), começando a evidenciar-se “uma nova paternidade”.

A forma de ver a parentalidade é hoje movida por vários factores conscientes ou inconscientes, nomeadamente, vínculos afectivos, emocionais e relacionais. As relações pais- filhos estão em mudança, com o interesse dos filhos a ganhar relevo em relação ao dos pais, “a criança, de companheira de trabalho passa progressivamente para companheira de tempos livres” (Nazareth 1985:20). O poder parental é substituído pela responsabilidade parental, expressão introduzida pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança. A nova terminologia vem retirar os pais do centro do Direito, substituindo-os pelos filhos que, agora, são encarados como sujeitos de direito (Segalen 1999:321).

De facto, a temática das novas famílias constitui uma preocupação bastante marcante na literatura infanto-juvenil contemporânea. Deste modo, notamos que nalgumas narrativas infanto-juvenis portuguesas actuais, existe uma maior preocupação em formar um leitor mais consciente das diferentes realidades com as quais convive diariamente. Neste sentido, procuramos abordar obras onde o tema da adopção é retratado, uma vez que a mensagem á actualíssima, numa sociedade onde cada vez mais existem crianças em instituições à espera de serem adoptadas. Só alterando mentalidades se podem alterar realidades, e nada melhor do que começar desde a mais tenra idade e com os contos, pois, como afirma Armindo Mesquita, estes actualizam e/ou (re) interpretam “questões universais como a formação de valores” (Mesquita 2003:458), contribuindo desta forma para que as crianças se desenvolvam como cidadãos conscientes, com plenos direitos e deveres na sociedade em que vivem.

Depois de tudo o que fomos dizendo ao longo deste excurso, resta-nos terminar afirmando que temos noção do muito que ficou por dizer, dada a forma resumida como tivemos de abordar o assunto e a complexidade do tema. Porém, consideramos que foi o suficiente para compreendermos que actualmente a adopção é mais aceite do que outrora, talvez porque o lugar da criança na família e na sociedade, com o passar dos séculos, se

tornou preponderante. Além disso verificamos que esta aceitação afectiva da adopção ocupa cada vez mais as obras que hoje são destinadas aos mais pequenos.