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1 A SERENATA E SUA PRESENÇA EM PORTUGAL NO SÉCULO XVIII

1.2 O aparecimento e a disseminação da serenata

Antes de prosseguir sobre o surgimento e a disseminação da serenata é importante situar as palavras drama e dramático no universo da Música, em especial quando em associação com formas literárias.

Apesar de questões vinculadas à produção, recepção e função da obra de arte terem sido discutidas já em A República, de Platão, foi a Poética de Aristóteles que teve grande impacto sobre a produção artística ocidental, ao dignificar o status da poesia. Como frisa Franco:

(...) destacamos a importância, muitas vezes negligenciada, da Poética para o pensamento e cultura ocidentais. Tomando como exemplo as poesias épica e trágica, Aristóteles diverge radicalmente de seu mestre Platão, e dá à poesia a dignidade de um domínio próprio, que não mais depende de propostas políticas ou de uma filosofia moral. Pode-se dizer que, pela primeira vez, a mimesis poética é pensada como tendo uma potência própria e que, desde aí, não parou de contar sua história. Os cânones aí introduzidos para a composição da boa tragédia acabaram se tornando paradigmáticos para os demais gêneros literários, e, através deles, para outras formas de produção artística (Franco, 2016, pp. 422-423).

Assim, na Poética, que consiste em um conjunto de anotações e comentários que historiadores acreditam que teria função didática, Aristóteles faz diversas considerações sobre a utilização das palavras em prosa ou em verso. Ele sistematiza a arte poética em diversas espécies, partindo do princípio básico de que todas as suas manifestações se assentam sobre a mimesis – a imitação (Pereira, 2018, p. [9]). Apesar de distinguir três gêneros na arte literária (a epopeia, a poesia lírica e o drama), grande parte da Poética versa sobre a tragédia que, em conjunto com a comédia, compõem o gênero dramático. Considerada por Aristóteles o gênero superior entre os gêneros literários, o objetivo da tragédia era promover uma intensa experiência emocional, que levaria a uma purificação ou purga (katharsis) dos sentimentos por ela suscitados, como podemos ver em sua própria definição:

A tragédia é a imitação de uma acção elevada e completa, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma de suas partes,

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que se serve da acção e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor, provoca a purificação de tais paixões. (Aristóteles, 2018, pp. 47-48).

Para escrever tragédias que possam conduzir o espectador a este estado de espírito, Aristóteles prescreve a observação de diversas condições e princípios. Quando da redescoberta e disseminação da Poética a partir de finais do século XV, estas condições e princípios, ligados às três unidades – de ação, de tempo e de lugar – e à verossimilhança e à necessidade, se tornaram cânones para a confecção de obras artísticas em diversas áreas.

Desde seu surgimento a ópera não escapou da influência da Poética e dos preceitos apresentados por seu autor. Inevitavelmente ligada ao gênero dramático, pode-se considerar a opera seria como uma derivação da tragédia, e a opera buffa, da comédia. No caso da serenata, pode-se atribuir-lhe esta classificação de gênero dramático ainda que a plena encenação não fosse o objetivo de sua performance. Ao imitar ações através do texto e da música, ao ter seu texto estruturado na forma de diálogos, e uma vez que o conteúdo de vários libretos versava sobre debates ou disputas, que tendiam no final a uma união, reconciliação ou acordo, a performance desse tipo de obra criava um dinamismo próprio deste gênero.

Ao escrever sobre a história da poesia secular em língua italiana, o estudioso, literato e co-fundador da Accademia dell’Arcadia Giovanni Mario Crescimbeni (1663-1728) dedica o Livro IV de seu livro L’Istoria della Volgar Poesia ao desenvolvimento do dramma

musicale, e nele apresenta a origem da cantata e da serenata:

Oltre alle feste, s’introdussero per la musica certe altre maniere di Poesia, che comunemente oggimai si chiaman Cantate, le quali sono composte di versi, e versetti rimate senza legge, com mescolamento d’arie, e talora ad una voce, talora a più; e se ne sono fatte, e fanno anche miste di drammatico, e di narrativo. Questa sorta di Poesia è invenzione del secolo XVII, perciocchè nell’antecedente per la musica servivano i madrigali, e gli altri regolati componimenti [...]. Ora sì fatte cantate, quando si mettono al pubblico, soglion farsi di notte tempo, e si dicono Serenate; e molte ne abbiamo ascoltate, che sono state fatte com somma

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magnificenza, e splendore da gli Ambasciadori, e da altri Principi, e Personaggi di questa gran Corte (Crescimbeni, 1731, p. 299-300).14 [ênfase minha]

O que podemos notar é que aqui é estabelecida entre a serenata e a cantata uma semelhança com relação à sua gênese e à sua estrutura, que compartilham as formas poéticas resultantes da mistura do gênero dramático e do gênero narrativo. O que é distinto num e noutro caso é principalmente o momento da performance, já que as serenatas são executadas ao ar livre, durante a noite (na prática, veremos que nem sempre), e apresentadas com magnificenza e splendore em casas de nobres. Segundo Talbot (1982), as primeiras obras que trouxeram esta designação foram Gli Amori d'Apollo

con Clizia de Antonio Bertali, estreada 1661, em Viena; e Io son la primavera de Antonio

(ou possivelmente Remigio) Cesti, estreada em 1662, em Florença. Após estes primeiros exemplos, no fim do século XVII e início do século XVIII, a serenata adquiriu seus traços mais característicos e foi cultivada principalmente na Itália e nas cortes católicas da Áustria e da Alemanha (Timms, 2009, p. 44). A difusão do gênero foi de tal magnitude que, somente na cidade de Veneza, entre os anos 1666 e 1755, foram produzidas cerca de cento e oitenta e seis serenatas, conforme o levantamento feito por Talbot (1982). Compositores como Antonio Caldara, Giovanni Bononcini, Alessandro e Domenico Scarlatti, Nicola Porpora, Alessandro Stradella, Giovanni Paisiello e Antonio Vivaldi dedicaram-se ao gênero, assim como os poetas Giovanni Ambrogio Milliavacca e Pietro Metastasio, entre muitos outros.

Durante o século XVIII a serenata se disseminou por toda a Europa, de Lisboa a São Petersburgo. Na Europa do Norte, por exemplo, compositores como J. S. Bach e G. F. Händel, cujos nomes são ligados principalmente à cantata religiosa e ao oratório (no caso de Bach), ou ao oratório e à ópera (no caso de Händel), escreveram obras louvando seus

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[Para além das festas, se introduziram para a música outras formas de Poesia, que hoje em dia comumente se chamam Cantatas, as quais são compostas de versos rimados e não rimados, misturados a árias, e às vezes escritos para uma voz, às vezes para mais; e uma vez criadas, são feitas de uma mistura de dramático, e de narrativo. Este tipo de Poesia é invenção do século XVII, porque no antecedente para a música serviam os madrigais, e as outras composições parecidas [...]. Quando são assim cantadas, e

levadas as público em período noturno, se dizem Serenatas; e muitas temos escutado, as quais são feitas com grande magnificência e esplendor na casa de Embaixadores, de outros Príncipes e de Personalidades desta grande Corte.]

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patronos.15 Essas composições são muitas vezes apresentadas por editores modernos – em gravações e na divulgação de concertos – como cantatas seculares, o que de certa forma pode vir a obscurecer a função política associada a este tipo de música.

Como referido anteriormente, ao contrário das óperas, que podiam ser realizadas em várias noites e ser revividas em outras estações e em locais diferentes, serenatas eram geralmente trabalhos “ocasionais”, no mais estrito sentido do termo: eles eram realizados quase sempre uma única vez e, tendo cumprido seu propósito, eram geralmente esquecidas, a menos que o compositor resolvesse reutilizar alguns de seus materiais em outras obras. O caso da serenata Parnasso in festa, HWV 73, de G. F. Händel é uma exceção, pois, além da sua estreia em 1734, a obra foi reapresentada em diversas ocasiões, nos anos de 1737, 1740 e 1741. Um exemplo de reaproveitamento do material de serenatas em obras posteriores acontece, a título de exemplo, com Der Himmel dacht

auf Anhalts Ruhm und Glück, BWV 66a, escrita por J. S. Bach em 1718, cujo material foi

reutilizado para a composição da cantata religiosa Erfreut euch, ihr Herzen, BWV 66.2, de 1724. Neste caso, o reaproveitamento do material foi de crucial importância para a reconstrução da obra original, cujo material musical se perdeu.

As mudanças no cenário político no fim do século XVIII não deixariam de afetar o gênero serenata. Segundo Tcharos, nessa época

the serenata was becoming as much a relic of a passing generation as opera seria. Its effectiveness as elite propaganda and its applicability to noble contexts would soon be replaced by the less aristocratic but equally grand ‘theatre’ of revolutionary spectacle and emerging Romanticism (Tcharos, 2011, p. 508).16

Assim, os conflitos gerados entre a cultura aristocrática vinculada ao Antigo Regime e os sentimentos do Iluminismo, somados à mudança de gosto com relação à linguagem

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No corpus da obra bachiana três obras apresentam essa denominação: Der Himmel dacht auf Anhalts Ruhm und Glück (BWV 66a), Die Zeit, die Tag und Jahre macht (BWV 134a) e DurchlauchtsterLeopold (BWV 173a), todas escritas para a Casa Real de Anhalt-Cöthen. No caso de Händel, um exemplo de início de sua carreira é Aci, Galatea e Polifemo (HWV 72), escrita em Nápoles em 1708. Já em sua fase inglesa o compositor escreveu Parnasso in Festa (HWV 73), para o casamento da Princesa Anne com o Príncipe William IV de Orange, em 1734.

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[a serenata estava se tornando, como a opera seria, uma relíquia de uma geração ultrapassada. Sua eficácia como propaganda de elite e sua aplicabilidade a contextos da nobreza logo seria substituída pelo menos aristocrático mas igualmente grandioso "teatro" do espetáculo revolucionário e do Romantismo emergente.]

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clássica e ao imaginário arcádico, foram responsáveis pelo declínio do gênero, em fins do século XVIII (Talbot, 1997).