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I. 1.1 1.Literatura Tradicional de Transmissão Oral

II.4. Os contos em análise

II.4.3. Análise temático-simbólica Contos Tradicionais

II.4.3.3. A rainha orgulhosa

Este conto inicia com a rainha, indagando as alas, as criadas e o seu camarista acerca da sua beleza. Esta passagem alude-nos ao eterno mito de Narciso, que só se amava a si próprio. Como tal, quando o camarista lhe responde que há alguém com uma cara mais linda que a dela a sua reacção é mandar matá-la. Este acto é-lhe permitido pelo seu estatuto social “rainha”, associado a uma personagem de poder. Contudo, a princesa consegue triunfar, pois os criados não lhe conseguem fazer mal e deixam-na partir.

De entre muitos espaços, habitados e percorridos pelas personagens dos contos de

fadas, a floresta é recorrentemente usada como um espaço mágico, sendo o “local onde se

realizam os factos maravilhosos” (Bastos 1999:71). Neste conto a protagonista caminha “por uns matos” (Pedroso 1910). Com significado idêntico, esta passagem poderá significar ao mesmo tempo angústia pelo desconhecido que a esperava, mas também um momento de libertação e transformação.

A metamorfose do casal em porcos remete-nos logo para um mundo maravilhoso onde tudo é possível. No seu percurso encontra três casas, entrando em todas mas permanecendo apenas na terceira. Atendendo ao significado do número, “expressão de totalidade e conclusão” e de casa,” refúgio, protecção” (Chevalier; Gheerbrant 1982:654 - 166), podemos inferir que a princesa chegara a um local onde a iriam ajudar e proteger.

Isso confirma-se, pois é o homem que irá auxiliar a menina no seu período de crescimento, adolescência, aconselhando-a e ajudando-a até casar com o príncipe. Inclusive, presenciamos o que poderíamos chamar de “adopção” por parte do Homem, pois quando este lhe pergunta “se ela queria ficar por sua mulher ou por sua filha”, esta reponde que queria ficar por sua filha.

É também através desta história que nos é transmitido “que atingir a maturidade física não é suficiente para se estar preparado, intelectual e afectivamente, para entrar na idade adulta, idade esta representada pelo casamento” (Mesquita s/d: internet).

Contrariamente àquilo que se verificou nos contos anteriores, aqui a figura de madrasta é substituída pela própria mãe. Contudo, como pudemos confirmar com o decorrer da diegese, esta personagem apenas aparece no início do conto e não é mais mencionada, nem mesmo no final. Assim, fica indefinido o seu desfecho, o que não é comum nos contos de fadas para aquelas personagens que praticam o mal, acabando sempre por ser castigadas. Este facto é

explicado por Gonçalves, que supõe que isso se deva à “crença de que um dia voltarão ressentidas e arrependidas, pedindo o perdão aos filhos” (Gonçalves 1998: 44).

II.4.3.4 Os sapatinhos encantados

Comparando este conto com o anterior, podemos afirmar que se mantém o conflito principal: a beleza. Para além deste aspecto, coadunam no facto de também nesta diegese a madrasta ser substituída pela “má-mãe”.

Inicialmente a protagonista surge fechada para o mundo, “tinha-a fechada para ninguém a ver” (Coelho 1879), despontando para o crescimento com a saída de casa para supostamente ser morta. Conseguindo convencer os criados, estes deixam-na partir. Inicia assim o percurso da heroína até ao casamento com o príncipe, o qual necessitará de algum tempo para que “a personalidade fique mais madura (…) só nesse momento é que se está preparado para receber o parceiro do sexo oposto e estabelecer, com ele, relações íntimas que permitam à maturidade adulta efectivar-se” (Mesquita s/d: internet).

Entretanto, caminha até uma serra, “termo de ascensão humana”, e vê uma casa, indício de um local onde poderá receber” protecção e refúgio”. Associado a esta simbologia o autor afirma ainda que era noite. Aqui, podemos ver apresentado um duplo aspecto: “o das trevas onde fermenta o futuro, e o de preparação para o dia, donde brotará a luz da vida” (Chevalier; Gheerbrant 1982:166-474). Como pudemos confirmar, todos estes símbolos indiciam mudança e renovação.

Vulgarmente associados à prática do mal, os ladrões surgem neste conto como aqueles que irão auxiliar a menina. Associada ao lado negativo/mal, aparece a velha, a qual poderá ser equiparada à vulgar bruxa dos contos de fadas. Símbolo de inteligência e sabedoria é ela que conseguirá concretizar o desejo da “mulher bonita”, conseguindo persuadir a menina a calçar os sapatos.Os sapatos surgem nesta diegese com duplo significado. Inicialmente aparece como uma representação funerária “o agonizante está prestes a partir” (Chevalier; Gheerbrant 1982:585), indiciando a morte da menina quando os calçasse: “Calçou um, fechou-se um olho, calçou outro, fechou-se o outro olho e ela caiu morta” (Coelho 1879). Posteriormente, e

já no final do conto, estes podem ser encarados como “símbolo sexual” (Chevalier; Gheerbrant 1982:586): o príncipe “tirou-lhe um sapato e ela abriu um olho, tirou-lhe outro, abriu outro olho e ficou viva” (Coelho 1879). Fica perceptível que, com este acto, há o despertar da menina para a sexualidade/ adolescência e, posteriormente, para a maturidade que dará lugar ao casamento.

Neste conto, há referência à mãe, que ainda no desfecho a tenta matar. Porém, este comportamento desviante é justificado pelo facto de ser bêbada. Desta forma, tal como no conto anterior, quando o papel de antagonista é atribuído à mãe, à qual, geralmente se atribui um ideal de amor e afeição, os seus actos são desculpabilizados de alguma forma.

II.4.4. Análise temático-simbólica - Contos de Autor

II.4.4.1. Ovos misteriosos

Começando pela análise do título, observamos desde logo a associação de dois vocábulos ovos e misteriosos, os quais dão um toque enigmático à diegese.

Aliás é um destes, o ovo, símbolo de prosperidade (Chevalier; Gheerbrant 1982:499), que irá permitir o desencadear da acção. “Já pus 1000 ovos. Podia ser mãe de mil filhos. Mas não tenho nenhum por causa da gente gulosa – cacarejou certa manhã a galinha. Vou fugir” (Soares 2005:2).

Tal como acontece nos contos tradicionais, em que os protagonistas, frequentemente, sentem necessidade de partir (Propp2000:66), passando por uma fase de crescimento e amadurecimento, a acção deste conto principia com a fuga da galinha da capoeira para o mato/bosque. Esta saída constitui uma saída voluntária, movida pelo enorme desejo de ser mãe.

Desde logo, ficamos perante dois espaços que simbolicamente se opõem. Enquanto o primeiro, a capoeira, é fechado, consequentemente dominado pelo aprisionamento, o segundo

destaca-se por ser um espaço aberto, livre, que é ao mesmo tempo “gerador de angústia e serenidade” (Chevalier; Gheerbrant 1982:331), ou seja será o “local em que a escuridão interior é confrontada e desvendada, em que a incerteza se resolve” (Bettelheim 1998:121).

É de facto neste último que a protagonista vê realizado o seu desejo, tendo cinco filhos, nascendo apenas um pinto. Atribuindo o carácter simbólico ao número de filhos, este desde logo nos remete para um cenário de “união, ordem e perfeição” (Chevalier; Gheerbrant 1982:196), o qual é comprovado com o decorrer da narrativa. Apesar de tão diferentes, todos os animais convivem de forma saudável e com fortes laços de fraternidade.

Por sua vez, assistimos a uma aceitação por parte da galinha dos outros seres tão diferentes, “adoptando-os” como seus, manifestando carinho, amor, afecto e dedicação por todos eles. Porém, vê-se confrontada com atitude de preconceito, este proferido por uma perdiz, símbolo de “tentação, perdição, uma encarnação do demónio” (Chevalier; Gheerbrant 1982:196), que a aconselha a ficar apenas com o seu filho: “Trata só do teu pinto. Não ligues aos outros bichos” (Soares 2005:11)

Mediante esta recomendação de rejeição ou ambivalência, a figura da mãe, símbolo de protecção, opta pelo afecto, carinho e proximidade.3 “Mas como podia ela abandoná-los depois de os ter chocado com tanto amor? Que outra mãe havia de tratar deles?” (p.12).

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3 Por oposição, a madrasta dos contos tradicionais figura como mãe ausente ou privadora de afecto (Laplanche;

Na verdade, a aceitação da adopção e da diferença são temas controversos, aos quais a sociedade actual ainda se revela pouco sensível, sendo frequente, por exemplo, apenas recorrerem à adopção quando não podem ter filhos biológicos. Como afirma Diniz a “situação paradigmática e mais frequente é a adopção por casais sem filhos” (Diniz 1993:63), ou seja, ainda predomina o pensamento infertilidade/adopção.

De facto, à semelhança do que acontece nas fábulas, o comportamento dos animais alude a comportamentos humanos (Bastos1999:83). Instruindo e divertindo, apresentam “de maneira aceitável, muitas vezes mesmo agradável, uma verdade moral, o que de outro modo seria árido ou difícil” (Mesquita 2000:68). Assim, fica claro nesta narrativa a reflexão sobre determinados valores, como aliás, é perceptível nas obras de Luísa Ducla Soares, que afirma “através do humor é igualmente possível transmitir mensagens verdadeiramente sérias” (Soares 2008:64) e “em numerosos livros em que os animais imperam não pude deixar de piscar o olho aos meus leitores, brincando com certas atitudes bem humanas que eles protagonizavam” (Idem,65).

Conseguindo aliar tradição e inovação, nesta história, a autora traz às nossas crianças o mundo maravilhoso dos contos tradicionais, colorido com traços sociais actuais (Idem 2008:64).

II.4.4.2 Grávida no Coração

O título desta obra de Paula Silva, Grávida no coração, remete-nos desde logo para um aspecto fundamental da sintagmática: a gravidez. Por sua vez, com a expressão no coração, “símbolo de amor como centro de iluminação e felicidade” (Cirlot 2000:13), apercebemo-nos prontamente da intenção da autora ao querer advertir o leitor para uma história de cariz afectuoso, bem como, somos levados a supor que esta gravidez terá um carácter distinto daquele com o qual estamos familiarizados.

Associados à gravidez surgem dois vocábulos, mãe e barriga, os quais consequentemente têm um simbolismo coincidente: “ segurança, calor, ternura e protecção” (Chevalier; Gheerbrant 1982:431-681). Contudo, o conto recorda-nos que a gravidez não se

trata apenas de um estado físico, mas também psicológico, até porque: “O Pai não engravida, no entanto, ama os filhos desde o primeiro momento, e para sempre” (Silva 2006:16).

Ao longo da história, vamos tendo informações que nos vão comprovando o quanto de facto esta gravidez é diferente, e que o tema que a obra trata é, sem dúvida, complexo e delicado: a adopção.

O conto vai-se desencadeando com interrogações do filho à mãe, tentando comprovar os sentimentos que esta nutre por si, pois reconhece a diferença da maternidade biológica e a adoptiva. Por sua vez a mãe, “uma das palavras mais carregadas de emoções e afectos” (Diniz1993: 25), assume o amor que sente pelo seu filho, aceitando-o sem restrições. “Mãe é aquela que te ama, a que está aqui e no fim do mundo, se precisares” (Silva 2006:14).

O pai, representação de toda a figura de autoridade e protecção, (Chevalier; Gheerbrant 1982:500) surge na narrativa como complementaridade da adopção, e ao mesmo tempo, como um comprovar que de facto não é preciso gerar para amar, reforçando, acima de tudo a importância dos afectos.

Ao mesmo tempo que a personagem protagonista toma consciência de todo o amor que sentem por ela, aferimos a aceitação da adopção quer pelos pais como também pelos irmãos e a restante família: “ (…) todos os que estão aqui ao teu lado, orgulhosos, a ver-te crescer lindo e feliz” (Silva 2006:22).

Esta boa qualidade de ambiente familiar foi capaz de desvanecer todas as dúvidas que o filho adoptivo sentia e, no desfecho da história, este afirma: “Então, és tu a minha verdadeira Mãe!” (pág. 26). Esta personagem aceita o facto de ser adoptada e “sente-se compreendida e aceite tal como é” (Porot s/d: 59). De facto, e continuando com as palavras do mesmo autor, confirma-se que um amor verdadeiro, aquele que mais se faz sentir do que se exprime, confirma o bom senso popular que diz “uma criança amada é uma criança feliz” (Idem,15).

II.4.4.3. Filhos do Coração

Os termos “Era uma noite...” (Borges; Figo 2007:5), como os quais inicia este conto, envolvem desde logo esta história de magia e simbolismo. Noite, apesar de poder representar um duplo aspecto: o das trevas onde fermenta o futuro, e de preparação do dia, donde brotará

a luz da vida”( Chevalier e Gheerbrant 1982:474),neste caso, como poderemos confirmar com o desenrolar da acção tenderá a indiciar a “purificação dos desejos e afectos”(Idem,474).

Inicialmente, surge Luena, personagem principal, assombrada com dúvidas sobre as suas origens, como fica visível nas interrogações: “ -Mãe... como é que eu nasci? Porque é que não há fotografias minhas em bebé aqui no álbum?” (Borges;Figo 2007:7) Neste contexto vimos que existe a preocupação da mãe em introduzir os factos aos poucos, permitindo que esta se compreenda a si própria e à sua história (Diniz1993:92). Assim, a narração começa “pelas circunstâncias que preparam o espírito do leitor para o desenvolvimento da situação problemática” (Coelho2002:132): “Vou contar-te a história mais bonita do mundo e a mais especial, porque é a tua história. Sabes como nascem os bebés?” (Borges; Figo 2007:9); “ (...) alguns filhos nascem nos corações dos pais!” (p.13).

Toda esta sintagmática decorrerá num espaço: a casa. Este pode “adquirir uma conotação simbólica, ultrapassando a importância objectiva” (Coelho 2002:78) que, neste conto, podendo simbolizar “refúgio, mãe, protecção e seio maternal”4 (Chevalier; Gheerbrant 1982:166), traz a tranquilidade necessária para o esclarecimento das dúvidas de Luena.

É atribuída uma enorme importância às relações familiares. Tenta alertar para uma nova concepção de família, que vai além dos laços de sangue. Esta assume, neste conto, uma dimensão socioafectiva, valorizando a igualdade, o afecto, a amor, transcendendo a relação biológica.

Por outro lado, procura sensibilizar para a realidade dos meninos adoptados e, especialmente, aqueles que são de “outra cor”, que geralmente são apelidados de “meninos diferentes”. A autora pretende passar uma mensagem a este respeito, podendo-se confirmar com as seguintes palavras: “À Luena nunca lhe tinha ocorrido perguntar porque é que a sua cor de pele era diferente da dos seus irmãos...afinal somos todos diferentes uns dos outros! Há crianças gordas, magras, altas, baixas (...) ” (Borges; Figo 2007:24). Desta forma, ao abordar uma “representação possível do real, o conto permite à criança e ao jovem o contacto com problemas e factos que se prendem directamente com o seu universo” (Bastos 1999:128), facilitando “uma leitura projectiva do eu leitor” (Manzano apud Bastos 1999:122).

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4 No conto Hansel e Gretel, a casa que comem “representa no inconsciente a boa mãe, que oferece o seu corpo

Sendo que a maior dificuldade das crianças é “ter de dividir o afecto dos pais com os irmãos” (Gonçalves 1998: 88), fica também evidente a aceitação por parte dos irmãos, pelos quais eventualmente podia ser rejeitada: “- Luena... a nossa família não seria a mesma sem ti...”; “ (...) estamos muito felizes por termos uma irmã como tu” (Borges; Figo:30).

Concluiremos com as palavras de Eduardo Sá em Filhos do Coração, as quais poderão sintetizar as temáticas tratadas nestas obras: “Não há filhos naturais e filhos adoptados: há filhos. Basta que para tanto sintam que amar é dizer eu e tu ao mesmo tempo” (Sá 2007:2).

Parte III

Aplicação Pedagógica de

alguns Contos

Ao longo deste estudo, foram tecidas algumas reflexões teóricas direccionadas para a Literatura Infanto-Juvenil, mais concretamente os contos (tradicionais e modernos), os quais se revestem de enorme importância, representando um papel preponderante no incremento das capacidades de fantasia e imaginação. Apresentamos ainda algumas reflexões sobre a importância da família e da adopção e a sua implicação no desenvolvimento global da criança. Assim, resta-nos agora passar à prática, de maneira a que o nosso trabalho fique mais completo, com as propostas de aplicação pedagógica dos textos estudados. Esta terceira parte prender-se-á então com o estudo de alguns contos analisados no capítulo anterior e dividir-se- á em três momentos. Numa primeira fase, teceremos breves considerações sobre os destinatários para quem se projectam as actividades, assim como as diferentes metodologias a utilizar. Posteriormente descreveremos alguns dos momentos mais relevantes, no decorrer das actividades pedagógicas, apresentando alguns dos trabalhos mais significativos, bem como a análise dos questionários aplicados. Para finalizar, faremos uma síntese geral sobre a aplicação dos contos com o intuito de salientar os conhecimentos adquiridos e as suas preferências por uma ou outra história.