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ABERTURA DA SEGUNDA PARTE As substâncias psicoativas e as religiões

5. As origens do sincretismo brasileiro

6.1. As graças de “São Irineu” no poder do Santo Daime

6.1.2. A Barquinha de Frei Daniel a navegar pelo “Mar Sagrado”

Nascido na cidade maranhense de Vargem Grande no ano da “abolição da escravatura” no Brasil (1888), o filho de ex-escravos Daniel Pereira de Mattos chegou pela primeira vez em terras acreanas - por volta do ano de 1905 - a serviço da Marinha do Brasil, onde exerceu por muito tempo função de marinheiro130 (ARAÚJO, 1999, 2002; OLIVEIRA, 2002; GOULART, 2004; FRENOPOULO, 2005; MERCANTE, 2000a; 2000b; 2006; PASKOALI, 2002). Em seguida ele embarcou numa nau, navegando em treinamento pelos mares da Europa e do Oriente Médio, regressando à Rio Branco em 1907, quando aposentou-se da corporação após alcançar a patente de Sargento. Na Marinha, Daniel instruiu-se ao ponto de dominar a arte de várias profissões, dentre as quais: a de músico – pois tocava violino, trompete, violão e clarineta –, sapateiro, barbeiro, carpinteiro, padeiro, construtor naval, cozinheiro, artesão e alfaiate. Na cidade de Rio Branco montou uma barbearia no Bairro do Papoco; área identificada até hoje como uma zona de meretrício situada às margens do Rio Acre. Era bastante conhecido na localidade, não apenas pela barbearia – diga-se de passagem, bastante movimentada – mas por seus hábitos boêmios nas noites do Papoco,

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onde tocava e cantava melodias de amor. Numa dessas noites de boemia, Daniel dormiu embriagado às margens do Rio Acre, momento no qual teria tido sua primeira experiência mística, dado que narrou ter sido acometido por uma visão incomum, na qual dois anjos teriam descido do plano celestial, mostrando-lhe um livro de capa azul. O consumo abusivo do álcool teria comprometido o fígado de Daniel, adquirindo uma grave patologia, que lhe trouxe sérios problemas de saúde.

O fundador do Alto Santo, o Mestre Irineu, era um dos clientes da barbearia de Daniel e chegou a convidá-lo para tratar-se com o Santo Daime; bebida por ele consagrada em 1937131 (OLIVEIRA, 2002). Durante o tratamento, o ex-marujo foi novamente tomado pela recorrente visão celestial dos dois anjos, trazendo-lhes àquele livro azul, embora, desta vez, estivesse absorto pela força da bebida sagrada. O livro – que traz em seu conteúdo os Hinos (Salmos) da emergente doutrina - foi interpretado como uma nova missão religiosa “entregue” da esfera espiritual para Daniel.

Tamanha revelação fez com que Daniel tomasse a iniciativa de estipular uma própria Linha doutrinária, quando fundou, no ano de 1945, perante autorização do Mestre Irineu, o “Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz” - conhecido por “Capelinha de São Francisco” - no Bairro de Vila Ivonete, situado na periferia de Rio Branco. Antes da fundação “Frei Daniel” – como passou a ser conhecido por seus seguidores – recebeu instruções de Irineu referentes à feitura do

Daime, chegando o Mestre a fornecer-lhe, por algum tempo, o chá preparado.

Inicialmente, a Capelinha era bastante rústica e erguida à base de madeira e telhado de palha. Neste lugar isolado da urbanidade Frei Daniel passou a viver como um eremita franciscano a exercitar a caridade, cuidando e tratando das pessoas através de seus Trabalhos mediúnicos com o Daime, recebendo em troca alimentos e outros bens de consumo básicos. Paulatinamente uma comunidade de seguidores foi-se formando ao redor deste pequeno Centro de cura, que passou a agregar diversos peregrinos.

Mesmo ao se tornar um relevante “Centro de peregrinação”, com o passar das décadas de sua fundação - conforme sinalizado por Oliveira (2002, pp.70-81) - foram constantes os conflitos pelos quais passaram os seguidores de Daniel, tanto por parte da polícia132, quanto dos membros da Igreja Católica - além de parte da sociedade acreana -

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Araújo (1999) afirma que o primeiro contato de Daniel com o Santo Daime deu-se no ano de 1936.

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De acordo com Oliveira (2002, p.70), nos tempos de Frei Daniel, a Capelinha sofreu quatro invasões por parte da Polícia Militar do Estado do Acre.

frente à estigmatização dos membros da Capelinha tidos como loucos e hereges133. Todavia, a Capelinha permaneceu resistente na continuidade de seus procedimentos rituais, elaborando estratégias contra a discriminação, não se desviando de sua missão primeva relacionada ao exercício da caridade destinada aos desvalidos em peregrinação, encontrando no Daime - agora servido por Frei Daniel - conforto e alívio para os mais variados infortúnios, principalmente, no que toca ao tratamento de doenças e “vícios”.

Nesta singela Capelinha Daniel permaneceu por 13 anos ao cumprir uma importante missão de curador, médium e líder espiritual até a data de seu falecimento, que se deu no oitavo dia do mês de setembro de 1958 (ARAÚJO, 1999; 2002; OLIVEIRA, 2002; PASKOALI, 2002, GOULART, 2004; MERCANTE, 2006). Pesquisadores e adeptos do Centro relatam que, antes de falecer, Daniel ingressou numa penitência de 90 dias iniciada em junho de 1958, porém anunciando que viajaria no término da contrição. Esta “viagem” teria sido sua “ultima profecia” referente ao vindouro falecimento, que o acometeu no momento em que estava cozinhando o Daime. Com a morte do mentor um de seus principais companheiros; Antônio Geraldo foi escolhido como sucessor de Daniel, chegando a incorporar novos elementos simbólicos, estéticos e ritualísticos à doutrina, como, por exemplo, os fardamentos – remetendo-nos à estética das fardas da Marinha Brasileira - e as danças do Bailado. Inclusive, teria sido o próprio Antônio Geraldo, quem primeiro denominou a doutrina deixada por Frei Daniel de “Barquinha”, tendo em vista, que foi acometido por uma fabulosa Miração, vislumbrando um barco a navegar nas “ondas do mar sagrado”.

Assim como no Alto Santo, o estado de consciência experienciado pelos adeptos da Barquinha também é denominado por Miração. Os conteúdos visionários são considerados dádivas dos seres celestiais, que Trabalham “na luz” da bebida, muitas vezes fornecendo aos infortunados mensagens, caminhos e conselhos valiosos a serem seguidos no tratamento de suas patologias. Aqui, pacientes e médiuns têm acesso direto ao conteúdo visionário das Mirações. No caso dos doentes, pode ser que os mesmos tenham ou não o privilégio de interpretar estas visões, obtendo consciência a respeito do processo de cura, enquanto o mesmo acontece em seu espírito e organismo.

A origem dos infortúnios pode ser apresentada – aos médiuns e aos doentes - por meio de Mirações, tendo em vista, que as mesmas fazem parte dos tratamentos

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Oliveira (2002, p.78) indica alguns dos estereótipos pejorativos - lançados pela população acreana para estigmatizar os membros da doutrina de Daniel- que categorizavam os fiéis enquanto “abestalhados” ou “abobalhados”, devido ao fato de consumirem o Santo Daime nas cerimônias da Capelinha. Fora o fato de terem São Francisco das Chagas como santo padroeiro, prática vista como absurda e herética.