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A introdução da música dramática e a presença da serenata em Portugal

1 A SERENATA E SUA PRESENÇA EM PORTUGAL NO SÉCULO XVIII

1.3 A introdução da música dramática e a presença da serenata em Portugal

Em 1668 um Portugal vitorioso assina com a Espanha o Tratado de Lisboa, que pôs fim à Guerra da Restauração, na qual os dois países se envolveram desde 1640. Esse fato está inserido em um processo de transformação no funcionamento das instituições, nos poderes e equilíbrios sociais portugueses, que se afastaram da “prática de uma forma de governo centrada nas consultas aos vários conselhos do centro da monarquia” (Monteiro, 2009, p. 300). Nos anos em que se seguiram, “a disputa política e as facções de corte, embora sempre presentes, deixaram de se revestir da dimensão fortemente polarizada que assumiram na fase anterior”; e a dinastia foi consolidada através “da paz externa e do restabelecimento do domínio sobre possessões coloniais”, e “por via das várias disposições que asseguraram a definição dos mecanismos de sucessão à coroa” (Monteiro, 2009, p. 336). Na década seguinte o país passou por uma profunda crise econômica, decorrente da concorrência ultramarina (que dificultava o acesso das produções brasileiras aos mercados europeus) e da insuficiência na produção de trigo e outros cereais, que exigiam a compra de grandes quantidades de víveres e de bens manufaturados no mercado externo (Meneses, 2001, p. 9).

Dada nessa época a dependência da economia portuguesa da entrada e valorização dos bens extraídos nas colônias, este quadro econômico só viria a se alterar significativamente no fim do século, com a revalorização do açúcar e do tabaco brasileiros, seguida pelo surto da mineração ali ocorrido. As principais jazidas auríferas no Brasil foram descobertas na década de 1690, na região que veio a ser conhecida por Minas Gerais, e jazidas menores foram encontradas até aos anos de 1740, na Bahia, em Mato Grosso e em Goiás. Jazidas de diamantes foram encontradas também na região de Minas Gerais, na década de 1720, e na Bahia, no início da década de 1730 (Meneses, 2001, pp. 267-271).

Data provavelmente de 1697 a chegada do primeiro carregamento expressivo do ouro do Brasil a Lisboa, ao que se seguiram muitos outros até 1807 (Meneses, 2001, p. 268),

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sendo que o apogeu dessas remessas ocorreu entre os anos de 1735 e 1754. Estes carregamentos eram resultantes do imposto cobrado sobre a extração do metal, à taxa de um quinto. Estima-se que entre 750 a 1000 toneladas de ouro entraram no país durante o século XVIII, um valor difícil de definir com precisão, devido à “elementaridade da burocracia, à difusão do contrabando e à imperfeição da fiscalidade, que negligenciam a obrigatoriedade do registro” (Meneses, 2001, p. 269).

É neste panorama de prosperidade econômica que em 1º de janeiro de 1707 foi aclamado rei de Portugal D. João V (1689-1750). Seu longo reinado leva adiante a implantação de um sistema político já surgido no reinado de seu pai, D. Pedro II (1648- 1706): a Monarquia Absolutista. Neste sentido, de acordo com Cymbron & Brito (1992, p. 105), no período em que esteve à frente do país, D. João V procurou fazer uma “afirmação interna do Poder Absoluto e da recuperação externa da posição do país no concerto das nações europeias, assim como, de um modo bastante mais limitado e contraditório, da renovação das estruturas econômicas e culturais.” No caso da Música, suas políticas se refletiram em diversas ações, tais como:

 A contratação de numerosos músicos estrangeiros, principalmente italianos, para vir trabalhar no país, dos quais o mais importante foi certamente o compositor Domenico Scarlatti (1685-1757);

 A criação, em 1713, de uma escola de música ligada à Real Capela Patriarcal, o

Real Seminário de Música da Patriarcal, que de acordo com Fernandes, “até a

fundação do conservatório [de Lisboa], em 1835, (...) foi o principal suporte da formação profissional dos compositores, cantores e organistas para as Capelas da monarquia e para outras instituições do país” (Fernandes, 2010, p. xxi).

 O envio dos discípulos mais dotados do Seminário da Patriarcal para se especializar em Roma, como foi o caso de João Rodrigues Esteves (c.1701-1752), António Teixeira (1707-1774), Francisco António de Almeida (1703-1754) e Joaquim do Vale Mixelim (Fernandes, 2010, p. 13).

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Figura 3: D. João V (1689-1750).

Retrato realizado por Jean Ranc (1674-1735) – Museu do Prado, Madri.

Além das políticas de D. João V, Raggi aponta outro importante fator para o desenvolvimento da vida musical no país:

L’azione culturale della regina di Portogallo Maria Anna d’Asburgo (Viena 1683 – Lisbona 1754) è di importanza fondamentale per compreendere le dinamiche artistiche del Settecento portoghese. Il suo impatto sulla vita musicale del paese fu dirompente e la passione per l’opera italiana, che dilagò nella seconda metà del secolo, deve al lungo regno dell’arciduchessa austriaca come regina di Portogallo il suo senso e la sua giustificazione in quanto fenomeno culturale (Raggi, 2018, p.

18).17

17 [A ação cultural da rainha de Portugal Maria Ana de Habsburgo (Viena 1683 – Lisboa 1754) é de

importância fundamental para compreender a dinâmica artística do Setecentos português. O seu impacto sobre a vida musical do pais foi perturbador e a paixão pela ópera italiana, que se espalhou na segunda metade do século, deve ao longo reinado da arquiduquesa austríaca como rainha de Portugal o seu significado e a sua justificativa enquanto fenômeno cultural.]

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Embora a Música fosse muito importante na educação de príncipes e princesas europeias, na casa dos Habsburgo essa prática parece ter sido bem mais intensa, e se expressava pelo domínio de instrumentos, da composição ou ainda da prática do mecenato. O próprio pai de D. Maria Ana, Leopoldo I (1640-1705), era um aplicado compositor, tendo deixado uma obra musical considerável. Como apresentam Miranda & Miranda, durante o seu reinado, a corte de Viena

ganhou vasta notoriedade enquanto centro de produção artística. Se, no plano arquitetônico, os viajantes costumavam ficar desiludidos com a fraca

representatio maiestatis da Hofburg, esse sentimento não se replicava na audição

da música produzida na Hofkapelle (capela do paço) (...). Contudo, a música era muito mais que uma predileção pessoal da família imperial, por muito genuína e sentida que fosse. A ópera, muito em particular, cedo foi utilizada como instrumento de propaganda do poder dos Habsburgo. (Miranda & Miranda, 2014, pp. 69-70).

Logo após a chegada de D. Maria Ana a Portugal, em 27 de outubro 1708, assinalam-se menções a festas e saraus que ocorreram no paço da Ribeira, inseridas nas comemorações do matrimônio, às quais se seguiram diversas outras, por ocasião de aniversários. Em algumas dessas festas foram apresentadas zarzuelas, obras dramáticas em espanhol, e em outros momentos (em 1709 e 1711), a rainha fez executar comédias alemãs (Miranda & Miranda, 2014, p. 219).

Em 22 de outubro de 1711, por ocasião do aniversário de D. João V, foi apresentada a

Fabula de Acis y Galatea, cantada parte em espanhol (árias), parte em português

(recitativos). Desta última, temos o relato de Giuseppe Zignoni:

Loro con il Sig.r Infante Don Emanuele. Indi tre Dame delle sod.e sederono sul Teatro vicino a un tavolino, e ivi cantarono alla moda di Portogallo la Serenata, intitolata la Favola di Acis e Galatea accompagnando sempre li stromenti, finita la quale ritorno sul Teatro la sig.ra Infanta, e ivi con il Sig.r Infante don Emanuele ballarono un ballo alla francese e con cio termino la festa, che duro tre hore, con grande sodisfatione delle MM.a Loro, e applauso de Spettatori, li quali erano in circa da cento persone tra Dame e Cavaglieri, li quali secondo lo stile di questa Corte dovettero stare sempre in piedi, o in ginnochione, non sendovi da sedere

(Zignoni, apud Raggi, 2018, p. 30).18

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[Suas Majestades com o senhor infante D. Manuel e três das referidas damas sentaram-se no palco perto de uma pequena mesa, e aí cantaram, à moda de Portugal, a serenata chamada La Favola de Aci e Galatea,

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Figura 4: D. Maria Ana de Áustria (1683-1754).

Retrato realizado por Jean Ranc (1674-1735) – Museu do Prado, Madri.

A partir desta época a prática de apresentações de música dramática se intensifica, e no reinado de D. João V Brito (1989) identifica mais de cento e vinte performances de música dramática ocorridas em Portugal, seja na corte ou fora dela. Dentre esse número, é difícil precisar exatamente o percentual de serenatas envolvidas, uma vez que os termos Opera

(em musica), Comedia (em musica) e Serenata são utilizados tanto pela imprensa de

então como nos próprios libretos e partituras de forma muito ambígua. O certo é que no reinado de D. João V o gênero serenata foi cultivado proficuamente em obras de

acompanhando sempre os instrumentos. Quando terminaram, a senhora infanta voltou a subir ao palco e lá, acompanhada pelo infante D. Manuel, dançaram um ballo alla francese, e assim terminou a festa que durou três horas, com grande satisfação de Suas Majestades, e com os aplausos dos espectadores, os quais eram cerca de cem pessoas, entre damas e cavalheiros, os quais segundo o costume desta corte estavam sempre de pé ou de joelhos, não se podendo sentar.]

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Domenico Scarlatti, Francisco António de Almeida e António Teixeira. Segundo Brito (1989, p. 8), tais serenatas

were usually performed either in the King’s or the Queen’s chambers, according to which of the Royal spouses was offering this entertainment to the other. In some cases they were part of a court gala, and sung in the presence of the court and the foreign dignataries, but more often they seem to have been performed in private.19

O contributo das formas culturais e da arte tem sido recentemente redimensionado para a compreensão do Absolutismo, e o panorama que se descortina no caso específico de D. João V é que o investimento na “importância do cerimonial da liturgia cortesã e das múltiplas manifestações artísticas como investimentos simbólicos na glorificação da imagem régia” lhe permitiram “atenuar a insuficiência doutrinal do regime, dissimulando as imperfeições de uma estrutura administrativa coarcitada no seu agir pelos poderes periféricos” (Meneses, 2001, p. 33). E, a despeito da forma como se veja o resultado de seu governo, é inegável que, do ponto de vista artístico, suas ações frutificaram em vários segmentos musicais, da criação e produção de espetáculos ao desenvolvimento artístico de vários músicos do país.

Os sucessores do Rei Magnânimo, D. José I (1714-1777) e D. Maria I (1734-1816), realizaram uma maior secularização da vida política e cultural, com uma absorção maior de elementos culturais da Península Itálica. Se durante o reinado de D. João V a importação dos elementos italianos esteve principalmente ligada, embora não exclusivamente, à música sacra, nos reinados de D. José I e D. Maria I a música profana – em particular a música dramática – foram o foco privilegiado. A inauguração do Teatro do Tejo em Lisboa, em março de 1755, com a ópera Alessandro nell’Indie, de David Perez, foi um dos pontos altos, senão o ponto culminante desta prática operística, que embora continuasse a render frutos até o século XIX, se viu retrair em função das consequências do terrível terremoto que devastou Lisboa, ocorrido em 1º de novembro de 1755 (Brito, 1989).

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[eram geralmente realizados nos aposentos do rei ou da rainha, de acordo com qual dos cônjuges reais oferecia esse entretenimento ao outro. Em alguns casos, elas eram parte de uma gala da corte e eram cantadas na presença da corte e dos dignitários estrangeiros, mas mais frequentemente parecem ter sido executados em particular.]

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Nos anos que se seguiram, em que a reconstrução da capital era o objetivo maior da coroa portuguesa, a performance de serenatas se apresentou como uma alternativa viável dentro das condições econômicas que se impunham. Isso não significa que a opera

seria tenha desaparecido completamente, mas sim que a serenata, um gênero mais

econômico, supriu em certa medida os anseios musicais do seu restrito público.

Em seu estudo sobre a serenata na corte de D. Maria I, Castro apresenta um levantamento das serenatas escritas em Portugal durante o século XVIII, agrupando-as por reinados (Castro, 2016, p. 20). Assim, no reinado de D. João V, de 1707 a 1750, foram escritas cerca de trinta e oito serenatas, e no de seu filho D. José, de 1750 a 1777, apenas dez. Já nos quinze anos do reinado de D. Maria, de 1777 até 1792, o número de obras escritas quase se igualou ao do reinado de seu avô, D. João V: trinta e cinco. Segundo esse mesmo autor, este relevo dado à produção de serenatas pode ser explicado em parte como uma política de austeridade:

No reinado de D. Maria I houve uma redução significativa de despesas com produções de dramas musicais e a realização de música na corte e fora das celebrações religiosas seguiu mais exclusivamente o calendário dos aniversários e dias onomásticos dos membros da realeza (Castro, 2016, p. 14).

Porém, é também possível que a ênfase sobre as serenatas se desse por um genuíno interesse no gênero, como uma recuperação do contexto cortesão. A isso se soma o fato de que nesse período grande parte das serenatas apresentadas na corte foi escrita por compositores portugueses, que tiveram mais oportunidades neste gênero do que na

opera seria, como propõe Brito (2009, p. 238):

The Portuguese composers’ contribution to the court theaters’ repertory is small – only nine Italian operas during the reigns of Joseph I and his daughter Mary I (...) – and they did not generally present any operas in the public theaters either. On the other hand, they were much more productive in the field of the serenata, which, very probably for economical reasons, replaced opera as the favorite genre of court music in the reign of Mary I. They wrote some three-dozen such works during a 24-year [sic] period between 1778 and 1792.20

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[A contribuição dos compositores portugueses para o repertório dos teatros da corte é pequena – apenas nove operas italianas durante os reinados de José I e de sua filha Maria I (...) – e também geralmente não apresentaram óperas nos teatros públicos. Por outro lado, eles foram muito mais produtivos no campo da serenata, o qual, muito provavelmente por razões econômicas, substituiu a ópera como o gênero favorito

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Dos compositores portugueses que se dedicaram ao gênero, os dois mais importantes são Jerónimo Francisco de Lima (1743-1822) e João de Sousa Carvalho (1745-1798). Ambos iniciaram seus estudos de música no Real Seminário da Patriarcal, tendo sido depois enviados à cidade de Nápoles onde, na condição de bolsistas da corte portuguesa, estudaram por seis anos no Conservatorio di Sant’Onoffrio a Capuana (Brito, 2009, p. 238). É de Sousa Carvalho, inclusive, a serenata Numa Pompiglio, a última obra do gênero apresentada na corte, estreada na aclamação do príncipe D. João como herdeiro do trono, em 24 de junho de 1789 (Castro, 2016, p. 28).21

Já nessa altura a produção de música dramática na corte portuguesa havia entrado em declínio, como nos conta Brito (2009, pp. 238-239):

During the reign of Mary I a large number of opera singers retired to Italy, and even though there was a steady influx of new singers to replace them, the Lisbon court was finding it increasingly difficult to hire good castrati, who did not want to come to such a remote place for periods of twelve or more years as demanded by their contracts. The last opera to have been performed in the royal theaters was Riccardo Cor di Leone, by the French composer Grétry, which was sung in Italian at the Salvaterra Theater in Carnival 1792. During one of the performances, Queen Mary I had one of her extreme fits of madness, and, with the opening of the still existing San Carlos Theater in June of the following year, court opera was finally over.22

Assim, a abertura do teatro São Carlos é um marco do fim da produção de música dramática restrita ao ambiente da corte em Portugal, para a qual os mais variados recursos – literários, musicais e cênicos – estiveram a serviço da representação e exaltação do poder real. Para diversos artistas, contudo, esse tipo de instrumentalização

de música de corte no reinado de Maria I. Eles escreveram cerca de três dúzias dessas obras durante um período de 24 anos (sic) entre 1778 e 1792.]

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Esta obra foi reapresentada em 25 de julho de 1790 (Brito, 1989, p. 164).

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[Durante o reinado de Maria I, um grande número de cantores de ópera se retirou para a Itália e, embora houvesse um fluxo constante de novos cantores para substituí-los, a corte de Lisboa achava cada vez mais difícil contratar bons castrati, que não queriam vir para um local tão remoto por períodos de doze anos ou mais, conforme exigido por seus contratos. A última ópera a ser apresentada nos teatros reais foi Riccardo Cor di Leone, do compositor francês Grétry, que foi cantado em italiano no Teatro Salvaterra no Carnaval de 1792. Durante uma das apresentações, a rainha Maria I teve um de seus extremos ataques de loucura e, com a abertura do ainda existente Teatro São Carlos, em junho do ano seguinte, a ópera da corte finalmente terminou.]

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da obra de arte não representou um limite para a reflexão e expressão de aspectos mais profundos da condição humana, como veremos nos próximos capítulos.

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