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Escassez e saúde: uma análise do conflito entre microjustiça e macrojustiça

3 COMO O DIREITO À SAÚDE É CONCRETIZADO NO BRASIL?

3.1 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO SIMBÓLICA

3.2.4 A escassez de recursos

3.2.4.3 Escassez e saúde: uma análise do conflito entre microjustiça e macrojustiça

Essa questão das limitações econômicas se coloca de uma forma peculiar na apreciação do direito à saúde. Com efeito, o avanço da medicina e da tecnologia acabou propiciando uma série de conquistas para a humanidade, tais como o aumento da expectativa de vida, o desenvolvimento de novos medicamentos e uma realidade em que os tratamentos explicitam um alto custo da saúde.504 Nesse cenário, o enfrentamento da escassez “é inexorável, mesmo no que tange à saúde”.505

Além disso, a escassez na área da saúde abrange os recursos não financeiros, “como órgãos, pessoal especializado e equipamentos, que são escassos em comparação com as necessidades”.506 Um exemplo fático dessa escassez são as filas para os transplantes de órgãos que, no Brasil, podem durar anos ou até custar a vida do paciente que aguarda. Em 2005, por exemplo, seria necessária a existência de 62.820 órgãos e tecidos para que as filas de espera fossem extintas.507

A escassez, dos recursos financeiros ou não financeiros, encontra um maior eco na área da saúde, uma vez que esta envolve diretamente a vida e a dignidade da pessoa humana. Ou seja, fala-se de vidas humanas e, em contrapartida, dos recursos (escassos) necessários ao atendimento demandado para que essas vidas sejam preservadas de uma forma saudável e digna.508

Vale dizer, partindo-se do pressuposto de que os direitos demandam custos, conclui-se que há uma escassez de recursos (financeiros) em detrimento do volume das necessidades humanas. Nesse contexto, faz-se necessária a realização de escolhas.

O Estado, enquanto principal ente responsável por implementar os direitos sociais, vivencia essa realidade de escassez e de escolhas. Dessa forma, ante a um orçamento limitado, “o Estado faz a opção entre investir em (i) moradia ou (ii) educação. Lamentavelmente, nem

504

Sobre a justiça e o alto custo da saúde, Cf. DWORKIN, Ronald. A justiça e o alto custo da saúde. In: A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. 2. ed. Traduzido por Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 431-449. 505 AMARAL, 2010, p. 81. 506 Ibid., p. 74-75. 507

SUPER INTERESSANTE. Quantos órgãos acabariam com a fila de transplantes no Brasil? Disponível em: <http://super.abril.com.br/superarquivo/2005/conteudo_365062.shtml>. Acesso em: 22 jul. 2014.

508

“Na Inglaterra, por exemplo, os médicos do sistema nacional de saúde são obrigados a distribuir recursos escassos como máquinas de diálise renal e órgãos para transplante, e têm elaborado diretivas informais que contemplam a idade, o estado geral de saúde, a qualidade de vida e as perspectivas dos possíveis pacientes, bem como as perspectivas de cuidados adequados proporcionados pela família ou pelos amigos”. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. 2. ed. Traduzido por Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 447.

sempre há recursos para ambos. Para o Estado, muitas dessas opções são dramáticas – impondo dificuldades e responsabilidades aos agentes públicos. São as escolhas trágicas...”509

Diante disso, um dos maiores desafios impostos ao sistema de saúde brasileiro reside na alocação dos recursos (escassos). Por exemplo: “quem atender? Quais os critérios de seleção? Prognósticos de cura? Fila de espera? Maximização de resultados (número de vidas salva por cada mil reais gasto, p. ex.)?”.510

Trata-se, aqui, das decisões alocativas que “são, basicamente, de duas ordens: quanto disponibilizar e a quem atender”.511

Nesse particular, reveste-se de maior importância uma visão crítica no que se refere ao quanto vem sendo disponibilizado para a saúde no Brasil. Em face dos números já comentados anteriormente, pode-se afirmar que as escolhas orçamentárias têm sido realmente trágicas para a saúde brasileira. Como visto, os gastos públicos na área da saúde são reduzidos quando comparados ao que o país arrecada, subsistindo uma política neoliberal de ajuste fiscal, que só contribui para o desvirtuamento das políticas sociais.

De tal modo, a escassez começa a ser questionada no âmbito da saúde em virtude da insuficiência dos investimentos e/ou da má gestão dos recursos existentes.512 Nesse diapasão, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 29, de 13 de setembro de 2000, que estabelece regras para assegurar os recursos mínimos aplicáveis no financiamento das ações e serviços públicos de saúde.

A EC 29/00 (ou Emenda Constitucional da Saúde) reflete muito bem a ideia da escassez no âmbito da saúde, haja vista a mesma ter sido criada com o fito de evitar os problemas inerentes ao financiamento do SUS na década de 1990. Em tal década, sequer havia algum parâmetro legal que vinculasse os entes da federação a destinarem parcelas dos seus recursos para a saúde.513

A EC nº 29 promoveu alterações nos arts. 34, 35, 156, 160, 167 e 198 da Constituição Federal, bem como acrescentou um artigo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), com o fito de assegurar recursos mínimos para o financiamento da saúde. Aqui, insta analisar se esses percentuais vêm sendo efetivamente cumpridos. 509 GALDINO, 2005, p. 160. 510 AMARAL, 2010, p. 17. 511 Ibid., p. 81. 512 LIEMBERGER, 2010, p. 230. 513

CAMPELLI, Magali Geovana Ramlow; CALVO, Maria Cristina M. O cumprimento da Emenda Constitucional nº. 29. In: Caderno Saúde Pública. Rio de Janeiro: 2007. p. 1613. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csp/v23n7/12.pdf>. Acesso em: 22 jul. 2014.

Magali Geovana Ramlow Campelli e Maria Cristina M. Calvo514, em estudo que visa verificar o cumprimento da EC/29 no período de 2000 a 2003, apontam que a União deixou de aplicar em saúde um valor acumulado de R$1,8 bilhão nesse período.515 O mesmo ocorreu com os Estados que, até 2003, já apresentavam um déficit acumulado que representa uma dívida de R$5,29 bilhões com o SUS.516

Esses dados são colhidos a partir do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS),517 que disponibiliza o histórico do percentual mínimo a ser investido e do percentual efetivamente aplicado de acordo com a EC nº 29. Posto isso, nota- se que, entre 2000 a 2005,518 o número de estados que descumpriu o percentual mínimo destinado à saúde foi elevado.

Entre 2006 e 2013,519 por sua vez, o índice de Estados que desatendeu o percentual estabelecido pela EC nº 29 apresentou uma diminuição, no entanto isso não explica a inadimplência que vem sendo perpetrada com a saúde ao longo dos anos.

Entre os anos de 2000 a 2013, o caso que mais chama a atenção é o do Rio Grande do Sul, que desatendeu o percentual mínimo (12%) em quase todos os anos, alcançando números como 4,32% (2003), 5,20% (2004), 4,80% (2005), 5,4% (2006), 5,8% (2007), 6,53% (2008), 7,24% (2009), 7,62% (2010), 8,04% (2011), 9,71% (2012) e 12,47% (2013). Logo, em 2013, pela primeira vez após a instituição da EC nº 29, o Estado do Rio Grande do Sul conseguiu cumprir o percentual basilar a ser destinado para a saúde.

Posto isso, há de se ressaltar que a evolução gradativa dos números em meio ao evolver do tempo não pode servir para justificar o descumprimento dos percentuais mínimos durante todos os demais anos. Em outras palavras, levando-se em consideração os números investidos entre 2000 e 2013, não resta dúvida que o Estado do Rio Grande do Sul foi o ente estatal que menos investiu em saúde no Brasil nos últimos anos.

Esse pode ser um dos sintomas de uma crise (sistêmica) na concretização das políticas públicas na área da saúde, que, recentemente, tem ganhando fôlego em face do fenômeno contingencial denominado de judicialização da saúde.

Com efeito, a judicialização da saúde representa o crescente aumento das demandas judiciais na área da saúde, o que certamente pode causar impactos no orçamento

514 CAMPELLI; CALVO, 2007, p. 1615. 515 Cf. Anexo F. 516

CAMPELLI; CALVO, op. cit., p. 1615.

517

SISTEMA DE INFORMAÇÕES SOBRE ORÇAMENTOS PÚBLICOS EM SAÚDE - SIOPS. Histórico do

percentual mínimo e aplicado pelos Estados de acordo com a EC-29. Disponível em:

<http://siops.datasus.gov.br/evolpercEC29UF.php>. Acesso em: 23 jul. 2014.

518

Cf. Anexo G.

519

previsto para a saúde. Nesse sentido, pode-se perceber que os gastos oriundos das decisões judiciais vêm aumentando vertiginosamente. De acordo com o Ministério da Saúde, por exemplo, os gastos do órgão só com a compra de medicamentos por determinação judicial variaram entre “R$ 2,4 milhões, em 2005; R$ 7,6 milhões, em 2006; R$ 17,3 milhões, em 2007; e R$ 52 milhões, em 2008”.520 É interessante observar que, nos processos contra a União, evidenciou-se uma evolução considerável nos gastos com medicamentos determinados judicialmente, sendo que o volume de ações judiciais cresce em proporções semelhantes.521

No Brasil, portanto, por uma distorção sistêmica, a concretização das políticas públicas está migrando dos Poderes Executivo e Legislativo para o Poder Judiciário. Com efeito, a judicialização da saúde insere-se no contexto da “judicialização da política, que por um lado prestigia o Poder Judiciário com discussões que são vitais para o país, mas, por outro, atesta a falência na resolução dos conflitos nas esferas que lhe são próprias”.522

Diante desse panorama, o Supremo Tribunal Federal (STF) convocou uma audiência pública em 2009 para ouvir o depoimento de especialistas, com experiência e autoridade na área do SUS, “objetivando esclarecer as questões técnicas, científicas, administrativas, políticas, econômicas e jurídicas relativas às ações de prestação de saúde”.523

Desde já, tal audiência demonstra o quão importante se tornou o Poder Judiciário na busca pela efetividade do direito à saúde.

Em face da judicialização, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)524 realizou um balanço no ano de 2011 e constatou que tramitam, no Judiciário brasileiro, cerca de 240.980 demandas judiciais na área da saúde. É interessante notar que o Rio Grande do Sul aparece no estudo como o responsável por quase metade das ações judiciais do país, isto é, por 113.953 ações envolvendo a saúde.525 É interessante observar que, nas ações judiciais relacionadas ao direito à saúde e protocoladas entre os anos de 2002 a 2009, a justiça do Estado do Rio

520

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. CNJ institui Fórum Nacional do Judiciário para a solução de conflitos na saúde pública. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view= article&id=8813&Itemid=1046>. Acesso em: 23 jul. 2014.

521

Cf. Anexo I.

522

LIEMBERGER, 2010, p 217.

523

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Despacho de convocação de audiência pública. p. 1. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Despacho_Convocatorio.pdf>. Acesso em: 23 jul. 2014.

524

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Quantidade de demandas nos tribunais. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/programas/forumdasaude/relatorio_atualizado_da_resolucao107.pdf>. Acesso em: 23 jul. 2014.

525

Grande do Sul deferiu (deferimento total) 94% dos pedidos de liminares.526 Talvez isso explique porque o Rio Grande do Sul tem desobedecido aos percentuais mínimos do orçamento a serem destinados à saúde e, além disso, tal fato reitera o papel relevante que o Poder Judiciário vem exercendo na concretização do direito à saúde.

Ocorre que, na maioria dos casos, o Poder Judiciário analisa as ações que versam sobre a saúde por meio de demandas individuais, isto é, no plano da microjustiça, da justiça do caso concreto.527 Nesses casos, a decisão judicial pode implicar “uma cadeia de ações e reações que não conseguem ser sequer imaginadas dentro da ótica estrita da microjustiça”.528 Ou seja, o dilema entre os critérios a serem adotados, nos planos da microjustiça e da macrojustiça, põe em xeque um conjunto de decisões individuais racionais que podem produzir um resultado coletivo irracional.529

Em outras palavras, o juiz, no caso concreto (microjustiça), deve avaliar se o deferimento de uma determinada prestação na área da saúde não vai comprometer, financeiramente, o acesso à saúde para toda a coletividade de cidadãos (macrojustiça). Isso sob pena do Poder Judiciário se tornar o alocador de recursos públicos no campo da saúde. Para essas situações, Gustavo Amaral530 propõe os seguintes questionamentos:

Será que mais vidas foram salvas com o provimento judicial sendo critério majoritário de alocação de recursos na saúde? Ou será que o “custo” medido em vidas dos “financiadores ocultos” das decisões alocativas tomadas nas lides, aqueles que deixaram de receber o órgão, deixaram de ter acesso à política pública que seria desenvolvida com a verba realocada é mais elevado que o benefício?

Com isso, não se propõe o Poder Judiciário enquanto instância mais adequada para a discussão dos impactos que uma decisão judicial, proferida no caso concreto (microjustiça), pode gerar no planejamento orçamentário para toda a população (macrojustiça). Nesse primeiro momento, constata-se simplesmente que, em muitos casos, a decisão proferida no plano individual pode ampliar o quadro de inefetividade do direito à saúde. Isso porque reconhecer um direito a uma pessoa – no plano da microjustiça – pode

526

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Em oito anos, Justiça do RS defere 94% das ações relacionadas ao Direito à Saúde. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/24927:em-sete-anos-justica-do-rs-defere- 94-das-acoes-relacionadas-ao-direito-a-saude>. Acesso em: 23 jul. 2014.

527 AMARAL, 2010, p. 18. 528 Ibid., p. 82. 529 Ibid., p. 97. 530 Ibid., p. 140-141.

significar a negativa desse mesmo direito (concretamente) a toda uma coletividade de pessoas (macrojustiça) que sequer são identificadas em um determinado litígio judicial.531

Virgílio Afonso da Silva, ao abordar a complexidade que cerca a tutela jurisdicional dos direitos subjetivos, assevera que uma das maiores dificuldades na obtenção de uma tutela jurisdicional adequada no âmbito dos direitos fundamentais sociais reside “no caráter coletivo desses direitos”.532

É que boa parte do direito processual brasileiro é pensado para uma litigância individual.

De tal forma, a análise da macrojustiça remonta ao aspecto sistêmico do problema, bem como ao caráter coletivo dos direitos fundamentais sociais. Busca-se, a partir de uma análise não individualizada dos direitos,533 o alcance de “soluções sistêmicas”,534 quase sempre ignoradas pela metodologia jurídica, que continua voltada para o plano da microjustiça.

Em arremate, a jurisprudência brasileira tende a não reconhecer a questão da escassez de recursos, seja por presumir a existência dos mesmos ou por considerar imoral qualquer consideração orçamentária ao se tratar de saúde.535 É que para a decisão “tomada individualmente, não há situação para a qual não há recursos”.536

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