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2 O CARÁTER FUNDAMENTAL DO DIREITO À SAÚDE

2.2 A FUNDAMENTALIDADE DO DIREITO À SAÚDE

2.2.1 O(s) sentindo(s) constitucionalmente adequado(s) de saúde

A discussão sobre o(s) (diversos) sentido(s) adequado(s) para o termo saúde remonta à antiguidade. Ao se debruçar sobre o tema, Julio Cesar de Sá da Rocha aduz que “dos pensadores da Grécia antiga aos dias atuais, a imprecisão do termo saúde revela pensamentos distintos sobre o tema”.192

Em verdade, pode-se assegurar que a ideia do que se entende por saúde atualmente reflete uma verdadeira evolução histórica que retrata o movimento da busca pela saúde.

Nesse sentido, Germano Schwartz elucida que “a busca pela saúde é uma realidade presente desde os primórdios da humanidade”.193

Em geral, as pessoas buscavam alcançar um objetivo: a cura dos males que afligiam os seres humanos. Com isso, evidencia- se uma acepção curativa da saúde.194

Era natural que os seres humanos se preocupassem, em princípio, com a busca da cura das enfermidades que lhes atingiam, afinal, em diversos momentos da história, os homens foram acometidos por doenças que colocaram em risco a sua própria sobrevivência. Nos tempos bíblicos, os surtos de lepra, peste e cólera representaram algumas das principais

192

ROCHA, Julio Cesar de Sá. Direito da saúde. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 16.

193

SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: Efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 28.

194

preocupações da civilização. Na Idade Média, igualmente, a peste negra foi responsável por causar a morte de milhões de pessoas. Atualmente, pode-se afirmar que, inobstante os avanços nos tratamentos médicos, a AIDS e o câncer ainda representam doenças com potencial efeito destrutivo para os seres humanos.195

O primeiro sentido de saúde pode ser conferido aos gregos a partir do brocardo

Mens Sana In Corpore Sano. De acordo com o pensamento grego, a saúde significava o

equilíbrio entre o corpo e a mente e, além disso, a beleza se afigurava como um marco importante para o ser saudável.196

A Idade Média, por outro lado, representou um retrocesso no âmbito da saúde. Com a queda do Império Romano e o advento do feudalismo, as crenças na divindade dos monarcas e nas influências da Igreja criaram um ambiente propício para a disseminação de ideias segundo as quais as doenças representavam um castigo divino. Com isso, os cuidados sanitários resumiam-se à preocupação de retirar os doentes da interação social, para evitar a disseminação da própria doença. O único contraponto relatado neste período foi o fortalecimento da caridade e o surgimento (ainda rudimentar) dos primeiros hospitais.197

Nos séculos XII e XVIII, já se nota as condições mínimas necessárias para o surgimento e crescimento da moderna saúde pública; no entanto, em tais séculos, a saúde ainda é tida como a ausência de doenças.198

No bojo da sociedade industrial do século XIX, a saúde reflete uma acepção liberal notoriamente preocupada com a reposição do indivíduo ao mercado de trabalho. Tratava-se, ainda, de uma saúde curativa em meio ao aspecto negativo da saúde, qual seja, a ausência de enfermidades.199

As transformações sociais características do século XX e as grandes guerras promoveram um (re)pensar da saúde restrita ao aspecto curativo. A acepção preventiva da saúde começa a ganhar força, mormente a partir do Welfare State. Vale dizer, com o advento de um Estado intervencionista, a saúde deveria passar a ser encarada como um direito dos cidadãos e, por conseguinte, caberia ao Estado proporcioná-la.200

Acerca da evolução do significado atribuído à saúde, Germano Schwartz esclarece que o sentido desse vocábulo perpassou por várias teses, “basicamente a tese ‘curativa’ (cura

195 SCHWARTZ, 2001, p. 28. 196 Ibid., p. 29-30. 197

FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde: parâmetros para sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 78.

198

SCHWARTZ, op. cit., p. 32.

199

Ibid., p. 33.

200

das doenças) e a tese ‘preventiva’ (mediante serviços básicos de atividade sanitária). Em verdade, ambas as teses têm como base a visão de que a saúde é a ausência de doenças (uma visão organicista)”.201

Somente após a reorganização política internacional ocorrida no século XX e a criação da Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1946, é que surge o marco teórico do sentido usualmente atribuído à saúde. O preâmbulo da Constituição da OMS estatui que a

saúde é o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças.

O conceito proposto pela OMS, portanto, amplia a noção de saúde, uma vez que o aspecto estritamente negativo inerente à ausência de doenças passa a coexistir com o aspecto positivo que se volta para a promoção do direito à saúde por intermédio do “completo bem- estar físico, mental e social”.202

Muito embora a noção da OMS tenha aceitação de boa parte dos profissionais que atuam no âmbito da saúde, não se pode olvidar que tal definição sofre várias censuras. Uma das principais críticas seria a falta de operacionalidade da definição propugnada pela OMS em face do amplo grau de subjetividade consagrado na expressão bem-estar, por exemplo. Nesse sentido, Marco Segre e Flávio Carvalho Ferraz afirmam que:

Essa definição, até avançada para a época em que foi realizada, é, no momento, irreal, ultrapassada e unilateral. [...]. Trata-se de definição irreal por que, aludindo ao “perfeito bem-estar”, coloca uma utopia. O que é “perfeito bem-estar?” É por acaso possível caracterizar-se a “perfeição”?203

Ora, o que é bem-estar para um indivíduo pode ter um sentido completamente distinto para outro sujeito. Hans-Georg Gadamer, ao analisar o termo bem-estar, propõe alguns questionamentos que remetem à subjetividade e a imprecisão do termo: “‘bem-estar’ é realmente alguma coisa ou, no final, nada mais do que um não sentir mais dor, uma retirada de dor e mal-estar? Pode-se, de fato, imaginar um estado permanente de bem-estar?”204

Além disso, a não operacionalidade desse sentido de saúde também deriva do alto grau de dependência das diversas escalas decisórias que podem não efetivar as suas diretrizes. Vale dizer, a partir do momento em que as diversas escolhas políticas a serem realizadas recaem sobre o Estado, a vontade política passa a figurar como um importante “instrumento

201 SCHWARTZ, 2001, p. 35. 202 Ibid., p. 35. 203

SEGRE, Marco; FERRAZ, Flávio Carvalho. O conceito de saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 31, n. 5, p. 538-542, out. 1997. p. 539.

204

de inaplicabilidade do conceito da OMS, uma vez que as verbas públicas correm o risco de não serem suficientes para a consecução do pretendido bem-estar físico, social e mental”.205

Diante das críticas apresentadas ao conceito de saúde propugnado pela OMS, questiona-se: quais seriam o(s) sentido(s) constitucionalmente adequado(s) para o termo saúde? Diversos autores tentam responder esse questionamento e, por via de consequência, estabelecer algumas noções em torno do direito à saúde.

De acordo com Julio Cesar de Sá da Rocha, a conceituação da saúde deve ser feita continuamente à luz da “afirmação da cidadania plena”206 e da “aplicabilidade dos dispositivos garantidores dos direitos sociais da Constituição Federal”.207

Nesse particular, a saúde deveria ser compreendida a partir de uma apreciação sistemática, em que a ideia de bem-estar seria acompanhada das noções trazidas pela OMS.208

Sérgio Resende Carvalho, em obra sobre a saúde coletiva, conceitua a saúde como “um processo/estado em que indivíduos e coletivos têm o máximo de capacidade para viver a vida de maneira autônoma, reflexiva e socialmente solidária”.209 Assim, a produção da saúde perpassa pela salvaguarda de ações integrais que venham a prevenir, curar, reabilitar e promover a saúde nos planos individual e coletivo.

Mauricio Caldas Lopes, em livro sobre a judicialização da saúde, busca identificar, a partir do próprio texto constitucional, o conteúdo essencial do direito à saúde, isto é, o núcleo duro do aludido direito. Em verdade, tal conteúdo essencial acaba por coincidir tão somente em parte com o conteúdo do mínimo existencial exigido pela dignidade da pessoa humana, para alcançar sentidos constitucionais mais amplos, tais como o direito à educação, moradia, trabalho e subsistência.210

Germano Schwartz211, ao analisar a efetivação da saúde sob uma perspectiva sistêmica, entende que a saúde reflete um sistema inserido em um sistema mais amplo (a vida), e com tal sistema interage. A partir dessa leitura, a saúde comunica-se com os demais sistemas sociais e, por via de consequência, tal comunicação seria o alicerce da sua estabilidade. Diante disso, a saúde representaria um processo sistêmico que evolui (e varia) de acordo com a sua própria evolução e com o avanço (ou não) dos demais sistemas sociais com os quais se relaciona. Nesse sentido, o autor esclarece que “a verdade é que jamais se poderá

205 SCHWARTZ, 2001, p. 36. 206 ROCHA, 2011, p. 17. 207

ROCHA, loc. cit.

208

Ibid., p. 18.

209

CARVALHO, Sérgio Resende. Saúde coletiva e promoção da saúde: sujeito e mudança. São Paulo: Hucitec, 2010. p. 157.

210

LOPES, Mauricio Caldas. Judicialização da saúde. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 75.

211

conhecer a totalidade do sistema-saúde, uma vez que tal sistema está sempre aberto ao mundo, ao próprio homem e de suas decisões a respeito”.212 Em arremate, a saúde poderia ser entendida como:

[...] um processo sistêmico que objetiva a prevenção e cura de doenças, ao mesmo tempo que visa a melhor qualidade de vida possível, tendo como instrumento de aferição a realidade de cada indivíduo e pressuposto de efetivação a possibilidade de esse mesmo indivíduo ter acesso aos meios indispensáveis ao seu particular estado de bem-estar.213

Marco Segre e Flávio Carvalho Ferraz, ao avaliarem criticamente o conceito proposto pela OMS, propõem uma reflexão interessante: “não se poderá dizer que saúde é um

estado de razoável harmonia entre o sujeito e a sua própria realidade?”214

Nesse trabalho, diante das críticas apresentadas ao conceito de saúde propugnado pela OMS, entende-se que o sentido de saúde deve ser compreendido-interpretado-aplicado continuamente à luz da afirmação da cidadania plena e da “aplicabilidade dos dispositivos garantidores dos direitos sociais da Constituição Federal”,215

sem deixar de observar alguns limites impostos ao intérprete/aplicador do direito, tais como a coerência, integridade e tradição do direito. Vale dizer, o direito à saúde não pode ser aprisionado no interior de conceitos e/ou aplicado estritamente conforme a consciência216 do intérprete/aplicador do direito. Portanto, o sentido adequado de saúde deve ser analisado à luz das demais normas constitucionais (sobretudo no que tange aos diversos direitos afins ao direito à saúde)217 e do caso concreto, afinal este “representa a síntese do fenômeno hermenêutico-interpretativo”.218

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