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A aplicabilidade imediata – artigo 5º, §1º, da Constituição Federal

2 O CARÁTER FUNDAMENTAL DO DIREITO À SAÚDE

2.1 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.1.4 O regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais sociais

2.1.4.3 A aplicabilidade imediata – artigo 5º, §1º, da Constituição Federal

Os sistemas jurídicos democráticos têm explicitado certo zelo no que tange à efetivação dos direitos e garantias considerados como essenciais para a pessoa humana. Vale dizer, tais sistemas têm demonstrado uma preocupação no sentido de superar, em definitivo, a concepção formalista do Estado de direito, segundo a qual os direitos fundamentais teriam a sua eficácia condicionada à atuação do legislador.168

Toda essa preocupação justifica-se em face do risco a que se expõem os direitos fundamentais a um possível esvaziamento do seu conteúdo diante da atuação (inadequada) ou da inação do legislador. Os efeitos dessa neutralização dos direitos estabelecidos na Lei Fundamental foram claramente notados na Alemanha, no contexto do nazismo.169

Na Alemanha nazista, a concepção de que os direitos albergados na Constituição não possuíam aplicabilidade imediata e que, em verdade, eles dependiam da atuação do legislador, bem como a falta de tutela judicial direta de tais direitos representaram fatores que contribuíram para a derrocada do ideal democrático da Constituição de Weimer. Assim, o caminho estava livre para a instauração de um regime totalitário, o que ocorreu a partir de 1933. Após esse período totalitário, a Lei Fundamental de 1949 demonstrou uma reação às falhas cometidas no passado a partir da adoção de alguns princípios, tais como “o da proteção judicial dos direitos fundamentais, o da vinculação dos Poderes Públicos aos direitos fundamentais e o da aplicação direta e imediata destes, independentemente de tradução jurídica pelo legislador”.170

Dessa forma, fala-se no princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais em face dos fatos e da concepção jurídica formalista que (pre)dominava no “senso comum teórico dos juristas”171

em meio a uma realidade de menoscabo dos direitos fundamentais.

A Constituição brasileira de 1988 incorporou o princípio ora em espeque a partir do seu art. 5º, §1º172, em que se assevera que todas as normas de direitos fundamentais devem

168

MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 251.

169

MENDES; COELHO; BRANCO, loc. cit.

170

MENDES; COELHO; BRANCO, loc. cit.

171

Luís Alberto Warat, metaforicamente, caracteriza o senso comum teórico “como a voz ‘off’ do direito, como uma caravana de ecos legitimadores de um conjunto de crenças, a partir das quais, podemos dispensar o aprofundamento das condições e das relações que tais crenças mitificam”. WARAT, Luís Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, v. 3, n. 5, p. 48-57, 1982. p. 54.

172

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

ser aplicadas e ter efetividade. Além da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos fundamentais, o supramencionado dispositivo estabelece aos poderes públicos “o dever de extrair das normas que os consagram (os direitos fundamentais) a maior eficácia possível, outorgando-lhes, neste sentido, efeitos reforçados relativamente às demais normas constitucionais”.173

Quanto à abrangência da norma, ou seja, se a norma é aplicável a todos os direitos fundamentais ou se está restrita aos direitos (individuais e coletivos) do art. 5º, da CF/88, Sarlet sustenta a aplicabilidade imediata para todos os direitos fundamentais em uma acepção ampla. Vale dizer, a aplicabilidade imediata abrange todos os direitos fundamentais previstos nos arts. 5º a 17º, os direitos fundamentais previstos em outras partes da Constituição e nos tratados internacionais.174

Nesse sentido, Miguel Carbonell assevera que os direitos sociais (incluindo o direito à saúde) devem ser compreendidos “como derechos plenamente exigibles ante todas las autoridades del Estado, en todos sus niveles de gobierno”.175

Prestigia-se, de tal modo, a força normativa da Constituição176, visto que os direitos fundamentais sociais devem orientar- se rumo “a maior eficácia possível, propiciando, assim, o desenvolvimento da dogmática e da interpretação constitucional”.177

No que se refere ao significado e alcance do art. 5º, §1º, da CF, a doutrina jurídico-constitucional vem apresentando dissenso sobre a matéria. De um lado, parte da doutrina entende que a norma sub examine não pode ir contrariar a natureza das coisas, uma vez que a maioria dos direitos somente alcançaria a sua eficácia nos termos da lei. A outra parte da doutrina, por sua vez, entende que todas as normas (até as de cunho programático) podem ensejar, em face da sua aplicabilidade imediata, o pleno gozo de direito subjetivo individual, independentemente de prévia materialização legislativa.178

Em síntese, pode-se afirmar que, em regra, as normas que salvaguardam “os direitos fundamentais democráticos e individuais são de eficácia contida e aplicabilidade

§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

173

SARLET, 2012, p. 272.

174

Ibid., p. 261-263.

175

CARBONELL, Miguel. Eficacia de la Constitución y derechos sociales: elementos para una teoría compleja. In: LEITE, George Salomão; LEITE, Glauco Salomão (Coords.). Constituição e efetividade constitucional. Salvador: Jus Podivm, 2008. p. 261.

176

Cf. HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Traduzido por Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.

177

Ibid., p. 27.

178

imediata”.179

Por outro lado, as normas que definem os direitos sociais tendem a possuir igualmente a aplicabilidade imediata, contudo, algumas normas, notadamente as que fazem menção à necessidade de lei integradora, são de eficácia limitada e aplicabilidade indireta.180

Esse é um tema assaz polêmico e, destarte, passa-se a abordar alguns aspectos gerais do mesmo, notadamente no que tange aos direitos sociais. Para que se compreenda o alcance do art. 5º, §1º, da Constituição Federal, há de se fazer menção a duas das principais funções dos direitos fundamentais, quais sejam, a função de defesa ou de liberdade e a função de prestação social.

J.J. Gomes Canotilho, ao discorrer sobre as funções dos direitos fundamentais, afirma que estes direitos fundamentais atendem a função de direitos de defesa dos cidadãos a partir de dois aspectos: 1) instituem, no plano jurídico-objetivo, normas proibindo (de competência negativa) as ingerências do poder público na esfera jurídica individual; 2) acarretam, no plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer direitos fundamentais (liberdade positiva), bem como o de exigir omissões dos poderes públicos (liberdade negativa).181

Com efeito, a aplicabilidade imediata dos direitos de defesa não costuma ser questionada, diferentemente do que ocorre com os direitos sociais (na sua dimensão prestacional). Vale dizer, os direitos de defesa geralmente se voltam para um comportamento de abstenção do Estado e, portanto, não se observa, em regra, o condicionamento da concretização dos aludidos direitos a uma atuação do Estado e/ou dos destinatários da norma. Ademais, a plena eficácia desses direitos encontra respaldo nas próprias normas constitucionais que, em regra, já preveem a suficiente normatividade e a independência de intermediação do Poder Legislativo.182 Em outras palavras, no âmbito da função dos direitos de defesa, “a norma contida no art. 5º, §1º, da CF tem por objetivo precípuo oportunizar a aplicação imediata, sem qualquer intermediação concretizadora, assegurando a plena justiciabilidade destes direitos, no sentido de sua exigibilidade em Juízo”.183

Por outro lado, a função de prestação social dos direitos fundamentais está ligada, em sentido estrito, ao “direito do particular a obter algo através do Estado (saúde, educação, segurança social)”.184 Trata-se de direitos instituídos com o fito de amenizar as desigualdades

179

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 165. 180 SILVA, 2007, p. 165. 181 CANOTILHO, 1999, p. 383. 182 SARLET, 2012, p. 275. 183 Ibid., p. 275. 184

fáticas da sociedade, como uma decorrência lógica do sentido social do Estado. Assim, “o seu objeto consiste numa utilidade concreta (bem ou serviço)”.185

Ocorre, todavia, que a maioria dos direitos de cunho prestacional, seja pelas suas peculiaridades, seja pela forma como são mencionados na Constituição, acaba dependendo da intermediação do legislador para serem concretizados de forma plena. Ou seja, os direitos à prestação material têm a sua efetivação sujeita a certos limites condicionantes, tais como a riqueza nacional.186 Dessa forma, “a efetivação desses direitos implica favorecer segmentos da população, por meio de decisões que cobram procedimento democrático para serem legitimamente formadas”187, sendo que tudo aponta para “o Parlamento como a sede precípua

dessas deliberações e, em segundo lugar, a Administração”.188

J. J. Gomes Canotilho, ao ponderar sobre a aplicabilidade direta dos direitos fundamentais, afirma que tais direitos são regras e princípios jurídicos, imediatamente eficazes, por meio da Constituição, e “não através da auctoritas interpositio do legislador”.189 O autor alerta que a aplicabilidade imediata proporciona uma normatividade qualificada e, portanto, nem sempre os direitos e garantias dispensam a concretização a partir das entidades do Poder Legislativo. Assim sendo, “a aplicabilidade directa das normas consagradoras de direitos, liberdades e garantias não implica sempre, de forma automática, a transformação destes em direitos subjectivos, concretos e definitivos”.190

Com isso, pode-se concluir que a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais abrange os direitos fundamentais sociais, no entanto, em alguns casos específicos, tal aplicabilidade direta não proporcionará direitos subjetivos aferíveis concretamente pelos indivíduos. Por outro lado, nos casos em que a violação à obrigação estatal seja clara, “las acciones judiciales deben estar dirigidas a obtener del Estado la realización de la conducta debida para reparar la violación del derecho, del mismo modo que frente a la violación de cualquier derecho civil o político”.191

Feitas essas considerações, pode-se constatar algumas das principais preocupações presentes nesse trabalho, quais sejam: a) verificar a atual situação de (in)efetividade do direito à saúde no Brasil; b) analisar, ante a judicialização da saúde, quais

185

MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 259.

186

Ibid., p. 260.

187

Ibid., p. 261.

188

MENDES; COELHO; BRANCO, loc. cit.

189

CANOTILHO, 1999, p. 412, (grifo do autor).

190

CANOTILHO, loc. cit, (grifo do autor).

191

ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. 2. ed. Madrid: Trotta, 2004. p. 133.

são os limites e possibilidades para falar-se em um direito à saúde enquanto direito fundamental e autoaplicável.

Uma vez que restou examinado alguns dos principais aspectos que cercam os direitos fundamentais, pode-se passar à apreciação das particularidades atinentes ao direito à saúde. No próximo tópico, busca-se trilhar um caminho que conecte a disciplina dos direitos fundamentais à fundamentalidade do direito à saúde.

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