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Prioridades de governo em desconformidade com as prioridades constitucionais

3 COMO O DIREITO À SAÚDE É CONCRETIZADO NO BRASIL?

3.1 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO SIMBÓLICA

3.2.2 Prioridades de governo em desconformidade com as prioridades constitucionais

Como uma decorrência da falta de vontade política e/ou da suposta defesa do interesse público, em muitos casos, os governos acabam elegendo prioridades que não se coadunam com as prioridades eleitas democraticamente pela Constituição Federal.

Como será abordado a seguir, os direitos têm custos e, além disso, os recursos financeiros à disposição do Estado são escassos. Diante disso, tendo em vista que “não é possível pretender fazer tudo a qualquer gasto”,399

cabe aos representantes eleitos mediante processo democrático a escolha de prioridades constitucionais em face da atual conjuntura. Dito de outro modo, o projeto constitucional que envolve a realização dos direitos fundamentais sociais demanda um planejamento prévio, isto é, a eleição de prioridades em meio a uma atuação planejada do Estado.

O planejamento da ação estatal envolve a atuação conjunta de diversas funções. Em um primeiro plano, a função legislativa destaca-se por conferir o reconhecimento formal e por eleger as prioridades (constitucionais) que devem nortear a atuação do Estado. Em uma relação de coordenação, a concretização dos dispositivos demanda, via de regra, a promoção de políticas públicas pela função executiva. Quando “há um descompasso entre as promessas normativas e as atuações públicas prestacionais, o que se tem é a entrada em cena da função jurisdicional”.400

Ocorre que, no âmbito da saúde, o estabelecimento das prioridades constitucionais tem ganhado contornos peculiares. Ora, a partir da análise dos indicadores socioeconômicos, restou esclarecido que o Brasil possui uma das maiores economias do Mundo, contudo os gastos públicos em saúde continuam aquém de tal potencial econômico. Como visto, essa forma de atuação rendeu ao Brasil a 72ª posição no ranking da OMS de investimento em saúde, quando a lista se baseia na despesa estatal por habitante.

Ademais, na comparação com outros países que adotam um sistema universal de saúde, observou-se que o Brasil é um dos países que possuem a menor participação estatal no custeio dos gastos totais em saúde. Assim, diante de tamanha desproporção entre o que se arrecada e o que se destina para o setor sanitário, pode-se afirmar que a saúde não tem sido alvo de um tratamento prioritário, enquanto bem essencial à manutenção da vida humana com

399

LIEMBERGER, 2009, p. 64.

400

dignidade. Em síntese, “o problema é de escolha política das prioridades das matérias a serem regulamentadas, em que o descompromisso é flagrante”.401

Não obstante essas considerações críticas, o fato é que a Constituição estabelece prioridades constitucionais em face do seu projeto constitucional e, deste modo, cabe ao administrador, na execução das políticas públicas, o dever de observar os preceitos constitucionais. Nesse sentido, “o mandato político não deve ser desempenhado conforme critérios subjetivos do governante, mas representam políticas públicas a serem desenvolvidas em conformidade com os ditames constitucionais”.402 Isso significa que enfrentar e cuidar da situação social não representa a expressão da virtude de um governante ou de um agente público, mas uma imposição403 a ser cumprida de acordo com a Constituição.

Entretanto, a atuação de alguns governantes ilustra um cenário em que as prioridades de governo apontam para uma prática em desconformidade com as prioridades constitucionais. No que se refere à atuação dos governantes, Lenio Luiz Streck e Jose Luis Bolzan de Morais propõem o seguinte questionamento:

A Prefeitura do Rio de Janeiro promoveu uma festa para comemorar a passagem do ano novo de 1996, contratando, para tal, vários artistas. Somando os gastos com cachê, fogos de artifício e demais encargos, os cofres públicos foram aliviados em cerca de US$ 1 milhão. Na mesma noite, em vários hospitais da rede pública do Estado do Rio de Janeiro (e no resto do país também), várias pessoas morreram por falta de atendimento médico. Como consertar o quadro de insuficiência econômica se os governantes elegem prioridades dessa maneira?404

Esse panorama contribui para o distanciamento entre o SUS formal e o SUS real. Jairnilson Silva Paim, ao abordar as diversas visões sobre o sistema único de saúde405, assevera que o SUS formal corresponde ao modelo salvaguardado na Constituição Federal, leis orgânicas, decretos, portarias etc., embora distante da realidade dos serviços públicos sanitários, em que prevalece o SUS real. Esse, por sua vez, pode ser observado no reconhecimento do direito à saúde a partir dos discursos de muitos gestores. Todavia, “na medida em que são reféns dos ministros e secretários da área econômica dos governos e do clientelismo político que prevalece nas instituições públicas”,406 tais administradores tendem a se resignar com a situação e favorecer o mercado do setor privado. Alguns chegam a propor

401 BEZERRA, 2008, p. 148. 402 LIEMBERGER, 2009, p. 54. 403 LEDUR, 2009, p. 115. 404 STRECK; MORAIS, 2014, p. 86-87. 405 PAIM, 2009, p. 69-74. 406 Ibid., p. 73.

uma nova reforma sanitária a fim de melhor adequar o sistema público aos interesses privados prevalecentes no jogo político.407

Ademais, nota-se que muitas vezes os governos deixam de investir os recursos suficientes para atender às demandas sanitárias da população, pois acabam optando “pelo ajuste das contas públicas em detrimento dos gastos sociais”.408

Nesse ínterim, alguns avanços podem ser percebidos, sobretudo em face da Emenda Constitucional nº 29/2000 que estabelece percentuais mínimos a serem investidos em saúde pela União, Estados e Municípios, conforme será analisado posteriormente.

Assim, diante da ineficiência dos Poderes Legislativo e/ou Executivo, cabe ao Poder Judiciário atuar como forma de impulsionar a realização das políticas públicas, visando à salvaguarda da dignidade da pessoa humana.409 Ou seja, quando o sistema da saúde não consegue atender satisfatoriamente as demandas da população, o sistema do direito é convocado para dar respostas.410

Logo, as prioridades constitucionais (enquanto políticas públicas) constituem tarefas previstas na Constituição a serem realizadas com a observância da capacidade orçamentária, “mas que não se constituem em discricionariedade administrativa, não, ficando, portanto, imunes a questionamento judicial”.411

Dessa forma, há de se ressaltar a importância de uma prática governamental que esteja em consonância com o projeto constitucional. Em caso de descompasso entre o desempenho dos agentes governamentais e as prioridades consagradas pela Constituição, nota-se a ocorrência de uma atuação estatal que contribui para a não efetivação do direito fundamental à saúde e que está passível de questionamentos no plano ético-político.

Nesse contexto, pode-se concluir que: 1) a saúde precisa passar a ser encarada como algo prioritário, ou melhor, o Estado deve conscientizar-se da importância de investir mais recursos públicos na área da saúde; 2) além disso, os administradores devem buscar atuar com base nas prioridades constitucionais, e não com base em aspectos subjetivos e/ou políticos. Isso porque a existência de prioridades de governo em desconformidade com as prioridades constitucionais acaba sendo mais um fator para a ocorrência de uma crise motivada de inefetividade do direito à saúde.

407 PAIM, 2009, p. 73. 408 SCHWARTZ, 2001, p. 148. 409 LIEMBERGER, 2009, p. 59-60. 410 VIAL, 2010, p. 191. 411

3.2.3 A ineficiência da atuação administrativa: o gigantismo da estrutura burocrática do

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