3 COMO O DIREITO À SAÚDE É CONCRETIZADO NO BRASIL?
3.1 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO SIMBÓLICA
3.2.3 A ineficiência da atuação administrativa: o gigantismo da estrutura burocrática
3.2.3.1 Burocracia: sentido, disfunções e crise ideológica
De acordo com o conceito popular, a burocracia é comumente associada à ideia de uma organização cujos papéis se multiplicam, os funcionários se apegam aos regulamentos e rotinas, obstando o alcance de soluções rápidas ou eficientes. Isso significa dizer que “o leigo passou a dar o nome de burocracia aos defeitos do sistema (disfunções) e não ao sistema em si mesmo”.414
Nessa etapa, sem olvidar que as origens da burocracia remontam à antiguidade415, cabe analisar o sentido do termo em meio à sua acepção moderna, especialmente no que tange aos estudos desenvolvidos por Max Weber.
Weber416, ao analisar as bases de legitimidade nas relações entre dominantes e dominados, propõe três tipos de dominação, quais sejam: a) dominação legal; b) dominação tradicional; c) dominação carismática.
412 LIEMBERGER, 2010, p. 218. 413 Ibid., p. 218. 414
CHIAVENATO, Idalberto. Introdução à Teoria Geral da Administração: uma visão abrangente da moderna administração das organizações. 7. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. p. 262.
415
Segundo Idalberto Chiavenato, “Karl Max estuda o surgimento da burocracia como forma de dominação estatal na antiga Mesopotâmia, China, Índia, Império Inca, antigo Egito e Rússia”. Ibid., p. 258.
Na dominação legal, o seu tipo mais puro é a dominação burocrática. A partir de tal modelo, “qualquer direito pode ser criado e modificado mediante um estatuto sancionado corretamente quanto à forma”.417
Assim, o governante é eleito ou nomeado e exerce o comando de autoridade sobre os seus comandados, em conformidade com as normas estabelecidas.418 Obedece-se, portanto, não a uma pessoa em si mesma, “mas à regra estatuída, que estabelece ao mesmo tempo a quem e em que medida se deve obedecer”.419
O arquétipo daquele que ordena é o superior, cujo direito de comando está legitimado por uma regra, na esfera de uma competência concreta, cujos limites e especialização se baseiam na utilidade e na qualificação profissional estipulada para a atividade do cargo.420
O mecanismo administrativo evidenciado na dominação legal é a burocracia. Tendo o seu fundamento de legitimidade na ordem legal, observa-se que as relações entre os funcionários (burocratas) e o governante, os governados e os colegas burocratas são marcadas pelo cumprimento de regras impessoais e escritas. Tal regramento contribui para o delineamento racional da hierarquia do aparato administrativo, dos direitos e deveres inerentes a cada posição etc.421 Em suma, a partir do modelo de dominação legal, a burocracia é vista como “a organização típica da sociedade moderna democrática e das grandes empresas e existe na moderna estrutura do Estado, nas organizações não estatais e nas grandes empresas”.422
Na dominação tradicional, o seu tipo mais puro é o da dominação patriarcal. A associação dominante possui um caráter comunitário e o tipo daquele que ordena é o senhor, enquanto os sujeitos que obedecem são os súditos. O quadro administrativo é composto por servidores. Aqui, obedece-se à pessoa por uma fidelidade à tradição.423 Isso significa dizer que, nesse modelo, os subordinados aceitam as ordens dos superiores porque esse sempre foi o modo pelo qual as coisas foram feitas. Desta maneira, o poder tradicional não é marcado pelo caráter racional, pode ser transmitido por herança e é conservador.424
Na dominação carismática, nota-se uma devoção afetiva à pessoa encarregada da liderança e, em especial, ao seu carisma. A associação dominante é de caráter comunitário e o
416
WEBER, Max. Os três tipos puros de dominação legítima. In: COHN, Gabriel (Org.). Max Weber. 7. ed. São Paulo: Ática, 2003. p. 128-141. 417 Ibid., p. 128. 418 CHIAVENATO, 2003, p. 26. 419
WEBER, op. cit., p. 129.
420
Ibid., p. 129.
421
CHIAVENATO, op. cit., p. 261.
422
Ibid., p. 262.
423
WEBER, op. cit., p. 131.
424
tipo que manda é o líder, enquanto os sujeitos que obedecem são os apóstolos.425 Em tal modelo, “obedece-se exclusivamente à pessoa do líder por suas qualidades excepcionais e não em virtude de sua posição estatuída ou de sua dignidade tradicional”.426
O quadro administrativo é escolhido a partir do carisma e das vocações pessoais, e não em função das qualificações profissionais. A administração, por conseguinte, carece de qualquer orientação oriunda das regras, sejam elas tradicionais ou estatuídas.427
Dessa forma, ao contrário do sentido usualmente atribuído à burocracia, Max Weber analisa o sistema burocrático como um mecanismo que possui o condão de viabilizar o alcance da eficiência organizacional. Segundo o autor:
Precisão, velocidade, certeza, conhecimento dos arquivos, continuidade, direção, subordinação estrita, redução de desacordos e de custos materiais e pessoais são qualidades que, na administração burocrática pura, e fundamentalmente na sua forma monocrática, atingem o seu nível ótimo. A burocracia planejada é, nos mencionados aspectos, comparativamente superior às restantes formas de administração, colegiada, honorífica e não profissional.428
Assim, para Weber, a burocracia reflete uma organização cujos resultados almejados estão relacionados à previsibilidade do seu funcionamento com o intuito de obter a maior eficiência organizacional. Contudo, ao analisar as consequências previstas pela burocracia na busca pela máxima eficiência, Robert K. Merton notou a existência de consequências não previstas que conduzem à ineficiência e às deficiências.429
Merton, ao tratar do tema, denomina tais anomalias como “disfunções da burocracia”.430
Com efeito, o referido autor ressalta que qualquer ação pode ser analisada em relação ao que ela atinge e, de igual modo, ao que ela falha em atingir. Posto isso, tendo em vista que o estudo weberiano se concentra predominantemente em torno dos objetivos a serem alcançados pela burocracia (precisão, confiança e eficiência), Merton adverte que essa mesma estrutura pode ser estudada a partir de outra perspectiva.431
Nesse particular, um dos aspectos a serem observados é o fato de que, em geral, o indivíduo busca adotar medidas e agir de acordo com o treinamento recebido no passado.
425 WEBER, 2003, p. 134-135. 426 Ibid., p. 135. 427
WEBER, loc. cit.
428
WEBER, Max. O que é a burocracia. p. 37. Disponível em:
<http://www.cfa.org.br/servicos/publicacoes/o-que-e-a-burocracia/livro_burocracia_diagramacao_final.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2014.
429
CHIAVENATO, 2003, p. 268.
430
MERTON, Robert K. Sociologia: Teoria e Estrutura. Traduzido por Miguel Maillet. São Paulo: Mestre Jou, 1970. p. 274-276.
431
Ocorre que, sob novas condições que não sejam reconhecidas explicitamente como diferentes, a própria solidez desse treinamento pretérito pode conduzir a uma prática repleta de procedimentos inadequados. Isto é, a “preparação pode tornar-se incapacidade”.432
É que a estrutura burocrática exerce uma pressão constante sobre o funcionário a fim de que ele seja metódico e disciplinado. Com isso, a obediência às regras (originalmente idealizadas como meios) transforma-se em um fim. Com o deslocamento dos objetivos originais, nota-se o desenvolvimento de uma rigidez e de uma inabilidade para a realização de ajustes.433 Dessa forma, “segue-se o formalismo e mesmo o ritualismo, com uma insistência indiscutida sobre a rigorosa adesão aos procedimentos formalizados”.434
Esse processo pode ser levado a tal ponto que o interesse originário de conformação com as regras pode vir a interferir na efetivação dos objetivos da organização, caso em que se evidencia o fenômeno do tecnicismo.435 Trata-se da crença em uma racionalidade cientificista e em uma burocracia técnica apta a nos dar respostas suficientes diante das demandas políticas.436
Em síntese, o processo de disfunções da burocracia pode ser abreviado da seguinte forma:
(1) Uma burocracia eficiente exige confiança de reação e estrita devoção aos regulamentos. (2) Tal devoção às regras conduz à sua transformação em absolutas; já não são concebidas como relativas a um conjunto de propósitos. (3) Isto interfere com a adaptação rápida, sob condições especiais não claramente visualizadas por aqueles que lançaram as regras gerais. (4) Assim, os mesmos elementos que favorecem à eficiência em geral, produzem ineficiência em casos específicos. Os indivíduos do grupo que não se divorciaram do significado que as regras têm para eles, raramente chegam a perceber a inadequação. Essas regras, com o correr do tempo, assumem caráter simbólico, em vez de serem estritamente utilitárias.437
Ademais, além das disfunções da burocracia, há de se observar que o crescimento do aparato burocrático está relacionado ao aumento do processo de democratização nos Estados. Nesse ínterim, “todos os Estados que se tornaram mais democráticos tornaram-se ao mesmo tempo mais burocráticos, pois o processo de burocratização foi em boa parte uma consequência do processo de democratização”.438
Com a democratização da sociedade e o aumento das possibilidades de participação social, evidenciou-se o surgimento de novas demandas a serem propostas ao
432 MERTON, 1970, p. 274. 433 Ibid., p. 275-276. 434 Ibid., p. 276. 435
MERTON, loc. cit.
436
MORAIS, 2010, p. 117.
437
MERTON, op. cit., p. 277.
438
BOBBIO, Norberto. O Futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009. p. 47.
Estado. Diante dessa realidade, a organização estatal teve que passar por uma adequação estrutural a fim de atender o crescente número de demandas. A opção adotada consiste na instauração de um aparato burocrático e, destarte, as respostas às questões democráticas surgiram organizadas burocraticamente.439
Todavia, conforme salienta Norberto Bobbio, o aparato burocrático e o sistema democrático caminham em direções diametralmente opostas. Admitindo-se o pressuposto de que uma sociedade sempre apresenta diversos graus de poder e que o sistema político pode ser representado por uma pirâmide, observa-se que “na sociedade democrática o poder vai da base ao vértice e numa sociedade burocrática, ao contrário, vai do vértice à base”.440 Isso significa dizer que enquanto a democracia apresenta um caminho ascendente, a burocracia faz o caminho descendente, como uma estratégia decisória de cunho técnico-burocrático.441
Jose Luis Bolzan de Morais, ao abordar as crises do Estado, chama a atenção para a existência de uma crise ideológica, isto é, uma tensão que abrange o déficit de legitimação que afeta a conformação do Estado Social. O pano de fundo para tal crise envolve justamente o embate entre a democratização do acesso ao espaço público da política, oportunizando a ampliação de demandas e a complexificação das pretensões sociais, e a burocratização das fórmulas para responder a tais pretensões a partir da instauração de um aparato técnico e burocrático.442
Assim, a partir da lógica da decisão burocrática (do vértice à base), o modelo técnico-burocrático será o responsável por elaborar a estratégia para o atendimento de demandas, o que conflita com a lógica da política democrática (da base ao vértice). Vale dizer, “constantemente a demanda política se vê frustrada pela ‘resposta’ técnica”.443
Esse dilema põe em confronto a democracia – enquanto forma política – e a burocracia – como arranjo funcional. E a resposta para tal questão parece ainda não ter sido alcançada: “ou se aumenta, expande e complexificam as fórmulas de tomada de decisão democrática, em particular pela incorporação de novos mecanismos de participação e de autonomização social; ou se repensa os modelos de gestão das estruturas e serviços sociais”.444
439
STRECK; MORAIS, 2014, p. 118-119.
440
BOBBIO, op. cit, p. 47.
441 MORAIS, 2011, p. 39. 442 Ibid., p. 46. 443 Ibid., p. 47. 444 Ibid., p. 47.