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2 O CARÁTER FUNDAMENTAL DO DIREITO À SAÚDE

2.2 A FUNDAMENTALIDADE DO DIREITO À SAÚDE

2.2.3 O sistema organizacional de saúde no Brasil: a Constituição Federal de 1988 e o

2.2.3.2 O Sistema Único de Saúde (SUS)

Para que se tenha uma melhor intelecção do SUS, faz-se importante observar o que existia antes do mesmo. Isso porque a evolução do sistema organizacional de saúde brasileiro representa um aspecto importante para uma melhor avaliação e análise crítica do atual sistema de saúde.

A descentralização da saúde brasileira somente surge após a proclamação da República, afinal, com a instauração da federação, a responsabilidade pelas ações na área de saúde passou a ser de incumbência dos Estados. Antes desse período, no contexto imperial, a

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Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: [...]

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Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

§ 1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.

§ 2º - É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos.

§ 3º - É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei.

§ 4º - A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.

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Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:

I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos;

II - executar as ações de vigilância sanitária e epId.iológica, bem como as de saúde do trabalhador; III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde;

IV - participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico; V - incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico;

VI - fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano;

VII - participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos;

situação da saúde era rudimentar e centralizada, sendo “incapaz de responder às epidemias e de assegurar a assistência aos doentes, sem discriminação”.254

Na República Velha (1889-1930), “havia uma espécie de não-sistema de saúde, com certa omissão do poder público”.255

Trata-se de um período em que ainda predominava uma concepção liberal de Estado, segundo a qual só cabia ao ente estatal intervir em casos extremos, tais como as situações em que o próprio indivíduo ou a iniciativa privada não fossem capazes de responder pelos problemas de saúde. Naquela época ainda não havia um Ministério da Saúde e, além disso, “a saúde era tratada mais como caso de polícia do que como questão social”.256

Dessa forma, o sistema público de saúde surge em meio ao evolver da história por três vias (subsistemas): saúde pública, medicina previdenciária e medicina do trabalho. Tais subsistemas percorreram caminhos paralelos, de forma relativamente autônoma e respondendo a demandas diferenciadas.257

A saúde pública, por exemplo, caracteriza-se pela ênfase nas campanhas sanitárias (que passam da coerção à persuasão) e por separar, artificialmente, “a prevenção e a cura (tratamento), a assistência individual e a atenção coletiva, a promoção e a proteção em relação à recuperação e à reabilitação da saúde”.258 A medicina previdenciária, por sua vez, propiciava um quadro em que “somente os brasileiros que estivessem vinculados ao mercado formal de trabalho e com carteira assinada tinham acesso à assistência médica da previdência social”.259 Com relação às pessoas que não possuíam um vínculo formal de trabalho, remanesciam poucas opções: pagar pelos serviços de saúde ou tentar ser atendido em postos e hospitais municipais ou estaduais.260

Com isso, a organização da saúde brasileira foi se formando em meio a uma miscelânea de subsistemas, como pode se inferir das palavras de Jairnilson Silva Paim:

Assim, a organização dos serviços de saúde no Brasil antes do SUS vivia em mundos separados: de um lado, as ações voltadas para a prevenção, o ambiente e a coletividade, conhecidas como saúde pública; de outro, a saúde do trabalhador, inserida no Ministério do Trabalho; e, ainda, as ações curativas e individuais, integrando a medicina previdenciária e as modalidades de assistência médica liberal, filantrópica e, progressivamente, empresarial.261

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PAIM, 2009, p. 27.

255

PAIM, loc. cit., (grifo do autor).

256 Ibid., p. 29. 257 Ibid., p. 29-30. 258 Ibid., p. 31. 259 Ibid., p. 33 260

PAIM, loc. cit.

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Nesse contexto, havia uma série de instituições (públicas e privadas) que prestavam serviços na área da saúde, muitas vezes direcionadas para um mesmo público, deixando milhões de pessoas desatendidas, ou recebendo serviços com baixo padrão de qualidade. Além disso, um dado curioso é que, em 1975, um estudo elaborado pelo então Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) foi censurado pelo governo militar durante a V Conferência Nacional de Saúde. O supracitado estudo “descrevia o sistema de saúde brasileiro daquela época com seis características: insuficiente; mal distribuído; descoordenado; inadequado; ineficiente; ineficaz”.262

Em face desse panorama de crise no sistema de saúde, surge um movimento social composto por diversos segmentos da sociedade – tais como as entidades comunitárias, profissionais e sindicais, os estudantes e profissionais da área de saúde – que propôs a democratização da saúde, a reforma sanitária e a implantação do SUS. Nesse sentido, a reforma sanitária brasileira foi debatida por quase cinco mil participantes durante a VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986. O relatório final do aludido evento ensejou a elaboração do capítulo específico para a saúde na Constituição e, posteriormente, a edição das leis orgânicas da saúde que permitiram a edificação do SUS.263

Feitas essas considerações, pode-se concluir que, em face do histórico de (des)organização da saúde brasileira, os desafios impostos ao SUS foram imensos. Assim sendo, não obstante a existência de falhas (que existem, e não são poucas), não se pode deixar de reconhecer que o SUS representou uma conquista do povo brasileiro em prol de uma saúde mais efetiva e democrática.

Diante desse panorama, conforme comentado anteriormente, o art. 198 da Constituição Federal estabelece o Sistema Único de Saúde (SUS) em meio a uma rede regionalizada e hierarquizada que respeite os princípios da igualdade, integralidade e participação da comunidade. É o que se vê da leitura do artigo, in verbis:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade. [...] 262 PAIM, 2009, p. 38. 263 Ibid., p. 39-40.

Nesse ínterim, vale ilustrar os comentários de Germano Schwartz264 que, sob a lente da Teoria dos Sistemas, se refere ao SUS da seguinte forma:

Nota-se que essa organização sanitária está ligada a uma ideia sistêmica de saúde (até semanticamente), por entender que a organização deve ser feita de forma regionalizada, pretendendo-se reduzir a complexidade do tema, tratando-o a partir das peculiaridades de cada região.

Ademais, como se pode inferir da leitura do art. 198 da Carta Magna, as ações e serviços públicos integram uma rede regionalizada e hierarquizada. No âmbito da saúde, a polissemia do termo rede conduz a uma coexistência integrada das ações e serviços de saúde, evitando, assim, que os serviços sejam prestados de forma isolada e sem o mínimo de comunicação.265

Jairnilson Silva Paim, em esclarecedora obra sobre o SUS, aduz que a opção pela forma de rede regionalizada acaba possibilitando uma melhor distribuição dos diversos estabelecimentos de saúde (tais como os centros de saúde, ambulatórios e hospitais) em um determinado território, “de modo que os serviços básicos estejam mais disseminados e descentralizados enquanto os serviços especializados se apresentam mais concentrados e centralizados”.266

Dessa forma, a regionalização dos serviços de saúde implica uma gestão administrativa articulada em todas as esferas da Federação com a finalidade de que a população tenha acesso a todos os tipos de atendimento de acordo com as peculiaridades da sua região.

Ainda na seara do quanto disposto na Constituição, o SUS seria organizado a partir de três diretrizes, quais sejam: a descentralização, o atendimento integral e a participação da comunidade.

Em meio a uma atuação regionalizada, impõe-se a necessidade da descentralização e, por via de consequência, da municipalização do sistema sanitário como forma ideal para se organizar o sistema de saúde brasileiro. Um dos principais argumentos que sustentam a tese da descentralização consiste no fato de que os principais problemas no âmbito da saúde são identificados em cada Município e, portanto, seria mais eficaz um sistema que se volte para as particularidades de cada local.267 Assim sendo, de acordo com Mariana Filchtiner Figueiredo, caberia ao Município “a definição de saúde, do conteúdo do

264 SCHWARTZ, 2004, p. 104. 265 PAIM, 2009, p. 48. 266

PAIM, loc. cit.

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direito à saúde e da correspondente responsabilidade por assegurar as ações correspondentes”.268

O atendimento integral, por sua vez, contempla a ideia de que todos os serviços e ações de saúde perfazem uma realidade única e, portanto, constitui um todo que deve se desenvolver de forma contínua e harmoniosa.269 Nesse sentido, o atendimento integral envolve a promoção, a proteção e a recuperação da saúde. Mas, além da integralidade, o atendimento do SUS deve voltar-se prioritariamente para as ações preventivas, com o fito de evitar que as pessoas sejam acometidas por doenças e/ou outras enfermidades.270

Em arremate, a participação da comunidade figura como um dos principais aspectos democráticos na gestão do SUS. Assim, a comunidade pode participar das principais decisões em relação à saúde por meio da identificação de problemas e no encaminhamento de soluções, bem como por meio da fiscalização e avaliação das ações e serviços públicos de saúde.271

No plano infraconstitucional, além da Lei nº 8.142/90, destaca-se a Lei nº 8.080/90 por regular, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde, instituindo o Sistema Único de Saúde.

Sem entrar nos pormenores do conteúdo da Lei nº 8.080/90, sob pena de estarmos incidindo em uma mera reprodução do texto legal, convém ressaltar que a supramencionada lei acaba refletindo uma espécie de municipalização das ações e dos serviços de saúde em correlação com a ideia da descentralização assegurada pelo art. 198, I, da Constituição Federal.272 Além disso, o art. 6º273 da Lei nº 8.080/90, com base no art. 200 da CF/88, define

268 FIGUEIREDO, 2007, p. 98. 269 SCHWARTZ, 2001, p. 108. 270 PAIM, 2009, p. 50. 271 Ibid., p. 51. 272 Cf. artigos 15 a 18 da Lei 8.080/90. 273

Art. 6º Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS): I - a execução de ações:

a) de vigilância sanitária; b) de vigilância epId.iológica; c) de saúde do trabalhador; e

d) de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica;

II - a participação na formulação da política e na execução de ações de saneamento básico; III - a ordenação da formação de recursos humanos na área de saúde;

IV - a vigilância nutricional e a orientação alimentar;

V - a colaboração na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho;

VI - a formulação da política de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos e outros insumos de interesse para a saúde e a participação na sua produção;

VII - o controle e a fiscalização de serviços, produtos e substâncias de interesse para a saúde; VIII - a fiscalização e a inspeção de alimentos, água e bebidas para consumo humano;

IX - a participação no controle e na fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos;

as competências materiais do SUS. Nesse particular, destaca-se a assistência farmacêutica que, atualmente, “concentra o maior número de ações judiciais envolvendo o fornecimento de prestações materiais (isto é, os próprios medicamentos) pelo SUS”.274

Insta salientar, ainda, que o §1° do artigo 198 da CF/88275, o título V da lei nº 8.080/90 e a Lei nº 8.142/90276 demonstram a disciplina legal em torno do financiamento do SUS, isto é, trata-se dos recursos orçamentários que irão financiar o SUS, o que só ratifica algumas das ideias que serão apresentadas no bojo desse trabalho, no sentido de que os direitos têm custos e, portanto, uma (correta) entrada no círculo perpassa necessariamente pela superação da ideia da escassez de recursos na sua acepção dogmático-conceitual, por exemplo.

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