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I. 1.1 1.Literatura Tradicional de Transmissão Oral

II.4. Os contos em análise

II.4.1. Análise dos Contos Tradicionais

II.4.1.2. A madrasta

Para principiar este conto, Teófilo Braga utiliza uma fórmula introdutória que difere da usual fórmula mágica Era uma vez. Não existem referências precisas ao momento em que se desenrola a acção, predominando a impossibilidade de nos situarmos temporalmente, surgindo apenas expressões como: “Estavam uma vez no monte…”; “Duraram as coisas assim muito tempo…” (Braga 1914). Contudo, assistimos à passagem do tempo, através de expressões empregadas pelo narrador como por exemplo: “ veio a noite…”, “até que um dia…”. Também a oposição dia/noite é reveladora da passagem do tempo.

No que concerne ao espaço, cumpre-se a estrutura dos contos maravilhosos, uma vez que este é indeterminado, remetendo-nos apenas para “… o monte”, “a casa…”, “…o quintal” e “...a loja”. Esta economia espacial irá possibilitar ao leitor/ouvinte a sua identificação com o espaço, bem como poderá transportá-lo a qualquer outro com o qual se pode identificar.

Passando à análise do narrador, vemos que este assume as características do conto anterior (Gata Borralheira). Não participa na história que narra, mas conhece os pormenores da acção e o interior das personagens, como comprovam as seguintes passagens: “ A mulher ruim…”; “O príncipe ficou mais apaixonado…” (Idem)

Analisando as personagens, podemos inferir que as mesmas surgem em número reduzido e não existem muitos elementos que permitam a sua caracterização. A protagonista não possui nome e fisicamente apenas temos como referência que era bonita. É uma personagem plana, sem riqueza interior ou densidade psicológica, mantendo-se boa do início ao fim da história. Temos noção da sua bondade, humildade e honestidade através dos actos que pratica ao longo do conto. Ao afirmar “… enteada da mulher ruim deu-lhe logo da sua codinha de broa…” (Idem), o narrador está a apresentar-nos a personagem como alguém bondoso que é capaz de partilhar sem hesitar. Também a forma como ela própria assume a sua condição perante o príncipe (“estava enganado, que ela era muito feia”), prova tratar-se de uma pessoa honesta e humilde.

Sem qualquer elemento possível para traçar o retrato físico, aparece a madrasta. Esta assume o papel simbólico, ligado à maldade, sendo mesmo caracterizada pelo autor como “mulher ruim” e “invejosa”: “com inveja tratava-a mal” (Idem).

A filha da madrasta surge-nos como uma personagem avarenta, ao recusar-se partilhar a merenda com a velha. Fisicamente apenas é caracterizada como feia: “uma filha muito

actuação própria, agindo mediante as orientações da mãe.

A velha é-nos apresentada como personagem tipificada. O narrador refere-se a ela como fada (“uma velha que era fada”) (Idem), surgindo assim como elemento mágico, aquela que vai interferir no conto e no desenlace final. Sem a troca das caras, a menina não teria conseguido casar com o príncipe. Assim, esta personagem vai ao encontro das opiniões dos autores Edouard Brasey e Nelly Novaes Coelho sobre as fadas. Estes afirmam que as fadas têm o poder de interferir no destino das pessoas. Segundo Edouard Brasey (2002:15) “é ela quem ata o fio da vida dos humanos, quem divide o fio, intervindo no destino dos homens e é ela quem corta esse fio anunciando a morte dos humanos”. Também Nelly Novaes Coelho afirma que “dotadas de virtudes e poderes interferem na vida dos homens para auxiliá-los em situações - limite quando já nenhuma solução natural seria possível” (Coelho 1991:31).

Por fim, o príncipe intervém apenas como salvador da menina ao casar com ela. Não existem elementos que o possam qualificar e apenas é referido na parte final da história.

Procedendo à análise actancial, podemos afirmar que se trata de uma narrativa de pequena extensão e com estrutura simples e linear, não apresentando intrigas secundárias. A maioria da história é narração, havendo poucas falas, e pode resumir – se a um núcleo familiar constituído pela mãe, filha e enteada. Estamos perante uma narrativa fechada, que encerra com um provérbio popular: “Madrasta, nem de pasta”.

Quanto à dinâmica da narrativa, atendendo às provas de Courtès (1979:13), podemos considerar que este conto segue o esquema canónico, pois termina com a glorificação do herói, havendo uma relação de inversão entre o estado inicial e o estado final.

O estado inicial é representado por uma situação de falta, carência de afectividade. A perturbação é o momento em que surge a velha que irá possibilitar o desenrolar da acção, a transformação, com a troca das caras entre a filha da madrasta e a enteada. Segue-se a resolução, que acontece quando a filha da madrasta é vista pelo príncipe, à janela, com a cara da enteada. A situação mantém-se até a menina e o príncipe casarem, momento em que tudo volta à normalidade. Este momento prepara já o estado final, em que o sujeito através do casamento alcança a afectividade e alteração de estatuto social.

Para concluir, como já foi dito, o número reduzido de personagens conduz-nos a um esquema actancial bastante simples, com sincretismo, que podemos verificar de forma sintética:

Como podemos verificar, a enteada assume-se como o herói deste conto, cujo objectivo é o casamento com o príncipe. O herói consegue ter ascensão social e obtém um objecto de amor e afectividade (marido). Nesta missão a menina é auxiliada pela velha (fada), a qual também é responsável pelo desencadear da acção, ou seja, é ela que põe em movimento a acção (destinador), aparecendo nos momentos mais cruciais do conto. Como oponentes, este conto contempla a madrasta e a sua filha, as quais não conseguem os seus objectivos.

O facto de nesta diegese existirem poucos agentes leva a que alguns deles cumpram mais do que uma função. Assim, a velha é simultaneamente adjuvante e destinador, bem como a menina bonita, que é sujeito e destinatário.

III.4.1.3. A Rainha Orgulhosa

A fórmula introdutória deste conto “Havia uma rainha orgulhosa” (Pedroso 1910), reenvia-nos para um passado distante, indeterminado, permitindo a projecção do leitor/ouvinte para um mundo maravilhoso.

Não existem referências precisas ao momento em que se desenrola, como convém a uma narrativa de cariz maravilhoso. Expressões como “um dia…”, “No dia seguinte…”, dão- nos a ideia da passagem do tempo, mas a indeterminação prevalece. Também neste conto o tempo da história, cujo decurso é paulatino, não é o mesmo do tempo do discurso. Apenas verificámos que estes se coadunam nas falas das personagens.

Destinador: velha (fada) Objecto: Casamento com o príncipe Destinatário: menina bonita Adjuvante: velha (fada) Sujeito: Enteada (menina bonita) Oponente: madrasta, filha da madrasta

Tal como nas diegeses anteriores, o narrador não participa directamente, assumindo-se deste modo, como narrador ausente, contando tudo em terceira pessoa. Contudo, podemos encarar este narrador como omnisciente, pois conhece o íntimo das personagens como vemos nas expressões: “tornou muito assustada…”,“adoeceu de paixão…”.

Existem diversos espaços: “um campo…”; “uns matos…”; “primeira, segunda e terceira casa…”; “palácio”. Porém, em nenhum instante conseguimos saber onde estes se situam, apresentando-se assim de uma forma imprecisa.

O número de personagens é reduzido e não são complexas, surgindo sem densidade psicológica e de forma anónima, ou seja, sem nome próprio, representando apenas uma profissão ou classe social: “rainha”, “camarista”, ”princesa”, “criados…”. Assim, “desprovidas de densidade e energia interior, desenhadas e planas, elas facilitam a adesão, a identificação projectiva do ouvinte/leitor” (Soares 2003:15).

Comecemos pela protagonista – a princesa/menina. A sua caracterização é escassa. Sabe-se apenas que é bonita, motivo pelo qual a mãe a mandou matar. Surge na narrativa com duas designações diferentes, inicialmente, “princesa” e, depois, “menina”, ambas com carácter universal. Pela sua acção, podemos caracterizá-la como sendo tímida e obediente: “ esconder-se em casa”; “tornou o homem a mandá-la passear… a menina foi ” (Pedroso1910).

Temos depois a “rainha orgulhosa”, sobre a qual não há praticamente nenhuma caracterização. Apenas é referida no começo do conto para dar início à história. É ela o impulsionador de toda a acção, ao mandar matar a própria filha. Das suas acções, podemos concluir que tem medo de envelhecer. Não aceitando essa condição, é capaz de tudo, tendo atitudes de animosidade que se desejaria não existir entre mãe e filha.

Relativamente aos criados, estes surgem como um todo, não se conseguindo precisar o seu número. Surgem apenas no início da diegese e não encontramos elementos para os descrever. Podemos, no entanto, depreender que são bons, pois não acataram a ordem dada pela rainha, não matando a princesa.

Quanto ao homem, não existem elementos que nos permita caracterizá-lo quer fisicamente, bem como, psicologicamente. Ainda assim, podemos inferir que seria um homem pautado pela bondade, ao acolher e ajudar a menina. No final da história, este transforma-se em imperador.

Também o príncipe aparece na narrativa com duas designações, inicialmente, cavaleiro e, posteriormente, príncipe. Tal como as outras personagens não é caracterizado directamente pelo narrador. Temos noção de que se apaixona perdidamente pela menina,

chegando a adoecer quando a deixa de ver. Neste momento, surge outra personagem, a mãe do príncipe. Evidencia carinho e preocupação pelo filho e algum autoritarismo, quando obriga o guarda a contar o que a menina lhe dissera. Também nesta sequência aparece a personagem “ o guarda”, que apenas serve de mensageiro entre a rainha, mãe do príncipe, e a menina.

Neste conto, a acção é simples, decorrendo de forma linear. Seguindo as palavras de Massaud Moisés, este conto “trata-se de uma narrativa unívoca, univalente. Constitui uma unidade dramática, uma célula dramática. Portanto, gravita em torno de um só conflito, um só drama, uma só acção” (Moisés 1982:20).

Estamos perante uma narrativa fechada, cujo final é descrito pelo narrador: “e viveram todos muito felizes” (Pedroso 1910).

Atendendo à metodologia de análise narrativa proposta por Vladimir Propp (Proop 2000), podemos concluir que o conto segue o esquema canónico. Na estrutura da narrativa vão “inscrever-se diversas funções que traduzem o processo dinâmico de passagem de um estado inicial a um estado final” (Bastos 1999:69). Verificámos que inicia com uma situação de falta, seguindo-se de inúmeras funções, terminando com o estado final de equilíbrio ou falta reparada.

Também Cristina Macário Lopes, na peugada de Larivaille, propõe um modelo de análise assente em cinco momentos essenciais. São eles: estado inicial, perturbação, transformação, resolução, estado final (Lopes 1987).

Assim, o estado inicial, neste conto, é caracterizado por uma situação de falta de amor materno, uma vez que é rejeitada por ser mais bela que a mãe. A perturbação surge, quando a mãe recebe a confirmação pela voz do camarista de que mais bonita do que ela é a princesa sua filha. Segue-se a transformação, período em que os criados não matam a princesa, deixando-a partir, até ao momento em que a menina mora com o homem. A resolução acontece, quando a menina sai para passear e encontra o príncipe. Este momento conduz-nos ao estado final que, depois de muitos acontecimentos, se traduz no casamento da menina com o príncipe. Deste modo, o sujeito recupera o seu estatuto inicial, uma vez que já era princesa, e conquista o amor não materno, mas do marido.

Importa ainda referir que as relações entre as personagens, que Greimas (1986) denomina esquema actancial, contribuem para a dinâmica da narrativa, como podemos aferir com o esquema seguinte:

A personagem com o estatuto de herói é assumida pela menina, que tem como objecto o casamento com o príncipe. O desencadear da acção inicia-se quando a rainha orgulhosa manda matar a filha, sendo assim, numa primeira fase, esta que põe a acção em movimento (destinador). Numa fase posterior, será o homem que faz desenvolver a acção, ficando assim justificada a existência de dois destinadores.

A menina é auxiliada pelos criados, o homem, o guarda e a rainha (adjuvantes), no cumprimento da sua missão. Como oponente, neste conto, surge-nos apenas a rainha orgulhosa.

De destacar, ainda, que uma mesma personagem assume diferentes papéis, verificando-se um enorme sincretismo.