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I. 1.1 1.Literatura Tradicional de Transmissão Oral

II.4. Os contos em análise

II.4.1. Análise dos Contos Tradicionais

II.4.1.1. A Gata borralheira

A fórmula mágica usada para iniciar este conto, de Consigliere Pedroso, Era uma vez…, remete a acção para fora do tempo e do espaço reais, permitindo ao ouvinte/leitor “(…) situar-se num universo que não é o da realidade comum mas que, todavia, lhe fornece muitas chaves para compreender o seu mundo” (Bastos 1999:70).

Os espaços escolhidos para o desenrolar das acções essenciais do conto: a casa do pai, o lugar para onde a menina levava a vaquinha a pastar, o tanque, a casa que a menina encontra e as cavalhadas não são descritos, salvaguardando o seu “carácter mágico e simbólico” (Soares 2003:13).

O tempo da história não corresponde ao tempo do discurso, tendo o primeiro um decurso mais demorado. No entanto este equipara-se, nos momentos em que as personagens (fadas, cão e filha da mestra) proferem algumas palavras.

Ao longo da narrativa, vão surgindo marcas linguísticas como: “Um dia…”, “o outro dia…”, no dia seguinte…” (Pedroso 1910), as quais vão contribuindo para o encadeamento do fluxo narrativo. A sua finalidade será indicar a sucessão de acontecimentos, revelando uma passagem do tempo, o qual é difícil de determinar durante todo o conto.

Quanto ao narrador, podemos dizer que é ausente ou heterodiegético, sendo a história contada na 3ª pessoa. No entanto, é omnisciente uma vez que ao longo da narrativa se vão evidenciando marcas em relação às características, intenções e comportamentos das personagens: “o pai, que era muito amigo dela”, “a menina foi muito contente”, o “rei ficou muito apaixonado por ela” (Idem). Também utiliza expressões valorativas, através das quais

implicitamente toma o partido do sujeito herói (a Gata Borralheira) e pune os que praticam o mal (a mestra e a filha).

Quanto às personagens, as suas características pessoais são bem definidas, não sendo boas ou más ao mesmo tempo, como se verifica, por vezes, na realidade humana (Bettelheim 1998:17). A Gata Borralheira é associada desde o início ao fim do conto ao bem e a mestra e a filha associadas ao mal.

Além disso, em relação ao relevo das personagens, todas elas são planas e sem densidade psicológica, podendo desta forma ser “manipuladas pelo contador e facilitar a adesão e identificação projectiva do ouvinte/ leitor” (Soares 2003:15). Não possuem nomes próprios aparecendo apenas referenciadas como, “a mestra”, “a filha”, “viajante”, “rei”. É fácil verificar que a protagonista é a menina (Gata Borralheira), de forma que todas as outras giram em sua volta. Existe pouca informação para a caracterizar, apenas temos como referência que fisicamente era “bonita”. Contudo, pelas suas atitudes ao longo da história, podemos inferir que era uma menina carente de amor de mãe, pois insistia com frequência para que o pai casasse com a mestra, a qual lhe daria “sopas de mel”. Temos noção de que seria obediente (pois fazia sempre tudo o que a mestra lhe ordenava) e trabalhadora pela forma com prontamente se predispôs a arrumar a casa, sem que ninguém lho pedisse ou ordenasse.

Além de falta de afecto materno, fica evidente que a menina também sentiria a falta do amor, afecto e protecção paternal. Este é descrito como “viajante”, condição que o “obrigaria” a estar ausente, o que se confirma com a sua pequena intervenção no conto. Apenas há referência à sua personagem até este casar com a mestra.

As fadas, seres pertencentes ao “mundo” do mito, e com poderes mágicos, surgem como fundamentais para ajudar o herói em perigo, a menina (Brasey 2002:15).

O rei é a personagem com quem a Gata Borralheira casa, no final do conto, permitindo-lhe a ascensão social.

Atenderemos agora ao modelo actancial de Greimas (1986), o qual permite clarificar a relação entre as personagens:

Assim, verificamos que existe uma relação de sincretismo, pois existe uma a “acumulação de dois actantes num só actor” (Reis; Lopes, 2007:18); a menina (herói) é simultaneamente sujeito e destinatário. Verificamos ainda a “distribuição das virtualidades funcionais de um só actante por diversos actores” (Idem, ibidem), como é o caso dos adjuvantes e dos oponentes.

É o sujeito herói, a menina, que põe em andamento a narrativa com a intenção de obter uma mãe e mais tarde casar com o rei. Nesta missão a menina é auxiliada numa primeira fase pelo pai que, embora inicialmente se opusesse ao casamento, acabou por fazer a vontade à filha e, depois, é ajudada pela vaquinha, pelas fadas e pelo cão. Também surge a varinha de condão que ajudará a menina, no entanto como é um objecto “será todavia preferível, para a nomear, a utilização do termo interveniente em vez de personagem, dificilmente aplicável a coisas” (Soares 2003:12). Como oposição, a menina irá encontrar todas as imposições colocadas pela mestra.

Tendo em conta o modelo de Courtès (1979:13), a acção do conto assenta numa estrutura triádica. A prova qualificadora é caracterizada pela carência de amor materno na infância da menina, o qual tenta obter convencendo o pai a casar com a mestra, e já na fase adulta pela falta de um companheiro. Após o casamento, e na ausência do marido, a mestra maltrata a menina e manda-lhe executar diversas tarefas as quais a menina terá de superar. A prova decisiva surge quando a menina vai às cavalhadas e o rei se apaixona por ela. Ao fugir deixa uma pista para ser encontrada, o sapato, o que prepara a prova glorificante, que se traduz no casamento da menina com o rei e na punição da mestra e da filha com a morte.

Importa, ainda, realçar a metodologia de análise narrativa proposta por Vladimir Propp (Propp 2000: 65-110). Este conto inicialmente apresenta-nos uma situação de falta de uma

Destinador:

Menina

Objecto: Casamento

com o rei; Obtenção de uma mãe Destinatário: mestra, rei Adjuvantes: pai, vaquinha, três fadas, cãozinho, Sujeito: Menina “Gata Borralheira” Oponentes: Mestra, Filha da mestra

mãe: “A menina foi para casa dizer ao pai, que casasse com a mestra” (Pedroso 1910). Surge de imediato a interdição, pois o pai da menina não pretende casar e tenta adiar a casamento. Manda fazer umas botas de ferro e só casaria quando estas estivessem rotas.

O herói age em cumplicidade com a mestra, ao urinar todos os dias nas botas, transgredindo o adiamento do casamento. Então, o herói depara-se com a primeira função do doador: ”Dava-lhe um pão e queria que ela o trouxesse inteiro, e uma bilha de água, e queria que ela bebesse e a trouxesse cheia” (Idem). Esta função vai surgir mais duas vezes: “que ela lhe dobasse umas poucas de meadas até à noite”; “havia de ir lavar as tripas da vaquinha a um tanque”(Idem). Esta última função originará a recepção do objecto mágico. Indo atrás de uma bola de ouro, que saíra das tripas que estava a lavar, chegará a uma casa onde estão três fadas. A terceira dá-lhe a varinha de condão, a qual terá como função a “aproximação do rei” (Soares 2003:11).

Assiste-se por três vezes à transfiguração do herói que, com o auxílio da varinha de condão, vai às cavalhadas de forma incógnita. Apenas o sapato, que deixa na última visita, a identificará. Surge então a função reconhecimento do herói. O rei procura a dona do sapato, o qual servirá à Gata Borralheira.

Após o reconhecimento, a Gata Borralheira vai para o palácio e casa com o rei. O conto termina com a punição da mestra e da filha.

No final, o narrador afasta-se da forma tipificada: E viveram felizes para sempre. No entanto, como manda matar a mestra e a filha - os principais oponentes à felicidade da menina - pressupõe-se esse mesmo final, acabando numa situação de falta reparada ou equilíbrio.

Podemos concluir que neste conto a acção é singular, concentrada e linear sem a “inserção das intrigas secundárias” (Reis; Lopes 2007:80), representando o percurso iniciático do herói. O esquema inicial de falta, ao ser reparado no final, cumpre o cânone habitual deste tipo de contos.