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I. 1.1 1.Literatura Tradicional de Transmissão Oral

II.2. A família: conceitos e transformações

Família é contexto natural para crescer. Família é complexidade.

Família é a teia de laços sanguíneos e, sobretudo, de laços afectivos.

Família gera amor, gera sofrimento.

A família vive-se. Conhece-se. Reconhece-se.

(Relvas 2004:10)

Para melhor entendermos o universo que envolve a adopção e a criança, não pudemos descurar a ideia de que o lugar natural para o desenvolvimento das crianças é o seio de uma família.

A família, tal como já foi dito, é o primeiro espaço onde cada indivíduo se insere, sendo neste contexto que a criança inicia a sua sociabilização que a levará à articulação com a comunidade. É no seio familiar que se faz a transmissão de valores, costumes e tradições,

sendo neste que os mais jovens os absorvem e se adaptam à existência de regras com as quais terão de conviver quando inseridos na sociedade real. Como afirma João Seabra Diniz,

Estas experiências dos primeiros tempos de vida vão constituir os elementos de base da futura organização da personalidade, sendo decisivas para a vivência que a pessoa terá de si própria e do mundo e para a maneira como ela se colocará nas situações, agirá e reagirá (Diniz 2004:11).

A família funciona assim como o lugar onde se aprende a viver, a ser e a estar e onde se inicia o processo de consciencialização dos valores inerentes à sociedade. A este respeito, James Casey defende que “os valores morais não florescem no vácuo, antes se relacionam de modo subtil com as estruturas sociais. A família é um vínculo crucial entre ambos” (Casey 1989:29). A família tem igualmente um importante papel educativo, sendo precursora de desenvolvimento das capacidades cognitivas e na estruturação das características afectivas das crianças. No preâmbulo da Convenção dos Direitos da Criança, é destacada a importância da família reconhecendo-a como “elemento natural e fundamental da sociedade e meio natural para crescimento e bem-estar de todos os seus membros, e em particular as crianças” (Preâmbulo Convenção dos Direitos da Criança 1989:3).

Torna-se assim essencial que as crianças se desenvolvam num meio familiar onde impere a intimidade, a protecção, a solidariedade e a afectividade, pois “a satisfação das necessidades afectivas da criança é tanto ou mais importante do que a satisfação das suas necessidades biológicas” (Rodrigues 1994:158). Nesta perspectiva, “a compreensão profunda das relações familiares primárias revelam-se duma riqueza que parece inesgotável para a compreensão do homem e das sociedades por ele formadas” (Diniz 2004:11).

A função essencial da família é sem dúvida dar suporte social e emocional aos seus membros e criar e educar os filhos, ajudando-os a lidar com as crises próprias do desenvolvimento. Como afirma Saraceno,

a família revela-se como um dos lugares privilegiados de construção social da realidade(...) é dentro das relações familiares que os próprios acontecimentos da vida individual recebem o seu significado e através deste são entregues à experiência individual: o nascer e o morrer, o crescer, o envelhecer, a sexualidade, a procriação (Saraceno 1992:12).

Ao longo das últimas décadas, o conceito de família tem sofrido inúmeras mudanças, quer nas suas funções, enquanto sistema vivente, quer nas funções de cada um dos elementos que a compõem. Na clássica definição de Murdock,

A família é o grupo social caracterizado por residência em comum, cooperação económica e reprodução. Inclui adultos de ambos os sexos, dois dos quais, pelo menos, mantêm uma relação sexual socialmente aprovada, e uma ou mais crianças dos adultos que coabitam com relacionamento sexual, sejam dos próprios ou adoptadas (Murdock apud Amaro 2004: 2).

Embora esta definição se possa aplicar a muitas das famílias actuais, não podemos pensar que a estrutura familiar é estanque e imóvel face às mudanças socioculturais e tecnológicas cujas variáveis ambientais, sociais, económicas, culturais, políticas e religiosas, têm originado novas formas de família. Da família tradicional e alargada evolui-se para a família nuclear e para outras formas de família: as famílias monoparentais, as famílias reconstituídas, as famílias em união de facto, as famílias sem filhos ou famílias adoptivas (Alarcão 2006:203). A este respeito, Ana Paula Relvas afirma que actualmente “as formas de famílias são tantas e tão diversas que por vezes se coloca a questão de saber se determinado núcleo afectivo- relacional é ou não família” (Relvas 2004:6).

Desta forma, a família tem sido conotada com uma multiplicidade de imagens, o que faz com que a sua definição não seja consensual. Não obstante, consideramos que há semelhanças em vários aspectos, nomeadamente, a família é: “um sistema, um conjunto de elementos ligados por um conjunto de relações, em contínua relação com o exterior” (Sampaio e Gameiro apud Alarcão 2006:39); “rede complexa de relações e emoções na qual se passam sentimentos e comportamentos” (Gameiro apud Alarcão2006:39); “sistema de interacção que supera e articula dentro dela os vários componentes individuais” (Andolfi apud Alarcão 2006:40); “um sistema, um todo, uma globalidade” (Relvas 2004:10).

Muito mais que chegar a uma definição de família, que como vimos pode ser inexacta e insuficiente, importa para o nosso estudo o impacto que esta pode ter no desenvolvimento dos mais jovens, sobretudo para aqueles que desde muito cedo são privados da convivência com a sua família biológica ou vivem em famílias recompostas.

Para Maria Arlete da Silva, a família é basilar no desenvolvimento do indivíduo, atribuindo-se “muitas das perturbações de ordem psicológica, certo insucesso escolar, muitos casos de marginalidade e delinquência juvenil”, à falta de uma família estável (Silva,

1985:176). A mesma autora afirma ainda que “crianças privadas da estimulação afectiva nos primeiros tempos de vida desenvolvem-se com dificuldade” (Idem,174). Corroborando esta visão, João Seabra Diniz também defende que “os primeiros tempos de vida se revestem da maior importância, certas aquisições não poderão fazer-se de todo, ou não poderão fazer-se bem, se durante esse período não for proporcionado à criança uma relação de suficiente qualidade” (Diniz 2004:21-22). Destacando esta importância, Raul Brandão recorda a sua infância e afirma,

O que sei de belo, de grande, de útil aprendi-o nesse tempo; o que sei das árvores, da ternura, da dor e do assombro, tudo me vem desse tempo…Depois não aprendi coisa que valha. Confusão, balbúrdia e mais nada. Vacuidade e mais nada. Figuras equívocas, ou, com raras excepções, sentimentos baços; Amargor e mais nada. Nunca mais... Nunca Londres ou a floresta americana me incutiram mistério que valesse o dos quatro palmos do meu quintal (Brandão apud Diniz 2004:91).

A instabilidade biológica e económica sentida outrora é hoje substituída pela instabilidade das uniões (Nazareth 1985:21). As crianças crescem cada vez mais em diferentes ambientes familiares, sendo muito frequentes as situações de divórcio ( Alarcão 2006:206). O casal que se desfaz, a morte de um dos pais, o desconhecimento dos seus progenitores são circunstâncias que conduzem a sentimentos e atitudes contrastantes, “não obstante as crianças, são crianças, e não conseguem viver as situações tão facilmente como os adultos imaginam” (Copper-Royer 2008:95). Assim, é fundamental que a criança passe por estes processos sem se envolver em conflitos dolorosos e sem perturbações, de tal forma que carregue consigo consequências para toda a vida, principalmente se estes forem mais novos. Segundo Copper - Royer, a separação dos pais “traz-lhes amargura e tristeza”, constituindo “uma ameaça para o seu lugar enquanto criança: corre o risco, mais uma vez, de ser considerada uma pessoa crescida” (Copper-Royer 2008:127-87). Quando a família é recomposta, normalmente a criança rejeita a pessoa que lhe vem invadir o lar numa tentativa de ocupar o lugar que o pai ou a mãe deixou vazio, comportando ainda o peso de relembrar um relacionamento anterior. Surgem as palavras “madrasta” e “padrasto”, com conotação negativa, para se referir a uma pessoa que entendemos como má, assunto que retomaremos mais adiante.

Um outro exemplo de família que é importante referir no âmbito do nosso trabalho são as famílias adoptivas, “caracterizadas hoje, na sua maioria pelo facto de acolherem no seu

seio crianças e adolescentes que não têm laços de sangue com aqueles pais, mas que estão ligados por laços afectivos e legais” (Alarcão 2006:220). Nestes casos, o conceito de família ultrapassa os limites do biológico, existindo uma sobrevalorização dos afectos. Estas revestem-se de enorme importância, pois, ao conferir à criança um lugar numa família, esta irá proporcionar “um conjunto de posições sociais que definem a sua relação no contexto da sociedade”. Num processo de socialização bem sucedido, a criança adoptada interioriza as normas de uma cultura, tornando-se membro da sociedade (Amaro s/d:8).

Embora actualmente se “acentue a similitude entre os pais adoptivos e os pais naturais (...) o facto é que, do ponto de vista sociológico, os pais adoptivos estão numa posição bastante diferente dos pais naturais” (Idem,9). Ao casal que deseja ter filhos não é feita qualquer exigência, enquanto, no caso dos pais adoptivos, “estes têm que ter certas características no que respeita à idade e às condições económicas e psicológicas.” (Idem, ibidem)

Por sua vez, a criança adoptada inicia um percurso, por vezes complexo, para criar vínculos afectivos com a nova família, sendo uma das questões que tem preocupado os investigadores: “ será que as crianças adoptivas têm maiores problemas de desenvolvimento do que os filhos naturais?” (Idem,10). Alguns estudos demonstram que de facto as crianças adoptadas têm geralmente mais problemas, havendo um “maior número de adoptados com perturbações da personalidade” (Schechter apud Amaro s/d:10), podendo este facto estar relacionado “com a reacção psicológica do adoptado ao saber que é adoptado, bem como com as fantasias sobre as razões pelas quais foram dados para adopção pelos pais naturais” (Amaro s/d: 10). Por outro lado, João Seabra Diniz afirma que:

a excessiva preocupação com a origem biológica é um problema de adulto(...)esse problemas dos adultos pode repercutir-se sobre a criança. Por isso pode dizer-se que um filho adoptado não encontrará especiais dificuldades, no seu desenvolvimento como filho, se os pais adoptivos não sentirem especiais dificuldades como pais (Diniz 2004:127).

O mesmo autor afirma ainda que “nunca foi associado à adopção nenhum síndroma ou perturbação especial”. Aparecem de facto diversas situações, as quais “devem ser vistas no quadro global da dinâmica e da patologia das relações familiares” (Diniz 2004:125).

Uma outra questão que se coloca é a revelação à criança de que é adoptada, sendo “um dos momentos que mais inquietam os adoptantes (...) levantando-se dúvidas sobretudo quanto à maneira de a fazer e à altura mais oportuna” (Idem,87). Seguindo as ideias do mesmo autor, este considera três ideias fundamentais a este respeito: “o adoptado deve ser informado da sua história; deve ser feita precocemente, em qualquer caso antes da entrada para a Escola básica, e que essa revelação seja feita pelos pais adoptivos” (Idem, ibidem). Fausto Amaro apresenta a ideia de que

a história da adopção deve ser apresentada de acordo com a capacidade de entendimento da criança, sugerindo alguns autores que não lhe deveria ser comunicado antes de ela poder entender o conceito de adopção, sendo a idade ideal entre os 7 e os 10 anos, altura em que a criança entra na fase que Piaget designou por estágio das operações concretas (Amaro s/d:10-11)

Neste contexto, os contos em que esta problemática é abordada poderão ser um óptimo auxílio para gradualmente os pais discernirem os problemas mais urgentes que a própria criança põe em foco, pois como já dissemos algumas vezes, o conto ajuda a criança a compreender o seu interior e a integrar-se melhor no mundo, apaziguando as suas angústias e limitações.

Do exposto, fica o seguinte a reter: “A criança tem, pois o direito fundamental a desenvolver-se uma família em que alguém (pais ou substitutos) assegure a satisfação de todas as suas condições (materiais e afectivas) de desenvolvimento integral e harmonioso” (Rodrigues 1994:159).

II.3. A parentalidade observada na perspectiva das tradições populares e