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3 COMO O DIREITO À SAÚDE É CONCRETIZADO NO BRASIL?

4.1 O SENTIDO DE ACESSO À JUSTIÇA

A expressão acesso à justiça é de difícil definição, mas serve para indicar duas finalidades basilares do sistema jurídico, quais sejam: a materialização de um sistema igualmente acessível a todos; e a produção de resultados que sejam individual e socialmente justos.575

Tal qual a evolução evidenciada entre o Estado e a sociedade,576 o sentido de acesso à justiça também tem sido objeto de transformações ao longo do tempo. No Estado Liberal, por exemplo, os procedimentos adotados para solução dos litígios guardavam correspondência com uma filosofia individualista dos direitos, o que assegurava “o acesso

575

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Traduzido por Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 8.

576

formal, mas não efetivo à justiça”.577

Com o crescimento das sociedades e a ampliação (dimensional) dos direitos fundamentais, tornou-se comum destacar que atuação positiva do Estado representa um fator importante para a tutela de diversos direitos sociais básicos, tais como os direitos ao trabalho, à saúde e à educação.578

Assim sendo, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido enquanto condição de possibilidade para se pensar na aplicabilidade dos diversos direitos individuais e sociais, “uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação”.579

De tal modo, o acesso à justiça pode ser compreendido como um elemento indispensável para o sistema jurídico que pretenda garantir, e não apenas enunciar os direitos. O acesso, além de ser um direito social fundamental em crescente reconhecimento,580 inspira- se de algum modo “no desejo de tornar efetivos – e não meramente simbólicos – os direitos do cidadão comum”.581

4.1.1 Acesso à justiça e o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional

Nesse trabalho, tem-se destacado que, por uma distorção sistêmico-funcional, a concretização das políticas públicas tem migrado dos Poderes Executivo e Legislativo para o Poder Judiciário. Dessa forma, cumpre ressaltar que existe uma relação de proximidade entre o direito de acesso à justiça e o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. Apesar disso, nota-se que ambos os conceitos não se confundem.582

A Constituição Federal de 1988, no seu art. 5º, XXXV,583 consagrou o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, também denominado de princípio do direito de ação ou do direito à jurisdição, ao designar expressamente que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.584

Diante disso, resta evidente a relação de aproximação entre o direito de acesso à justiça e o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. Afinal, a ideia de direito de

577 CAPPELLETTI, 1988, p. 9. 578 Ibid., p. 10-11. 579 Ibid., p. 11-12. 580 Ibid., p. 12-13. 581 Ibid., p. 8. 582

SOUZA, Wilson Alves de. Acesso à justiça. Salvador: Dois de Julho, 2011. p. 166.

583

Art. 5. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

584

ação (ou de direito à jurisdição) já acaba envolvendo a ideia de acesso à justiça. Dessa forma, não seria possível refletir sobre o acesso à justiça:

[...] sem o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, na medida em que se fosse dada a qualquer agente estatal a possibilidade de afastar lesão ou ameaça a direito do controle jurisdicional estar-se-ia claramente a negar o acesso à justiça.585

No entanto, como visto, a identificação de ambos os conceitos é apenas parcial, isto é, tais conceitos não se confundem. Nesse sentido, o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional se limita a assegurar o direito de ação e, por outro lado, o direito de acesso à justiça envolve um sentido mais amplo, uma vez que também leva em consideração o direito a decisão que observe o devido processo legal e seja devidamente fundamentada, eficaz, equitativa e proferida em tempo razoável.586

4.1.2 O sentido (amplo) de acesso à justiça

Como visto, o direito de acesso à justiça envolve um sentido amplo, ou seja, um sentido que se volta para a salvaguarda do direito de ação e do direito a uma decisão equitativa (justa), em tempo razoável e eficaz.587

É que o sentido atual de acesso à justiça não pode se limitar ao exame meramente literal, segundo o qual o acesso à justiça envolveria tão somente a postulação ao Estado-juiz, tal como se fosse suficiente assegurar ao cidadão o “direito à porta de entrada”588

dos tribunais. Com efeito, a garantia do direito de ação é indispensável para a realização do direito de acesso à justiça e, nesse particular, cabe ao Estado instituir órgãos jurisdicionais e assegurar o acesso dos cidadãos aos mesmos. Mas, em um contexto estatal que envolve praticamente a monopolização do poder jurisdicional, a garantia do direito de ação se mostra como algo elementar.589 Ou seja, “se é indispensável a porta de entrada, necessário igualmente é que exista a porta de saída”590 dos tribunais.

De tal modo, Wilson Alves de Souza conclui que, do ponto de vista jurídico, o sentido de acesso à justiça “vai muito além do sentido literal. Significa também o direito ao

585 SOUZA, 2011, p. 166. 586 Ibid., p. 166-167. 587 Ibid., p. 22. 588

Ibid., p. 25, (grifo do autor).

589

Ibid., p. 25-26.

590

devido processo, vale dizer, direito às garantias processuais, julgamento equitativo (justo), em tempo razoável e eficaz”.591

Além disso, conforme alerta Paulo César Santos Bezerra, o direito de acesso à justiça não pode ser tratado a partir de uma perspectiva reducionista de acesso ao processo (ou ao Poder Judiciário). Assim, “tanto o direito como a justiça são tomados num espectro bem mais amplo, é dizer, o acesso aos direitos não se resume ao acesso ao processo apenas, e o acesso à justiça não se reduz ao acesso ao Judiciário”.592

Isso significa dizer que a problemática do acesso à justiça não pode ser reduzida aos limites do acesso aos órgãos judiciais existentes. De acordo com Kazuo Watanabe, “não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa”.593 Portanto, além da via judicial, faz-se necessário “analisar o acesso aos direitos e à justiça numa perspectiva que conceda ao próprio acesso a qualidade de um direito, e de um direito humano e fundamental”.594

O acesso à justiça é, portanto, dentre os demais, também um direito. Afinal, não se pode falar de direito subjetivo de ação perante o Judiciário, nem de direito à saúde, sem efetivamente haver uma acessibilidade a esses direitos.595 Em verdade, tal acesso é, ao mesmo tempo, um direito fundamental e uma garantia máxima, “pelo menos quando houver violação a algum direito, porque havendo essa violação, todos os demais direitos fundamentais e os direitos em geral, ficam na dependência do acesso à justiça”.596

Dessa forma, o acesso à justiça passa a ser percebido como um elemento importante para o mecanismo de efetivação dos outros direitos, ou seja, “é o meio intrínseco à ordem jurídica através do qual a tessitura social reivindica ao Poder Público tutela e respeito aos valores e anseios que ela definiu como irrenunciáveis”.597 Trata-se, por via de consequência, de um tema transversal que atinge tanto o Judiciário, o Legislativo e o Executivo, bem como as organizações sociais e os cidadãos.598

591 SOUZA, 2011, p. 26. 592 BEZERRA, 2007, p. 49-50. 593

WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e Sociedade Moderna. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Candido Rangel; WATANABE, Kazuo. (Coords.). Participação e Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 128, (grifo do autor).

594

BEZERRA, op. cit., p. 50.

595

BEZERRA, 2008, p. 192.

596

SOUZA, op. cit., p. 84.

597

PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. Projeto de Cooperação Técnica Internacional BRA/12/013 – Fortalecimento do Acesso à Justiça no Brasil, p. 2. Disponível em: <http://www.undp.org/content/dam/undp/documents/projects/BRA/SRJ%20novo%20projeto_texto_final.doc>. Acesso em: 26 jul. 2014.

598

Posto isso, cumpre ressaltar que a democracia e a justiça social não são concretizadas tão somente por intermédio do acesso a justiça. Ora, esse é um direito fundamental de suma importância, uma vez que os demais direitos fundamentais podem ser violados. A questão é que, além do acesso a justiça, o Estado deve se preocupar com a promoção de políticas públicas efetivas que consigam proporcionar boas condições de saúde para todos.

Em outras palavras, em tempos em que o Poder Judiciário é visto como a última opção dentre os demais poderes, tornou-se comum acreditar que nele reside a solução de todos os nossos problemas. Ocorre, todavia, que a edificação de uma democracia (enquanto organização social) perpassa pela necessária observância das limitações que cercam tal poder, bem como pela “importância do bom funcionamento da política, seja no âmbito do Poder Legislativo, seja no âmbito da Administração Pública”.599 Vale dizer, os sistemas político e jurídico devem funcionar abertos a influências recíprocas, mas sem que ambos os sistemas se descaracterizem.600

Destarte, pode-se afirmar que a efetividade do direito fundamental à saúde perpassa pelo bom funcionamento do sistema político de saúde, mas, quando tal sistema não consegue atender satisfatoriamente as demandas da população, o sistema do direito é convocado para dar respostas.601

Nesse contexto, o sentido (amplo) de acesso à justiça se destaca como um direito fundamental e uma garantia máxima, o que inclui a garantia do direito de ação e o direito ao devido processo, isto é, “direito às garantias processuais, julgamento equitativo (justo), em tempo razoável e eficaz”.602

Ademais, tal direito não deve ser restringido a uma perspectiva reducionista de acesso ao Poder Judiciário.603 Fala-se, aqui, na viabilização do “acesso à ordem jurídica justa”,604 o que pode incluir o estudo de alternativas para a efetivação do direito à saúde, conforme se intentará demonstrar ao final desse capítulo.

599

CARNEIRO, Wálber Araújo. A cidadania tutelada e a tutela da cidadania: o deslocamento da função simbólica da Constituição para a tutela jurisdicional. In: SOUZA, Wilson Alves de; CARNEIRO, Wálber Araújo; HIRSCH, Fábio Periandro de Almeida. (Coords.). Acesso à justiça, cidadania, direitos humanos e desigualdade socioeconômica: uma abordagem multidisciplinar. Salvador: Dois de Julho, 2013. p. 148.

600

CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 60. 601 VIAL, 2010, p. 191. 602 SOUZA, 2011, p. 26. 603 BEZERRA, 2007, p. 49-50. 604

Segundo Kazuo Watanabe, o direito de acesso à ordem jurídica justa é composto pelos seguintes dados elementares: “(1) o direito à informação e perfeito conhecimento do direito substancial e à organização de pesquisa permanente a cargo de especialistas e orientada à aferição constante da adequação entre a ordem jurídica e a realidade sócio-econômica do País; (2) direito de acesso à Justiça adequadamente organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo de realização da ordem jurídica

Assim, diante do papel de relevo assumido pelo Poder Judiciário no contexto da judicialização da saúde, passa-se a trilhar um caminho hermenêutico em busca da resposta constitucionalmente adequada.

4.2 EM BUSCA DA RESPOSTA CONSTITUCIONALMENTE ADEQUADA: UMA

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