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A concepção materialmente aberta – artigo 5º, §2º, da Constituição Federal

2 O CARÁTER FUNDAMENTAL DO DIREITO À SAÚDE

2.1 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.1.4 O regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais sociais

2.1.4.2 A concepção materialmente aberta – artigo 5º, §2º, da Constituição Federal

A partir da dupla nota de fundamentalidade (formal e substancial) inerente aos direitos fundamentais, pode-se observar que o ordenamento jurídico pátrio explicita uma abertura material em face dos direitos fundamentais não previstos no catálogo da Constituição. Essas são as premissas para que se compreenda o (real) alcance do art. 5º, §2º, da Constituição Federal, que dispõe:

147 SARLET, 2012, p. 80. 148 Cf. CANOTILHO, 1999, p. 382. 149 CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 618. 150

CANOTILHO, op. cit., p. 382.

151

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

A regra disposta no art. 5º, §2º, da Carta Magna reflete a tradição do direito constitucional brasileiro, desde a Constituição de 1891, com algumas alterações, mais no que tange à literalidade do texto do que à própria finalidade da norma. Trata-se de dispositivo inspirado na IX Emenda da Constituição dos EUA, que, por sua vez, acabou influenciando outras ordens constitucionais, especialmente a Constituição portuguesa de 1911.152

Traduz-se, a partir de tal regra, o entendimento de que, além do sentido formal de Constituição e de direitos fundamentais, há um sentido material, na medida em que existem direitos que, por seu conteúdo, integram o corpo da Constituição e de um Estado, independente da previsão expressa no catálogo. Nesse sentido, o direito passa a se movimentar em meio a uma ordem de valores e de princípios que, vale ressaltar, não se encontra necessariamente vinculada ao reconhecimento pelo constituinte originário, mas que também possui respaldo constitucional.153

Posto isso, há de se registrar que a doutrina não se encontra pacificada com relação à possibilidade de equiparação (no que tange ao regime jurídico) entre os direitos materialmente fundamentais e os direitos previstos no catálogo constitucional. Além disso, outras questões polêmicas cercam o tema, tais como: a) a dificuldade em identificar, no texto constitucional (ou fora dele), quais os direitos que, na prática, reúnem as condições para poder ser considerados substancialmente fundamentais; b) o tema relacionado às fontes dos direitos fundamentais fora do catálogo; c) a problemática da abrangência da regra.154

Importa, nessa etapa, analisar o sentido e a abrangência da supramencionada norma, sem, contudo, pretender esgotar o tema, o que demandaria um aprofundamento que ultrapassa os limites propostos para essa pesquisa.

No âmbito da doutrina brasileira, poucos se prontificaram a enfrentar o controverso debate em torno do significado e do alcance atribuídos ao art. 5º, §2º, da CF/88. Para a maioria da doutrina155 que enfrenta a questão, predomina o entendimento segundo o

152 SARLET, 2012, p. 78. 153 Ibid., p. 78-80. 154 Ibid., p. 81. 155

Nesse sentido, por exemplo, Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins defendem que “a posição dos direitos fundamentais no sistema jurídico define-se com base na fundamentalidade formal, indicando que um direito é

qual os direitos fundamentais guardam correspondência com o reconhecimento nas Constituições formais, isto é, não caberia a defesa dos direitos fundamentais em sentido material.156

Em sentido oposto, Ingo Wolfgang Sarlet defende que a concepção materialmente aberta do sistema de direitos fundamentais requer a identificação de um sentido material de tais direitos e, ademais, “um regime jurídico-constitucional privilegiado e em princípio equivalente ao regime dos direitos fundamentais expressamente consagrados como tais pelo Constituinte”.157

Da mesma forma, George Marmelstein entende que, “por força do art. 1º, inc. III, somado com o art. 5º, §2º, da Constituição de 88, podem-se encontrar direitos fundamentais fora do Título II e até mesmo fora da Constituição”.158

Nesse sentido, segundo as lições de J. J. Gomes Canotilho, uma compreensão aberta em torno das normas concretamente consagradoras de direitos fundamentais representaria o meio para a materialização e desenvolvimento plural de todo o sistema jurídico-constitucional.159

Reconhece-se, em face do exposto, que a previsão da cláusula de abertura material indica um avanço considerável na tutela institucional dos direitos fundamentais. Por outro lado, nota-se o aumento da dificuldade em torno da definição sobre o que pode ser entendido (ou não) como direito fundamental em sentido material.160

Ora, tendo em vista a amplitude do dispositivo examinado, a possibilidade de identificação e construção de direitos materialmente fundamentais (direitos fundamentais não expressamente positivados, bem como os direitos reconhecidos em outras partes do texto constitucional e nos tratados internacionais161)162 dependerá necessariamente da atividade de interpretação/aplicação do direito, sobretudo no que se refere à atividade de justificação da fundamentalidade das posições jurídicas pretendidas pelas partes.163

fundamental se e somente (condição necessária) for garantido mediante normas que tenham a força jurídica própria da supremacia constitucional. [...]. Os direitos fundamentais são definidos com base em sua força formal, decorrente da maneira de sua positivação, deixando de lado considerações sobre o maior ou menor valor moral de certos direitos”. DIMOULIS; MARTINS, 2007, p. 54-55.

156 CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 616. 157 SARLET, 2012, p. 81. 158 MARMELSTEIN, 2011, p. 24. 159 CANOTILHO, 1999, p. 355-356. 160

MARMELSTEIN, op. cit., p. 24.

161

Flávia Piovesan, ao abordar o tema com ênfase no Direito Constitucional Internacional, reconhece que a Lei Fundamental confere abertura para a incorporação, no catálogo de direitos reconhecidos formalmente, dos “direitos enunciados nos tratados internacionais em que o Brasil seja parte”. PIOVESAN, 2010, p. 52.

162

SARLET, op. cit., p. 86.

163

Cf. PARDO, David Wilson de Abreu. Direitos fundamentais não enumerados: justificação e aplicação. 2005. 327 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005. p. 15-17.

Nesse ínterim, não resta dúvida de que os direitos materialmente fundamentais “somente poderão ser os que por sua substância (conteúdo) e importância possam ser equiparados aos constantes do catálogo”.164

Alguns exemplos já são citados nos planos da doutrina e da jurisprudência, tais como “o direito à identidade genética da pessoa humana, o direito à identidade pessoal, as garantias do sigilo fiscal e bancário”,165 entre outros.

Quanto à abrangência do art. 5º, §2, da CF, insta esclarecer se a abertura material igualmente abrange os direitos sociais, econômicos e culturais, uma vez que não remanescem maiores questionamentos no que se refere à abrangência de tal concepção em face dos direitos individuais.

Com base nessa discussão, Sarlet apresenta alguns argumentos que apontam para a inclusão dos direitos sociais no seio da abertura material dos direitos fundamentais, tais como: a) a expressão literal do art. 5º, §2º, que se vale da fórmula geral direitos e garantias

expressos nesta Constituição; b) o reconhecimento formal dos direitos sociais na Constituição

de 1988, no título relacionado aos direitos fundamentais, ainda que regrados em outro capítulo; c) a norma do art. 6º da Constituição (que enuncia os direitos sociais básicos, tal como o direito à saúde) encerra com a expressão na forma desta Constituição, permitindo, por conseguinte, a possibilidade de inclusão de alguns outros dispositivos dispersos no texto constitucional; d) o fato de que a existência de novos direitos fundamentais sociais não pode ser sumariamente desconsiderada, haja vista o Brasil adotar a fórmula do Estado social e democrático de Direito.166

Por todo o exposto, a fim de que não remanesçam maiores dúvidas quanto ao posicionamento adotado nesse trabalho, entende-se que, ao consagrar a fórmula do art. 5º, §2º, a atual Lei Fundamental adotou uma concepção materialmente aberta dos direitos fundamentais, viabilizando, por conseguinte, o reconhecimento da fundamentalidade formal e material dos direitos fundamentais sociais. Nota-se, portanto, que os direitos fundamentais encontram-se submetidos a um recorrente processo de ressignificação consoante o teor do dispositivo analisado.167 164 SARLET, 2012, p. 91. 165 Ibid., p. 90. 166 Ibid., p. 82-83. 167

CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os Direitos Fundamentais e a (in)certeza do Direito: A produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 156.

2.1.4.3 A aplicabilidade imediata – artigo 5º, §1º, da Constituição Federal

Os sistemas jurídicos democráticos têm explicitado certo zelo no que tange à efetivação dos direitos e garantias considerados como essenciais para a pessoa humana. Vale dizer, tais sistemas têm demonstrado uma preocupação no sentido de superar, em definitivo, a concepção formalista do Estado de direito, segundo a qual os direitos fundamentais teriam a sua eficácia condicionada à atuação do legislador.168

Toda essa preocupação justifica-se em face do risco a que se expõem os direitos fundamentais a um possível esvaziamento do seu conteúdo diante da atuação (inadequada) ou da inação do legislador. Os efeitos dessa neutralização dos direitos estabelecidos na Lei Fundamental foram claramente notados na Alemanha, no contexto do nazismo.169

Na Alemanha nazista, a concepção de que os direitos albergados na Constituição não possuíam aplicabilidade imediata e que, em verdade, eles dependiam da atuação do legislador, bem como a falta de tutela judicial direta de tais direitos representaram fatores que contribuíram para a derrocada do ideal democrático da Constituição de Weimer. Assim, o caminho estava livre para a instauração de um regime totalitário, o que ocorreu a partir de 1933. Após esse período totalitário, a Lei Fundamental de 1949 demonstrou uma reação às falhas cometidas no passado a partir da adoção de alguns princípios, tais como “o da proteção judicial dos direitos fundamentais, o da vinculação dos Poderes Públicos aos direitos fundamentais e o da aplicação direta e imediata destes, independentemente de tradução jurídica pelo legislador”.170

Dessa forma, fala-se no princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais em face dos fatos e da concepção jurídica formalista que (pre)dominava no “senso comum teórico dos juristas”171

em meio a uma realidade de menoscabo dos direitos fundamentais.

A Constituição brasileira de 1988 incorporou o princípio ora em espeque a partir do seu art. 5º, §1º172, em que se assevera que todas as normas de direitos fundamentais devem

168

MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 251.

169

MENDES; COELHO; BRANCO, loc. cit.

170

MENDES; COELHO; BRANCO, loc. cit.

171

Luís Alberto Warat, metaforicamente, caracteriza o senso comum teórico “como a voz ‘off’ do direito, como uma caravana de ecos legitimadores de um conjunto de crenças, a partir das quais, podemos dispensar o aprofundamento das condições e das relações que tais crenças mitificam”. WARAT, Luís Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, v. 3, n. 5, p. 48-57, 1982. p. 54.

172

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

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