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1 A SERENATA E SUA PRESENÇA EM PORTUGAL NO SÉCULO XVIII

1.1 A serenata e sua dupla natureza

Nos últimos anos do século XVI surgiram os primeiros exemplos de um gênero musical que teria grande impacto sobre diversas atividades artísticas nos séculos seguintes: a

1 Nessa época o compositor enfrentava uma doença crônica que comprometia seriamente a sua visão

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ópera. Resultado do interesse da Camerata Fiorentina2 pela forma como eram realizadas as tragédias na Antiguidade, em conjunção com as práticas musicais então empregadas em espetáculos teatrais, intermedi, madrigais e canções, o novo gênero esteve ligado desde a sua gênese a elementos da cultura greco-romana (Hill, 2005, pp. 22-54). Uma de suas principais inovações, a monodia, foi uma tentativa de imitar a fala através do canto, dando forma ao que se supunha ser a prática teatral usual daquela cultura, como expõe Jacopo Peri no prefácio de sua Euridice:

Prima, ch’io vi porga (benigni Lettori) queste Musiche mie, ho stimato, cõnvenirmisi farvi noto quello, che m’ha indotto a ritrovare questa nuova maniera di cãto, poichè di tutte le operazioni humane, la ragione debbe essere principio, e fonte; E chi non puo renderla agevolmente da a credere, d’haver’ operato a caso. Benchè dal Sig. Emilio del Cavalieri, prima chè da ogni altro, ch’io sappia, con maravigliosa invenzione ci fusse fatta udire la nostra Musica su le Scene; Piacque nondimeno a’ Signori Jacopo Corsi, ed Ottavio Rinuccini (fin l’Anno 1594) che io adoperandola in altra guisa, mettessi sotto le note la favola di Dafne, dal Signor Ottavio composta, per fare una semplice pruova di quello, che potesse il canto dell’età nostra. Onde veduto, che si trattava di poesia Dramatica, e che però si doveva imitar col canto chi parla (e senza dubbio non si parlò mai cantando) stimai, che gli antichi Greci, e Romani (i quali secondo l’openione di molti cantavano su le Scene le Tragedie intere) usassero un’armonia, che avanzando quella del parlare ordinario, scendesse tanto dalla melodia del cantare, che pigliasse forma di cosa mezzana (Peri, 1600, p. v).3

2 Camerata Fiorentina é o nome dado a um grupo de estudiosos, literatos e músicos ligados ao conde

Giovanni de’ Bardi (1534-1612), e que começou suas atividades em Florença a partir dos anos de 1570. Em suas reuniões o grupo promovia discussões sobre Literatura, Ciências e Artes, e também audições de novas obras musicais. A partir das pesquisas de Girolamo Mei (1519-1594), estudioso e editor de diversos dramas gregos, os integrantes da Camerata especulavam “em torno da hipotética unidade de poesia, música e ação na tragédia grega, tentando reestruturá-la em termos de poesia italiana” (Magnani, 1996, p. 165). Vicenzo Galilei (ca. 1520-1591), Emilio de Cavalieri (ca. 1550-1602), Ottavio Rinuccini (1562-1621), Jacopo Peri (1561-1633) e Giulio Caccini (1551-1618) foram alguns dos componentes desse grupo (Burkholder, Grout e Palisca, 2014, pp. 308-310).

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Antes de oferecer-lhes, caros leitores, esta minha música, considerei conveniente fazer-lhes conhecer aquilo que me induziu a encontrar esta nova forma de canto, pois em todas as ações humanas a razão deve ser princípio e fonte, e aquele que não conseguir fazê-lo facilmente dá a crer que agiu por acaso. Apesar de o Senhor Emilio di Cavalieri, antes de qualquer outro, que eu saiba, com maravilhosa invenção fez ouvir a nossa Música em cena; no entanto satisfez ao Senhor Jacopo Corsi e a Ottavio Rinuccini (desde o ano de 1594) que eu, empregando-a de outra maneira, colocasse em música a fábula de Dafne, escrita pelo Senhor Ottavio, para fazer uma simples experiência do potencial do canto de nossa época. Visto que se tratava de poesia dramática, e que se deveria imitar com o canto o que se fala (e sem dúvida não se fala cantando), estimei que os antigos Gregos e Romanos (os quais segundo a opinião de muitos cantavam em cena as tragédias inteiras), usavam uma harmonia que, avançando além da fala comum, se aproxima tanto da melodia do canto que assume a forma de algo intermediário. Tradução de Dias e Jank (2016, p. 158).

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Ao longo dos séculos seguintes a ópera influenciou diversos outros veículos musicais, entre eles a cantata e o oratório. Originados de práticas distintas, esses meios de expressão artística acabaram por compartilhar diversos aspectos de construção, tais como a organização de sua macroestrutura em diversos números (ou movimentos) autônomos, o arcabouço das formas musicais empregadas – aberturas, recitativos, árias e conjuntos vocais – e a utilização da orquestra como forma de acompanhamento (Magnani, 1996, pp. 198-200).

Outro veículo musical compartilha com esses gêneros diversas características, sendo muitas vezes com eles confundido e denominado – erroneamente – como uma cantata ou como uma ópera em miniatura: a serenata. A primeira dificuldade para defini-la e atestar sua autonomia começa por sua própria designação, que apresenta uma multiplicidade de conteúdos semânticos relacionados a práticas e conceitos musicais muito diferentes. Apesar de ter se manifestado em diversos centros europeus nos séculos XVII e XVIII, sua natureza efêmera e ocasional frequentemente deixou poucos traços para historiadores, e com isso “a dificuldade de distinguir entre os gêneros ópera e serenata conta uma importante história em si mesma” (Tcharos, 2009, p. 506).4 Domínguez apresenta um importante complicador para a abordagem deste gênero:

La escasez de ediciones (fac-símiles o críticas) de los ejemplos más significativos explica em parte que el género no haya recibido uma atención mayor hasta fechas recientes (a diferencia de lo que ocurre con el oratorio, la cantata y la opera italianos) (Domínguez, 2007, p. 622).5

Michael Talbot (1982, 1997, 2001) propõe que a palavra serenata tem sido erroneamente vinculada com a palavra sera [noite]. Para o pesquisador, a raiz etimológica do termo se prende antes a sereno, que como substantivo possui o significado de um céu claro, à

4 “the difficulty of distinguishing between opera and serenata genres tells an important story in itself.” [Nota do autor: a não ser nos casos devidamente assinalados, todas as traduções de texto em língua estrangeira foram realizadas por este autor. No caso de citações diretas curtas, a tradução foi inserida no corpo do texto, sendo a citação original apresentada em nota de rodapé. No caso de citações diretas longas, dá-se o inverso: é apresentado no corpo do texto a citação original e a tradução em nota de rodapé.]

5 [A escassez de edições (fac-símiles ou críticas) dos exemplos mais significativos explica em parte o porquê

do gênero não ter recebido uma atenção maior até datas recentes (diferentemente do que ocorre com o oratório, a cantata e a ópera italianas).]

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noite, condição atmosférica ideal para a performance dessas obras. Este vínculo

etimológico teria se estabelecido já no século XV, quando o termo serenata “adquiriu o novo significado de uma peça (ou programa) de música executada à noite ao ar livre sob um céu límpido” (Talbot, 1982, p. 1).6 [ênfase minha]

Desde seu aparecimento o termo foi vinculado a diversos significados, que, como dito anteriormente, remetem ora a uma prática musical – um programa de música, ora a aspectos construtivos – uma peça de música, tais como:

 Uma performance musical de um apaixonado debaixo da janela da pessoa amada;7

 Uma performance coletiva de música, onde grupos de pessoas cantavam alternadamente ou se apresentavam para a população em geral. Esse tipo de serenata ocorria frequentemente em Veneza no século XVIII (a geografia dessa cidade favorecia, especialmente no tempo de calor, à realização de tais festas noturnas ao sereno);8

 Uma obra dramático-musical para dois ou mais cantores e orquestra, cultivada nos séculos XVII e XVIII e estruturada de forma semelhante a uma cantata ou ópera em diversos números (abertura, recitativos, árias e conjuntos). Normalmente elogiosas a um soberano ou personalidade política, tais serenatas eram apresentadas nas cortes europeias em ocasiões festivas como aniversários, onomásticos ou casamentos; ou ainda na celebração de alianças políticas ou tratados de paz;

6 “acquired the new meaning of a piece (or programme) of music performed at night in the open air under

clear skies.”

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No segundo ato da ópera Don Giovanni, de W. A. Mozart (1756-1791), temos uma típica serenata inserida no contexto da trama (ainda que o compositor a intitule Canzonetta). Sob o acompanhamento de cordas em pizzicato, o bandolim introduz o canto sedutor do protagonista: “Deh, vieni alla finestra, o mio tesoro...” [“Ah, venha até a janela, meu tesouro...”].

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Ainda hoje esse significado é comum, sendo encontrado, por exemplo, nas performances de tunas universitárias portuguesas como foi noticiado pelo jornal Correio do Minho um evento ocorrido em 05 de abril de 2018 na cidade de Braga: “FITU oferece serenata à cidade no Largo do Paço – (...) Esta noite, a Augusta Cidade recebe os estudantes com suas capas negras e os bicos vermelhos dos tunos da Tuna Universitária do Minho para um dos momentos mais solenes do ano e, pelo qual, já todos os bracarenses esperam: a Serenata à Cidade de Braga (“FITU oferece”, 2018).” [ênfase minha]

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 Uma obra de música para conjunto instrumental em vários movimentos, designação que passou a ser utilizada a partir da segunda metade do século XVIII, e que tem, entre muitos outros, exemplos como a Serenata notturna, KV. 239, de W. A. Mozart (1756-1791), ou as Serenade Op. 11 e Op. 16, de J. Brahms (1833- 1897).

No senso comum talvez o sentido que esteja mais associado à serenata é o de uma música oferecida a alguém como demonstração de afeto, por vezes exaltando suas qualidades físicas, intelectuais ou morais, em que a performance ocorre durante a noite e, eventualmente, fazendo alguma referência a esta atmosfera. Assim, diversas canções foram produzidas sob o título genérico de Serenata (adaptado quando oportuno aos diversos idiomas), como a Ständchen D. 954/4 de Franz Schubert (1797-1828), sobre texto de Ludwig Rellstab (1799-1860), ou a Moonlight Serenade, de Glenn Miller (1904-1944), com texto de Mitchell Parish (1900-1993). Também obras de música instrumental procuram evocar este conteúdo poético como, por exemplo, a Serenata Andaluza, Op. 28, para violino e piano, de Pablo de Sarasate (1844-1908), ou La sérénade interrompue, para piano, de Claude Debussy (1862-1918).

A serenata que é o foco deste estudo – uma obra dramático-musical – extrapola esse entendimento. Se a exaltação de qualidades pessoais faz uma intersecção com a visão do senso comum, há que se lembrar que estas obras eram encomendadas e os altos custos de suas produções eram pagos pelas próprias cortes, sendo que sua performance ultrapassava a dimensão íntima de oferecimento e se configurava como um evento social de amplo alcance.

Outra questão que dificulta a apreciação da serenata enquanto um gênero musical autônomo é o fato de que os compositores frequentemente designavam essas obras como cantata ou dramma pastorale. Poetas também utilizaram diversos outros termos para se referir a este gênero, e é possível encontrarmos as seguintes denominações para o texto literário: festa teatrale, componimento da camera, poemetto drammatico, azione

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termos “referem-se especificamente à composição literária preservada separadamente no libreto, e não à obra apresentada com música” (Talbot, 1982, p. 13).9

Em meio a tanta ambiguidade, é possível ser estabelecido um critério para definir o que é uma serenata? Sobre essa questão o mesmo autor propõe que:

To be classed as a serenata a work cannot merely be seen to possess one or two distinguishing features; rather, we have to make a longer list of typical features and allow individual works to differ in one or even more respects from the ideal type without thereby disqualifying themselves (Talbot, 1982, p. 3).10

Essa longa lista de características típicas mencionada por Talbot compreende os seguintes itens:

 Quantidade de personagens – Diferindo da cantata de câmara, que utilizava apenas um ou dois cantores, as serenatas empregavam um número maior, sendo o usual três ou quatro, mas podendo chegar a seis, que podiam representar deuses e heróis da mitologia clássica, figuras arcádicas como ninfas e pastores, personificações de conceitos como Dever ou Honra, ou mesmo características geográficas, como uma cidade ou um rio;11

 Acompanhamento instrumental – Grande parte das serenatas utiliza uma orquestra relativamente grande, similar à orquestra utilizada nas óperas do período em questão e que compreendia, além dos instrumentos de corda e aqueles necessários para o continuo, vários instrumentos de sopro;

 Locais e condições de apresentação – Embora algumas serenatas fossem apresentadas em recintos privados ou casas de ópera, o mais usual era que essas obras fossem apresentadas ao ar livre, em estruturas construídas especialmente

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“refer specifically to the literary composition preserved separately in the libretto, not to the work as performed with music.”

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[Para ser classificada como uma serenata, uma obra não pode simplesmente ser vista como possuindo uma ou duas características distintas; em vez disso, temos que fazer uma lista mais longa de características típicas e permitir que obras individuais possam diferir em um ou mais aspectos do protótipo ideal sem se desqualificarem.]

11 Exemplo desse último caso é a serenata La Sena festeggiante [O Sena festejante], de A. Vivaldi (1678-

1741), sobre libreto de Domenico Lalli (1679-1741), escrita provavelmente em 1726 para homenagear o jovem monarca Luís XV (Talbot, 1993).

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para este fim. Nesses lugares (jardins, pátios, canais, praças públicas, etc.), e dado que o horário de sua performance era comumente noturno, elas podiam usufruir da riqueza proporcionada pelo uso de luz artificial, gerada através de tochas e velas. A partir de relatos de performances da época, como os estudados por Talbot (1982) e Tcharos (2006), vê-se que o posicionamento do público era cuidadosamente calculado, de forma a favorecer a figura dos homenageados;  Duração – Apesar de haver uma grande diversidade de duração das serenatas, era

comum que muitas delas fossem escritas em duas partes, com uma média de doze árias ou conjuntos (além dos recitativos), o que equivale a um terço de uma opera

seria – cerca de uma hora e meia de duração;

 Encenação – Neste aspecto as serenatas se aproximam do oratório, já que, como colocado por Burney, elas eram apresentadas “como oratórios, sem mudança de cena, ou representação” (Burney apud Talbot, 1982, p. 7).12 Ainda assim, algum sentido de encenação poderia ser encontrado na dinâmica gerada pela entrada ou saída de personagens. Embora haja libretos de serenatas que especificamente fazem referência a mudança de locais de cena, sem embargo, isto não necessariamente implicaria alteração de cenário. Era possível que os cantores utilizassem algum tipo de figurino e, uma vez que permaneciam parados, era comum cantarem enquanto liam suas partituras, sem as ter memorizado;

 Convenções poéticas – A forma de organização dos libretos das serenatas era bastante similar à dos textos das óperas, cantatas e oratórios do período, que consistia em uma alternância de versi sciolti (versos soltos, de ritmo irregular), destinados aos recitativos, e versos com ritmo regular e rimas, destinados às árias e conjuntos;

 Temática – Apesar de que muitas serenatas eram escritas para enaltecer a figura de um homenageado, a alusão ao mesmo era apresentada no enredo de forma alegórica e paulatina. Uma alusão mais explícita, quando ocorria, dava-se geralmente nos números finais, sendo toda a obra construída em função deste “clímax”. As duas fórmulas mais empregadas pelos poetas para a construção do

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enredo eram a contesa ou gara (uma disputa entre elementos contraditórios que terminaria com uma reconciliação – uma unione, concordia ou pace – reconciliação esta que poderia se dar na ou pela figura do homenageado), e a

busca (na qual os personagens procuram a identidade de um “herói” através de

seus atributos virtuosos – uma fórmula mais adequada para elogios diretos). Em uma temática tão singular e personalizada, é natural que os libretos das serenatas não fossem tão reaproveitados quanto o eram os libretos de ópera.

Ao observar todas estas características pode-se facilmente chegar à conclusão que as serenatas demandavam altos custos para a sua realização, devido à quantidade de cantores, ao emprego de uma orquestra grande para a época, aos trabalhos quase sempre inéditos do poeta e do compositor e à eventual confecção de figurinos e cenários, que poderia necessitar da construção de estruturas de arquitetura efêmera para as execuções ao ar livre. Isto explica o fato de este gênero ligar-se tão intimamente à alta nobreza. Eram eles, os nobres, quem detinham as condições financeiras para arcar com todas estas despesas, e utilizavam este meio para fortalecer sua projeção social. Tcharos, em seu estudo sobre a serenata Le gare festive in applauso alla Real Casa di Francia, apresentada em Roma em 1704, ressalta a riqueza que é apresentada nas descrições desse evento. Para ela, esta produção “foi um ato público calculado para fortalecer alianças, neste caso em particular entre a proeminente nobreza romana, a delegação espanhola e a recentemente empoderada corte francesa dos Bourbon” (Tcharos, 2006, p. 528-529).13 Esta seria uma típica situação onde a serenata poderia demonstrar a sua

dupla natureza – duas experiências para duas audiências: de um lado, a experiência

musical enriquecida por outras artes e rituais, e de outro, seu significado social, em que a performance destas obras era utilizada como meio de demonstração de poder e para consagração social. Embora algumas serenatas escritas para as festas nas cortes fossem muito sutis ao mencionarem seus destinatários, algumas delas faziam referência direta a eles, apontando e enaltecendo suas qualidades, principalmente aquelas que referendassem a posição social que estes patronos ocupavam. Em resumo, a serenata,

13 “was a public act calculated to strengthen alliances, in this particular case between prominent Roman

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mais que qualquer outro gênero musical dos séculos XVII e XVIII, apresentou-se como o meio ideal para a promoção pessoal, consagração social e fortalecimento político.