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3 DAVID PEREZ E A SERENATTA DOS ANNOS DA RAYNHA

3.2 A ascensão de D Maria I ao trono português

Em 1777 falece em Lisboa o rei de Portugal, D. José I (1714-1777), após permanecer no trono por vinte e sete anos. Seu reinado passou por “um dos mais marcantes acontecimentos da História portuguesa e, de longe, aquele que maior impacto teve na cultura europeia” (Monteiro, 2009, p. 364): o terremoto de Lisboa, ocorrido em 1º de novembro de 1755, que matou milhares de pessoas e destruiu grande parte da cidade. Fator decisivo para a reconstrução da capital foi a liderança assumida pelo secretário de Estado, Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), futuro Marquês de Pombal. Sua atuação, crucial nos primeiros momentos que se seguiram à catástrofe, trouxe-lhe poderes que lhe permitiram, tempos depois, liderar as decisões do reino. Contudo, algumas de suas ações, como a expulsão dos jesuítas do país, em 1759, como parte de uma política de diminuir a participação da Igreja Católica nas decisões do Estado,

49 [Tornando-se cada vez mais cego devido a uma doença crônica, Perez continuou compondo, com uma

caligrafia cada vez pior, como por exemplo (...) [o] Te Deum para o 'dia feliz da aclamação' da nova rainha, sua pupila Maria (.. .). O autógrafo, difícil de ler, é datado de 13 de maio de 1777 e é escrito para oito vozes concertantes, trompas, trompetes (trombe lunghe), dois violoncelos obbligato, contrabaixo e órgão. Mais tarde, Perez ditou sua música para um menino e assinou um documento de autenticação]

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desagradaram profundamente à sucessora natural de D. José I, D. Maria. Temendo que seus esforços para criar um Estado secular seriam destruídos se D. Maria ascendesse ao trono, em 1774 o Marquês de Pombal procurou, junto ao rei, criar condições para implantar no país uma lei sálica e alterar a linha sucessória do trono português, de modo a favorecer o filho mais velho de D. Maria, o príncipe D. José. Tal estratégia falhou e, em 24 de fevereiro de 1777, com a morte de seu pai, D. Maria foi aclamada rainha. Uma das primeiras decisões da nova monarca foi afastar do governo o seu adversário e os seus aliados, uma política que ficou conhecida como Viradeira (Disney, 2009, p. 312).

Nascida em 17 de dezembro de 1734 no Paço da Ribeira, em Lisboa, Maria Francisca

Isabel Josefa Antónia Gertrudes Rita Joana de Bragança era a mais velha das quatro filhas

de D. José I e de sua esposa D. Mariana Vitória (1718-1781). Tendo recebido uma esmerada educação na infância, que incluía Música, Pintura e Línguas, seu caráter era descrito como extremamente religioso e piedoso. Com o objetivo de consolidar a presença da dinastia dos Bragança no poder, em 1760 ela casou-se com seu tio, Pedro de Bragança. Deste casamento resultaram seis filhos, dos quais quatro chegaram à idade adulta. Com a morte de seu pai, D. Maria foi a primeira mulher a ocupar o trono português como monarca reinante. Seu marido foi condecorado com o título de Pedro III. Nas três primeiras décadas do reinado de D. Maria as condições econômicas de Portugal melhoram consideravelmente. As exportações cresceram mais que as importações até que, em 1790, pela primeira vez no século XVIII, a balança comercial com a Inglaterra se tornou positiva. No campo das relações diplomáticas, foram cultivadas melhores relações com França e Espanha (Disney, 2009, p. 314). Outra característica do governo de D. Maria foi o desenvolvimento da Cultura e das Ciências: em 1779 foi fundada a Real Academia de

Ciências e, em 1796, a Real Biblioteca Pública da Corte. Como mostra de seu caráter

caridoso, em 1780 foi fundada a Real Casa Pia de Lisboa, instituição voltada para a educação de órfãos e à recuperação de mendigos e de vadios pelo trabalho.

As condições estressantes da vida na corte, a morte de diversos membros da família – entre as quais a de seu marido, em 1786, e a de seu filho José (aos vinte e sete anos), dois anos mais tarde – somadas a outros fatores, como “o processo dos Távora, as

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consequências da Revolução para os monarcas franceses e até uma menopausa tardia”, levaram D. Maria a um quadro de instabilidade mental que, em 10 de fevereiro de 1792, culminou em um diagnóstico de “incapacidade de governança” (de Paula, 2017, pp. 280- 283). Seu filho João assume então a regência do reino, enquanto ela ficará nos anos seguintes recolhida em Queluz. Com a ida da família real para o Brasil em 1808, D. Maria permaneceu no Rio de Janeiro até o momento de sua morte, em 20 de abril de 1816, no convento do Carmo. Em 1821, com o retorno da família real para Portugal, seus restos mortais foram trasladados para a Basílica da Estrela, que foi construída em seu reinado.

Figura 13: D. Maria I, rainha de Portugal. Pintura atribuída a Giuseppe Troni (1739-1810) – Palácio Nacional de Queluz, Lisboa.

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Pelo exposto no primeiro capítulo deste trabalho, não é de surpreender a paixão de D. Maria pela música. Neta da rainha Maria Ana de Áustria, uma das responsáveis pela introdução da música dramática em Portugal, desde cedo a princesa portuguesa foi instruída na prática musical. Em 1752, aos dezoito anos, ela passou a ter a orientação de um dos mais importantes músicos da Europa de então, o compositor David Perez. A estima e o prestígio de Perez junto a sua aluna são ilustrados, como já referido, pelo fato de ele ter recebido dela, em 1778, o Hábito da Ordem de Cristo, e pelo fato de que, quando de sua morte, as despesas de seu funeral, realizado com toda a pompa, foram pagas pela corte portuguesa.

Ao longo de sua permanência em Portugal, Perez compôs diversas obras que estão ligadas diretamente a D. Maria ou aos seus familiares próximos, como o componimento

drammatico intitulado Il ritorno de Ulisse in Itaca, escrito para comemorar o nascimento

de sua filha, em 1774; a serenata L’eroe coronato, para a inauguração da estátua equestre de D. José I, em 1775; ou o Te Deum, apresentado na aclamação da monarca em 13 de maio de 1777 (Brito, 1989).

Ao escrever a música de LPVB, em 1777, Perez vai muito além da celebração do

felicissimo giorno natalizio daquela que fora sua aluna desde a adolescência. Dada a

organização patriarcal da sociedade da época, para uma mulher – a primeira a liderar um dos maiores impérios do planeta, e que tinha tido sua ascensão ao trono ameaçada pelo político mais influente de então na sociedade portuguesa – a escolha do texto de Metastasio era mais que oportuna. É possível, contudo, que a escolha deste libreto possa ter sido motivada para além de sua temática: sua destinatária original, D. Maria Teresa de Áustria, era prima em primeiro grau de D. José I, pai de D. Maria. Assim, a obra era transferida de uma geração a outra dos Habsburgo, casa real austríaca à qual a soberana portuguesa pertencia por meio de sua avó, D. Maria Ana de Áustria.