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4 A MÚSICA DE DAVID PEREZ PARA LA PACE FRA LA VIRTÙ E LA BELLEZZA

4.3 Formas musicais e recursos expressivos

Em LPVB Perez utiliza as seguintes formas musicais: a abertura italiana, o recitativo secco, o recitativo accompagnato, diversas configurações estruturais relacionadas à aria da capo (configurações estas empregadas nas árias e no dueto), e a pequena forma ternária, empregada no coro. Como a distribuição de recitativos, árias ou conjuntos já é definida de antemão pelo próprio libreto, o que mais chama a atenção na macroestrutura dessa serenata de Perez é a presença de cinco recitativi accompagnati de considerável extensão (o maior deles possui 98 compassos). Ou seja, dentro dos versi sciolti, Perez seleciona determinados trechos que em sua visão deveriam receber um tratamento musical especial para enfatizar o conteúdo emocional e dramático do momento.

Do ponto de vista da expressão, parte da música de Perez pode ser compreendida à luz dos Elementi teorico-pratici de musica, um tratado sobre a arte do violino e da composição musical escrito por Francesco Galeazzi (1758-1819), músico que também atuou por quinze anos como diretor musical do Teatro Valle, em Roma. Esse tratado reflete muito do ideal estético da música italiana do século XVIII, sendo considerado por Churgin (2001) “o tratado italiano mais abrangente do século XVIII”.56 A Parte IV desta obra

is a treatise on composition, with two main subdivisions. In the first, ‘Harmony’, Galeazzi discussed harmony and counterpoint (including species counterpoint, canon and fugue); in the second, ‘Melody’, he remarked on such diverse topics as rhythm, how to stimulate the imagination for composing, sonata form, periodic structure, modulation, the ‘conduct’ of compositions in vocal, instrumental and mixed (vocal-instrumental) styles, instrumentation and orchestration (Churgin, 2001).57

Dentre os vários preceitos estéticos defendidos por Galeazzi, a tarefa do compositor de música em estilo misto, aquele que utiliza vozes e instrumentos, é descrita da seguinte maneira:

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“the most comprehensive 18th-century Italian treatise”.

57 [é um tratado sobre composição, com duas subdivisões principais. No primeiro, "Harmonia", Galeazzi

discute harmonia e contraponto (incluindo o contraponto em espécies, cânone e fuga); no segundo, 'Melodia', ele comenta sobre temas tão diversos como o ritmo, como estimular a imaginação para compor, forma-sonata, estrutura periódica, modulação, o 'direcionamento' de composições nos estilos vocal, instrumental e misto (vocal-instrumental), instrumentação e orquestração.]

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Lo stile misto differisce dal puramente istromentale in quanto è in questo il compositore libero di potere a suo beneplacito esprimere quegli affetti, quelle commozioni che vuole, la dove nella Vocale la prima attenzione deve riguardare l’espressione delle parole. Questo è un Mare magnum che un’intero volume non basterebbe a bene spiegare: noi ci contenteremo di farvi sopra alcune riflessioni, rimettendo per il di più il Lettore all’osservazione delle opere de’più valenti Scrittori.

Subito dunque, che si sarà bene inteso il senso, ed il carattere delle parole dell’intero pezzo che si dee porre in Musica, conviene raccorsi in se stesso, e porsi perfettamente nel caso, e nelle circostanze indicate dalle parole, ed esprimerne il carattere più che sia possibile. Al parer mio si è da moltissimi anche rinomati Maestri preso un considerabilissimo abbaglio, qual è quello di credere, che l’espression delle parole consista nella forza di uma sola parola: v. g. di esprimere un ascendit con una volata ascendente, un descendit con calare verso il grave, un

De profundis col far maggire un Basso, un altissimus col far pigolare un Soprano,

un in Aeternum collo sfiatare un Tenore con un eterna tenuta, ec. Lo stesso dicasi delle parole Italiane, o di qualunque altra língua. Non convien credere certamente, che il vero modo di esprimere colla Musica le parole consista in simile inezie, e puerilità, ma bensi nell’impadronirsi, ed investirsi pienamente di tutto l’intero sentimento, che si deve avvalorare, e render colla Musica più enérgico, ed espressivo [ênfase minha] (Galeazzi, 1796, pp. 292-293).58

Galeazzi então apresenta diversas possibilidades que podem ser utilizadas pelo compositor para lograr esta tarefa, como o estabelecimento de vínculos entre as tonalidades e os afetos, critérios para escolha de andamentos e tipos de compassos, alternativas de configurações estruturais para árias, a observância dos intérpretes aos quais a obra se destina e do local onde será apresentada.

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[O estilo misto difere do estilo puramente instrumental uma vez que, no segundo, o compositor é livre para poder expressar, a seu gosto, aqueles afetos, aquelas emoções que deseja, enquanto no estilo vocal, a principal atenção deve considerar a expressão das palavras. Este é um Mare magnum que um volume inteiro não seria suficiente para explicar bem. Contentaremos-nos em fazer algumas reflexões sobre o assunto e, para mais, remeter o leitor à observação das obras dos mais talentosos escritores.

Portanto, assim que se entender adequadamente o sentido e o caráter das palavras de toda a peça que deve ser colocada em música, é necessário voltar-se para dentro, colocar-se perfeitamente na situação e nas circunstâncias indicadas pelas palavras, e expressar seu caráter, tanto quanto possível. Parece-me que muitos mestres, mesmo alguns renomados, cometeram um erro considerável, que é acreditar que a expressão das palavras consiste na força de uma única palavra: por exemplo, ao expressar ascendit com uma corrida ascendente, descendit caindo na direção do baixo, De profundis, com um baixo muito grave, altissimus, com um piar do soprano, in aeternum, sufocando um tenor com um [som] sustentado eternamente, etc. O mesmo pode ser dito das palavras italianas ou de qualquer outro idioma. Certamente,

não se deve acreditar que a verdadeira maneira de expressar palavras com música consiste em insignificâncias e puerilidade semelhantes, mas antes em apreender e entrar completamente em todo o sentimento inteiro, que deve ser confirmado e tornado mais enérgico e expressivo pela música.]

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No que toca ao emprego das diversas tonalidades Galeazzi diz:

è certo, che il saggio Compositore fin dalla scelta del Tono a acordare il carattere delle parole. Questa non è una cosa ideale, nè indifferente, è vero che un’avveduto artista sa esprimere qualunque affetto in qualunque Tono, e sa egli fare uma composizione allegra in tono de Eb, ed una patetica in D, ma dovrà ben egli confessare, che ciò suppore una grand’arte, una lunga esperienza, ed un sommo giudizio nella scelta degli accordi, e nella situazione, e disposizione delle parti. È dunque innegabile, che tutti i Toni della moderna Musica, sono tuttavia di diverso carattere, quale molto importa al Compositore d’intimamente conoscere (Galeazzi,

1796, p. 293).59

A seguir o mesmo autor apresenta as características expressivas das tonalidades mais empregadas em sua época:

C. è un Tono grandioso, militare, atto ad esporre grandi avvenimenti, serio, maestoso, e di stepito. Il suo minore è un Tono Trágico, e atto ad esprimere grandi disavventure, morti di Eroi, ed azioni grandi, ma luttuose, funeste, e lugubri.

D. è il Tono più allegro, e gaio che abbia la Musica: egli è strepitoso lo sommo grado, atto ad esprimer feste, nozze, allegrie, giubili, esultazioni, encomj ec. Il suo minore totalmente opposto è estremamente malinconico, e tetro: è però di poco uso fuor delle modulazioni.

Eb. è un Tono Eroico, maestoso all’estremo, grave, e serio: in tutti questi caratteri è superiore allo stesso C. Il suo minore poco si pratica per la molta sua difficoltà nell’esecuzione: è estremamente malinconico, e concilia il sonno.

E. è un Tono assai stridulo, acuto, da fanciulli, piccolo, ed alquanto aspro. Il suo minore è quase proscritto dalla Musica di buon gusto, fuorchè nelle modulazioni.

F. è maestoso, ma meno dell’ Eb, e del C; è anch’egli acuto, ma non stridulo. Il suo minore è attissimo ad esprimere il pianto, il dolore, l’affanno, l’angoscia, i violenti trasporti, l’agitazione, ec.

G. è un Tono innocente, semplice, freddo, indifferente, e di poco effetto. Il suo minore ha quasi lo stesso Carattere del C terza minore; ma um poco meno grandioso, è pero atto alla smania, alla disperazione, a l’agitazione, ec.

Ab non si usa molto per la sua difficoltà. È un Tono cupo, basso, profondo, atto ad esprimere l’orrore, il silenzio della notte, la quiete, il timore, lo spavento. Il suo minore non è in uso per la soverchia difficoltà.

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[é certo que o sábio compositor começa a seguir o caráter das palavras em sua mente já a partir da escolha da tonalidade. Isso não é algo ideal ou indiferente: é verdade que um artista perceptivo sabe como expressar qualquer afeto em qualquer tom, e sabe escrever uma composição alegre no tom de Mi bemol maior e uma patética em Ré maior, mas ele certamente deve confessar que isso supõe grande arte, longa experiência e máximo julgamento na escolha dos acordes e no posicionamento e disposição das partes. Portanto, é inegável que todos os tons da música moderna, embora possam ter a mesma proporção e distância, têm, no entanto, caracteres diferentes, o que é muito importante para o compositor entender intimamente.]

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A. è sommamente armonioso, espressivo, affettuoso, scherzevole, ridente, ed allegro. Il suo minore è all’opposto al sommo lugubre, e tetro. È poco praticato; se non per esprimere stragi, massacri, e nenie funebri.

Bb. è un Tono tenero, molle, dolce, effeminato, atto ad esprimere trasporti d’amore, vezzi, e grazie. Il suo minore poco si pratica per la troppa difficoltà.

B. è un Tono aspro, stridulo più dell’E, atto ad esprimer grida di disperati, urli, rugiti, e simili. Il suo minore è proscritto dalla Música di buon gusto (Galeazzi,

1796, pp. 293-295).60

Apesar desta preocupação em vincular tonalidades a conteúdos expressivos, a organização tonal de obras dramáticas como um todo não recebeu nenhuma atenção teórica por parte de Galeazzi, e o mesmo parece ter acontecido de modo prático na música de Perez para LPVB, como demonstra a sucessão das tonalidades escolhidas nos diversos números apresentados na tabela seguinte:61

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[Dó maior é um tom grandioso, militar, adequado para ilustrar grandes acontecimentos, serio, majestoso, e clamoroso. Seu menor é um tom trágico e adequado para expressar grandes infortúnios, morte de heróis e grandes ações, mas fúnebre, funesto e lúgubre.

Ré maior é o mais animado e alegre tom que a música tem: é clamoroso ao máximo, adequado para exprimir festas, casamentos, animação, jubileus, exultação, elogios, etc. Seu menor, totalmente oposto, é extremamente melancólico e sombrio; é, portanto, de pouca utilidade fora das modulações.

Mi bemol maior é um tom heróico, majestoso ao extremo, grave e sério: em todas essas características é superior ao próprio Dó maior. Seu menor é pouco praticado devido à sua grande dificuldade de performance; é extremamente melancólico e induz ao sono.

Mi maior é um tom muito estridente, agudo, para crianças, leve e um tanto áspero. Seu menor é quase proibido de músicas de bom gosto, exceto em modulações.

Fá maior é majestoso, mas menos que Mi bemol maior e que Dó maior; é também agudo, mas não estridente. Seu menor é adequadíssimo a expremir o pranto, a dor, a angústia, os arrebatamentos violentos, a agitação, etc.

Sol é um tom inocente, simples, frio, indiferente e de pouco efeito. Seu menor tem quase o mesmo caráter que Dó com a terça menor, mas um pouco menos grandioso. É, porém adequado à inquietação, ao desespero, à agitação, etc.

Lá bemol maior não é muito usado devido à sua dificuldade. É um tom sombrio, baixo, profundo, adequada para expressar o horror, o silêncio da noite, o silêncio, o medo, o susto. Seu menor não é usado devido à sua dificuldade excessiva.

Lá maior é extremamente harmonioso, expressivo, afetuoso, brincalhão, alegre e animado. O menor, completamente oposto, é extremamente lúgubre e sombrio. É pouco praticado; a menos que expresse genocídios, massacres e hinoss fúnebres.

Si bemol maior é um tom delicado, suave, doce, efeminado, adequado para expressar os êxtases de amor, encantos e graças. Seu menor é pouco praticado devido à sua grande dificuldade.

Si maior é um tom duro, mais estridente que Mi maior, adequado para expressar gritos de desesperados, urros, rugidos e similares. Seu menor é proibido na Música de bom gosto.

61 Nesta tabela não estão incluídos nem os recitativi secchi nem os recitativi accompagnati, uma vez que

este tipo de música se caracteriza por ser “em princípio uma estrutura tonal ‘aberta’ sem restrições sobre a relação entre o primeiro acorde (muito frequentemente classificado a partir do que se segue como tônica) e o acorde final (usualmente um acorde de tônica, mas ocasionalmente uma dominante)” [“in principle ‘open’ tonal structure with no restrictions on the relationship between the first chord (most often classifiable from

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Número musical Tonalidade

Sinfonia Mi Maior

[2] Aria Venere Sol Maior

[5] Aria Apollo Si bemol maior

[7] Aria Amore Lá maior

[10] Aria Venere Si bemol Maior

[13] Aria Pallade Mi bemol Maior

[15] Aria Apollo Ré Maior

[17] Aria Marte Dó Maior

[20] Duetto Venere e Pallade Sol Maior

[23] Aria Amore Si bemol Maior

[25] Aria Venere Dó Maior

[27] Coro Mi Maior

Tabela 7: Tonalidades empregadas na Sinfonia, nas árias, no dueto e no Coro da serenata LPVB, de David Perez.

Na tabela acima nota-se o emprego maciço de tonalidades maiores em LPVB, plenamente justificável dado o caráter festivo da obra. Porém, a sucessão dessas tonalidades não parece obedecer a nenhuma relação tonal. Isto parece refletir uma tendência da música dramática do século XVIII, como apresenta Talbot:

In opera and other large-scale dramatic genres (oratorio, serenata) there are really no rules (other than a preference for variety) governing the succession of keys in consecutive airs. (...) From the point of view of abstract architecture, this is a good as random, but the choices have, of course, been informed by considerations of instrumentation (D major is the ‘trumpet’ key) and affect

(Talbot, 2009, p. 258).62

Ainda que as sucessões das tonalidades não atendam a nenhum critério, o emprego de Mi Maior na Sinfonia e no Coro final pode ser remetido a um desejo do compositor de criar uma espécie de “moldura tonal” para a obra, como acontece na serenata L’Isola

Disabitata ou em diversas outras óperas suas, como Adriano in Siria, Allessandro nell’Indie

e Solimano, onde a tonalidade da abertura é sempre igual à tonalidade do número final.

what follows as a tonic) and the final chord (usually a tonic but occasionally a dominant)”] (Talbot, 2009, pp. 256-257).

62 [Em ópera e em outros gêneros dramáticos em larga escala (oratório, serenata) não há realmente regras

(além de uma preferência pela variedade) que governem a sucessão de tonalidades em árias sucessivas. (...) Do ponto de vista da arquitetura abstrata, esta aleatoriedade é boa, mas as escolhas têm, é claro, de considerar aspectos de instrumentação (Ré maior é a tonalidade ‘do trompete’) e de afeto.]

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Apresentarei a seguir alguns aspectos da construção musical e expressiva dos diversos movimentos de LPVB, relacionando-as, quando conveniente, com as considerações de Galeazzi apresentadas nos Elementi, obra cuja escolha justifica-se não só pela importância que tem com relação à música italiana do século XVIII, mas também pelo fato de este autor apresentar diversos paralelos com a carreira de Perez: ambos foram violinistas e compositores, tendo trabalhado durante longo tempo com a música dramática. Gostaria de ressaltar que dentro deste doutoramento este estudo se mostrou muito útil para a construção da performance junto aos cantores.